domingo, 30 de setembro de 2012

O dia em que Portugal morreu (2)

O que supostamente despoletou a manifestação de 15 de Setembro foi a redistribuição da TSU (que será abordada noutra ocasião), diminuindo a contribuição das empresas e aumentando a dos trabalhadores. Na linguagem do Partido Comunista, isto seria roubar aos trabalhadores para enriquecer o grande capital. Curiosamente, os "grandes" capitalistas e os "representantes" do patronato concordaram com isto e recusaram logo esta redução dos custos do trabalho, que tão insistentemente tinham vindo a pedir. Mais significativo ainda foi não terem apresentado, de forma coerente, qualquer proposta alternativa, como se o ideal para as empresas fosse manter tudo como está. Os "representantes" do patronato, com a sua reacção imediata, não tiveram tempo para averiguar entre os seus representados se a medida podia ajudar alguma coisa, nomeadamente entre aquelas empresas que estão no limite entre fechar ou continuar em actividade, pelo que convinha saber quem eles representam realmente. Note-se que em nada disto suponho a justiça ou eficiência da medida anunciada pelo governo, mas precisamente assinalo que ninguém se interessa em saber o que está em causa.

Afinal, que tipo de empresários temos nós? As exportações portuguesas tiveram um aumento notável nos últimos anos. Os mercados externos não se abriram de repente, sempre estiveram disponíveis, mas antes qualquer empresário preferia colar-se ao Estado, de forma mais ou menos directa, mas a teta estatal ameaçou secar abruptamente. Então, aqueles empresários mais capazes e perspicazes fizeram o que tinham a fazer, mas os outros entraram em pânico. António Borges chamou-os de ignorantes, mas eles não são nem sábios nem ignorantes, são apenas uns espertos que viveram à conta de um socialismo que agora se mostra inviável. Toda e qualquer contestação ao governo da parte do "grande capital" é apenas mero pretexto para forçar o governo – este ou outro que lhe suceda – a se tornar mais dócil e a conceder benesses de forma encoberta, os famosos "estímulos à economia". Mas os empresários beneficiados serão sempre aqueles com maior poder de influência, pelo que todos os outros estão a ser burlados por aqueles que supostamente os representam.

A isto há que juntar as pressões dos detentores de fundações, que não se contentam com as isenções de impostos e reclamam sempre mais e mais subsídios para elaborar tarefas tantas vezes de duvidosa utilidade, vide Mário Soares alarmado com os cortes que se anunciavam.Sem esquecer ainda que a anunciada privatização da RTP criou mais uma série de inimigos na poderosa industria mediática devido à escassez do mercado publicitário.

Longe ainda deste quadro completar a fenomenologia do poder em Portugal, percebe-se facilmente que as classes poderosas não se interessam minimamente pelos destinos do país mas anseiam por um governo ao estilo de José Sócrates, que continue a empurrar com a barriga uma situação insustentável, enquanto concebe benesses por baixo da mesa a estes mesmos poderosos. Quem paga, como sempre, é uma classe média, que hoje já vive como se fosse uma classe pobre. Sobre estes dedicarei o próximo post.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O dia em que Portugal morreu (1)

Tal como as árvores, os países podem morrer sem que alguém dê por isso durante muitos anos. Para efeitos de raciocínio, entendo aqui a morte de um país ou de uma nação ­– as precisões ficam para mais tarde – como aquele ponto de não retorno em que não é possível mais indireitar o estado de coisas sem que haja uma refundação nacional, talvez só possível em diáspora. Obviamente que não se trata aqui de fazer algum tipo de previsão científica mas de deambular por um campo simbólico que nos permita vislumbrar as razões mais profundas, sem entrar por uma busca de causas remotas, que nos levaram até aqui.

Portugal morreu no dia 15 de Setembro de 2012, data da manifestação contra a troika e contra o governo, devido ao corte de ordenados que a subida da TSU implicava. Como todas as manifestações, foi organizada pela extrema-esquerda e apoiada de forma natural por toda a comunicação social. A convocação pelo facebook precipitou uma adesão maciça, e todo o país se mobilizou, ricos e pobres, incultos e sábios, socialistas e liberais. A unanimidade contra as últimas medidas do governo, assim como contra o resgate da troika, seria uma coisa positiva se acreditássemos na remota hipótese de todos terem percebido o que se passa: ou seja, todos perceberam os erros cometidos; todos compreenderam a gravidade da situação e o longo caminho que nos espera; todos sabem quais os caminhos de saída e as formas de os trilhar, incluindo a maneira de superar os obstáculos e os imprevistos.

Mas se nos recusarmos a crer nesta espécie de omnisciência colectiva, somos forçados a encarar esta unanimidade de forma mais sombria, e a desconfiar se não estamos em presença de um tipo de estupidez colectiva de consequências irreversíveis. Não me refiro propriamente à estupidez dos manifestantes, muitos deles reagindo de forma compreensível a mais uma espoliação, mas à estupidez da generalidade dos comentadores, que tanto mais falaram quanto menos raciocinaram. Passados alguns dias, disse para mim mesmo que esta tinha sido a mais socialistas das manifestações que alguma vez existiram em Portugal. Mas nem tudo estaria perdido se assim fosse, dado que seguir de forma consciente um caminho, ainda que errado, permitiria mais tarde corrigir a trajectória, precisamente pelos escrúpulos que à consciência se ligam. Mas depois percebi que era muito mais grave, que as pessoas tanto querem – seguindo a desorientação reinante nas classes pensantes – um Estado omnipresente como um Estado mínimo, querem ser totalmente livres desde que severamente agrilhoados, querem voltar para uma Idade do Ouro ao mesmo tempo que abominam tais fantasias, querem o fim da crise assim como a sua eternização... A lista podia prosseguir indefinidamente. Não se tratam de desejos contraditórios, tão característicos do ser humano. Trata-se de uma marcha deliberada para o abismo, surgida da coragem emprestada pelo colectivo.

Mais tarde tratarei de concretizar estas imagens, que por ora parecerão apenas toscas pinceladas poéticas a retratar um certo espanto.