terça-feira, 30 de julho de 2013

As virtudes da compreensão lenta

É comum fazer-se o elogio implícito à capacidade de rápida compreensão. Quando ela se dirige a fins eminentemente práticos, diz-se que é uma questão de esperteza, e quando se trata de problemas de cariz intelectual então é vista como inteligência ou mesmo genialidade. Contudo, todos nós conhecemos “gente esperta”, que sempre conseguiu se desenrascar, mas que chegam a uma certa idade e, de repente, parecem ter sido ultrapassados por todos os outros, e continuam a aplicar receitas estereotipadas que não resultam mais e só eles não percebem como se tornaram patéticos. Sobre os “génios precoces” a coisa ainda é mais catastrófica, não porque alguns não consigam ocupar postos de elevada competência intelectual, mas porque quase todos são atacados de tantas fragilidades que, no conjunto, mais parecem débeis mentais.
Os antigos já sabiam que desenvolver muito a inteligência independentemente de outras capacidades era o mesmo que o corpo ter um membro muito mais desenvolvido do que os outros, o que só acabaria por atrapalhar e criar um ser monstruoso. Frank Abagnale – o maior impostor da história, sem contar com os ocupantes de cargos políticos – diz que a sua perdição de juventude era a enorme capacidade de observação que tinha e que lhe permitia engendrar num instante os esquemas mais mirabolantes. Ele tinha esta capacidade muito desenvolvida em relação ao conhecimento que tinha do conjunto da sociedade e, especialmente, das complexidades do ser humano, que só veio a adquirir mais tarde, tornando-se num cidadão respeitável. Em geral, ser detentor de uma capacidade especial coloca logo dois problemas: por um lado, a pessoa é detentora de um poder que dificilmente conseguirá dominar; mas irá também chamar atenções e assim suscitar invejas, receios e a cobiça de quem a queira usar para fins que ela nem suspeita.
Estas considerações ganham uma especial relevância quando se trata da avaliação dos problemas que a realidade apresenta e que transcendem o lado meramente prático, como acontece com os problemas sociais, políticos, históricos, etc. Ainda continuamos a valorizar o artista que mais rapidamente ofereça a interpretação de qualquer acontecimento. Os canais de notícias apresentam rotineiramente painéis de “experts” comentando eventos quase em tempo real, e no facebook qualquer um pode simular essa capacidade. É fácil perceber que, com este ritmo vertiginoso, já ultrapassamos o tempo em que cada um tem opinião sobre tudo, porque já nem há tempo para engendrar essa opinião, ainda que esta seja a mera recolha de ideias flutuantes no ambiente. O que temos hoje é um tipo abastardado de militância, onde cada um repete o discurso do seu grupo de referência, ainda que este seja mera criação mental. É frequente um indivíduo frequentar um site de notícias apenas para repetir, quase sem alterações, o mesmo comentário em vários locais, primeiro numa notícia de política nacional, depois numa de futebol e por fim numa a respeito do último produto tecnológico. E não faz isto como se fosse uma coisa paralela, mas acredita que está mesmo em sintonia com as várias notícias.
O que é estranho é que estes casos não são encarados como o que são – perturbações mentais – mas apenas como a opinião legítima em liberdade democrática, que não é visto apenas como o direito ao erro mas como o privilégio do erro ou o discurso aleatório reclamarem para si o mesmo valor que aquele possuído pela verdade. Isto quer dizer que aqueles que se esforçam por saber o melhor possível como as coisas são não podem ter esperanças de obterem qualquer reconhecimento por isso. Muito provavelmente, como vão dizer coisas que não batem certo como o «senso comum», serão acusados de proferir opiniões pouco reflectidas, quando será o oposto. As massas estão imbecilizadas, pelo que agradá-las só é possível se representarmos um ponto central dessa imbecilidade. Isto não quer dizer que não temos o dever de fazer algo por essas massas, até porque não podemos ser ingénuos de achar que a imbecilidade colectiva não nos afecta. Mas para fazermos algo de útil, num contexto de caos, temos primeiro que nos recolher para reflectir e buscar a companhia, ainda que imaginária, daqueles que fazem ou fizeram o mesmo. É aqui que se torna importante considerar o fenómeno do entendimento e da compreensão.
O simples entendimento de algo é uma pequena luz que se faz em nós. Contudo, nem toda a luz é entendimento e menos ainda compreensão (esta exposição não tem a pretensão de ter validade científica, nem há a preocupação de usar os vários termos de forma técnica). Esta luz pode ter duas modalidades, que são dificilmente articuláveis. Numa, ela deriva da nossa abertura para a realidade e assim as coisas “dizem” o que são na medida das nossas capacidades e do nosso grau de abertura. Noutra variante, o clarão é interno e tentamos depois derramá-lo sobre a realidade, ou seja, ficamos deslumbrados por alguma teoria e tentamos encaixar os factos nela. Aparentemente, a escolha entre os dois casos é fácil de fazer, porque no primeiro caso estamos na senda da verdade e no segundo estamos na via da ilusão. Contudo, estas duas modalidades de entendimento não existem à disposição de forma pura e dependem em certa medida uma da outra. Basta ver que não podemos nos iludir com teorias desde que nascemos porque nem sequer possuímos uma linguagem que nos permita fazer isso no início. Por outro lado, apenas aprendemos com a realidade fenómenos de ordem imediata, ainda que complexos, e não mecanismos de ordem superior, como os relacionados com a história, com a política ou com o conjunto da sociedade. Ou seja, a nossa abertura para a realidade também é condicionada por instrumentos de criação humana, como a linguagem e teorias explicativas, mesmo que erradas, pois mesmo estas podem nos servir de alavanca para vermos algo que sem elas permaneceria oculto. Palavras e ideias devem tornar-se, no intelectual sério, como que órgãos de percepção, que nos permitem captar estruturas sociais, correntes históricas, estratégias políticas de longo alcance e assim por diante. Então, a compreensão precisa desesperadamente das palavras e da teoria, e ao mesmo tempo tem de transcende-las numa abertura para a realidade, e isto de certa forma emula o próprio ideal científico.
Existem dois riscos óbvios neste processo. Quem apenas queira ficar com a abertura para a realidade terá, no máximo, um conhecimento mudo e muito provavelmente irá, mais tarde ou mais cedo, adoptar alguma teoria pueril para encaixar as sua «sabedoria», iludido de ter atingido algum tipo de iluminação. Por outro lado, os adeptos da “teoria fechada” irão se tornar meros burocratas do intelecto ou, pior ainda, iludir-se de que a realidade está contida na sua teoria e talvez que até tenha sido criada por ela. Obviamente que ainda pode haver um terceiro tipo de risco, que é o da articulação totalmente errada entre as duas formas de conhecimento, como juntar práticas esotéricas de quinta categoria com teorias pseudo-científicas. Pessoalmente, todos podemos correr qualquer um dos riscos, mas o potencial de destruição social é maior no caso dos adeptos da “teoria fechada”, até por estarem frequentemente ligados ao prestígio da ciência.
Existe um critério prático para reconhecer se estamos em presença de alguém que está na ilusão da “teoria fechada” e que serve para percebermos se nós mesmos estamos metidos nesse labirinto. Se for o caso, então existe a compreensão rápida e frequentemente impressionante, onde tudo aparece enquadrado sem falhas. O sujeito que, quase em tempo real, dá uma explicação de um fenómeno complexo não compreendeu esse fenómeno mas apenas mecanizou um processo de adaptação de uma teoria a uns factos escolhidos à medida. A verdadeira compreensão é sempre lenta. Pode partir até de alguma teoria mas temos que fazer uma intensa dialéctica entre ela e a realidade dos factos até chegarmos a um entendimento em que as duas coisas cheguem a algum tipo de acordo, onde fiquem salientados os pontos de obscuridade e de ignorância. Quase 100% dos comentaristas de blogs e da comunicação social ignoram a necessidade de fazer isto e acabam por ser meros propagandistas voluntários ou involuntários.
Pode também acontecer que alguém mostre uma aparente compreensão rápida mas que tenha feito esta dialéctica. Neste caso, há um prolongado trabalho anterior – os propagandistas também são esforçados mas fazem um trabalho de outra ordem – que lhes permite reconhecer que uma aparente nova situação apenas repete algum padrão conhecido, ou então que aquilo que foi identificado como o surgimento de um fenómeno é apenas uma manifestação tardia de algo que passou despercebido às massas. Apenas conseguimos distinguir claramente estas pessoas dos meros propagandistas se já tivermos feito um esforço prolongado no mesmo sentido. Para o leigo é normal que o propagandista diga coisas com “mais sentido”, precisamente porque este lhe faz um apelo emocional usando ideias correntes nas quais o leigo já acredita sem perceber. O verdadeiro intelectual ilumina de outra forma, as suas explicações parecem fazer mais sentido em certa medida, mas também assustam porque exigem que o ouvinte saia do conforto das suas ideias feitas e reconheça que o seu horizonte de compreensão é limitado. Mas nem este critério é muito fácil de aplicar. A nossa ignorância em certas áreas pode ser tão grande que se depararmos com uma “teoria fechada” muito tacanha ainda assim podemos sentir aquilo como uma grande abertura, como um mar de possibilidades e perplexidades, ou seja, que estamos na senda do caminho árduo para a verdade, quando apenas demos o primeiro passo num caminho sem fim. Não há outro caminho para a compreensão a não ser o de estarmos preparados para, a qualquer momento, sermos atirados para o deserto.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Sociedade de eunucos

Os imperadores da antiguidade serviam-se, com frequência, de uma guarda pessoal de eunucos. Não deriva isto de alguma perversão especial ou apenas da tentativa de assegurar que as mulheres da corte estivessem a salvo de investidas sexuais. O eunuco era dócil sem perder a sua força, mas mais importante que isso, ele não era apegado a uma família mas apenas ao seu mestre. Nas modernas sociedades a castração física é coisa considerada repugnante, contudo, as qualidades dos eunucos continuam a ser bastante apreciadas.
Com o surgimento dos meios de comunicação de massas foi possível criar figuras como o “duce”, o “führer”, “o pai dos povos”, que criavam um sucedâneo dos eunucos usando tanto o encantamento como a repressão. E havia ainda os eunucos de elite, as modernas guardas pretorianas dos grandes ditadores, compostas por aqueles que nasceram com uma compulsão irresistível para seguir o chefe e executar os seus desejos mais mórbidos.
A vitória das democracias sobre algumas ditaduras ditou que se considerassem aberrantes práticas como as do culto da personalidade ou a existência de guardas de elite fortemente ideológicas. A democracia admite apenas o cinzento, o morno, chefes sem carisma, mas é uma ilusão achar que a fome de poder desapareceu. Os poderosos já não sobem aos palanques e tentam encantar as massas pela sua palavra, antes escondem-se atrás de políticos amorfos e sem carisma. Então, o culto já não pode ser o da personalidade mas o do próprio sistema, dos cargos de soberania, do Estado que não é nação mas uma espécie de forma platónica. O próprio desprezo a que os políticos são votados serve este propósito, porque realça, por contraste, a perfeição do sistema onde cada um projecta os seus desejos. E os cidadãos da democracia aceitam isto porque já foram todos transformados em eunucos pelo individualismo liberal, pelo Estado social e por toda a engenharia da sociedade atomizada.
Mas os “democratas” não controlam o poder apenas mediante o controlo da populaça de eunucos – que não faz distinção de classe social –, tendo também as suas guardas pretorianas que assustam os pequenos eunucos, tornando assim ainda mais premente a necessidade destes de segurança e de protecção do sistema. Estranhamente, as modernas guardas pretorianas de eunucos parecem não ter ligação com o poder: fazem parte das claques de futebol, integram movimentos de ruptura, e são mesmo os jovens delinquentes sem causa. Ao fragmentarem a sociedade, mas ao mesmo tempo não tendo uma coesão e um projecto de poder concorrente, eles são os melhores protectores de um sistema que vive da fraqueza dos indivíduos.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

O que querem os socialistas?

Se o post anterior está correcto, isso implica que capitalistas e socialistas têm forçosamente de cooperar em alguma parte do trajecto. Está amplamente comprovado o financiamento de movimentos socialistas por capitalistas, mas aquilo de que estou a tratar no momento diz respeito às motivações que, de parte a parte, levam a esse casamento. Naturalmente que os movimentos socialistas, e mesmo comunistas, não são apenas financiados directamente por capitalistas. O apoio financeiro também pode vir da militância de base, de algum tipo de subsidiação estatal interna, de países socialistas e comunistas amigos da causa, e até de Estados liberais que, por algum motivo, achem que lhes será proveitoso, naquela conjectura, fomentar algum tipo de socialismo num determinado ponto do planeta. Quem não percebe a relevância da questão do financiamento do socialismo é porque ainda não parou para pensar na quantidade astronómica de dinheiro necessária para pagar a intelectuais e artistas, para realizar congressos internacionais, para fazer constantes acções de propaganda e mesmo para preparar grupos armados e de “desobediência civil”. Em Portugal, ninguém ainda se preocupou em descobrir quem financia o Bloco de Esquerda, que sem ter a incansável militância comunista, apareceu em cena com uma estrondosa força mediática e gastando rios de dinheiros em “outdoors” por todo o país. Não sendo um partido destinado a ocupar posições de governação mas apenas a criar rupturas sociais, certamente que não é financiado por empresários expectantes fazer negócios com o Estado mas com outras pretensões.

Em certa medida, as ambições do socialista seguem o percurso inverso da evolução dos objectivos do capitalista, tal como a delineei anteriormente. O objectivo final do capitalista – quando já é meta-capitalista – aponta para algum tipo de transcendência, no mínimo para a criação ou manutenção de uma dinastia familiar que englobe a sua vida e vá muito além dela, mas em geral os objectivos são bem mais ambiciosos e apontam para algum tipo de influência sobre a totalidade da sociedade e dos seus destinos. O socialista parte precisamente de um objectivo transcendente, embora ele finja repudiar tudo o que não seja materialismo. Mas o que podemos dizer do varredor de rua que também pode ser um Aristóteles ou um Miguel Ângelo, que os marxistas acreditam ser uma inevitabilidade, da qual eles são agentes? Nunca religião alguma prometeu uma transfiguração tão grande da natureza humana a ser operada num mundo imanente. Isto é próprio na mentalidade revolucionária, que coloca a transcendência dentro do próprio devir histórico, o que se consubstancia na inversão do tempo. Esta inversão significa que o revolucionário, ao invés de considerar a história como um percurso de um passado mais ou menos conhecido para um futuro largamente incerto, considera que o fim da história já é conhecido por ele e esse fim dá um sentido retroactivo ao acontecer histórico, inclusive fornecendo uma justificação plena das suas acções transformadoras, quer estas sejam suaves e graduais, quer sejam brutais e sangrentas.

Depois de desmoralizado o socialismo utópico – que descrevia a sociedade ideal mas não investigou a fundo meios de transformação social – o socialismo “científico” impôs-se, seguindo um caminho inverso baseado nas técnicas de transformação social, permanecendo os fins últimos como uma inspiração tanto vaga como poderosa. Então, num segundo nível, surge um objectivo mais concreto e que diz a cada socialista o que deve ele fazer para modificar a sociedade em que se encontra, por forma a acelerar o movimento rumo à sociedade perfeita. Contudo, como o objectivo é tido como absolutamente inevitável, deixa de ter sentido averiguar se está ocorrendo alguma aproximação ou afastamento em relação a ele. A única coisa relevante é se existe uma transformação social no sentido do afastamento das suas bases históricas. Daí vem a ideia de movimento, de algo que nunca para, de um Avante! Isto quer dizer que, se uma acção socialista transformadora perde o seu vigor, ela deve ser eliminada por outra corrente socialista que tome o seu lugar. Nesta fase, então, o objectivo passa por provocar tanta instabilidade social quanto possível, mesmo que seja necessário sacrificar antigos companheiros de luta, usando todos os meios à disposição. Se isto conduzir a matanças indiscriminadas, à miséria, a campos de concentração, tanto melhor, pois apenas mostra o poder da própria causa, que assim se mostra infinitamente acima da presente condição humana.

Contudo, este abismo socialista, apesar de maravilhar tantos, pode levantar dois tipos de objecção. Desde logo, a história mostra que as gloriosas revoluções sangrentas não se limitam a eliminar os “elementos alienados” e rapidamente enviam para a fornalha os próprios socialistas mais convictos, só sobrevivendo os mais hábeis e brutais. Sim, o comunista pode ter frequentes orgasmos imaginando que está empunhando a metralhadora e eliminando a «reacção», mas ele não ignora que, caso a revolução sangrenta avançasse, muito provavelmente chegaria o momento dele ter que se ajoelhar para receber na nuca o projéctil disparado por algum colega em missão divina. Por outro lado, também é de questionar se a revolução violenta, que Lenine inaugurou, seguia os passos que Marx e Engels delinearam, de um objectivo a ser alcançado de forma progressiva apenas ao fim de muitas gerações. Então, autores como Georg Luckás, António Gramsci, Max Horkheimer ou Herbert Marcuse começaram a estudar formas de implementar a revolução de forma menos brutal mas mais eficaz. Afastavam-se assim dos ditos marxistas estritos, mas apenas cumpriam o seu papel revolucionário ao criar correntes transformadoras que pudessem dar continuidade ao movimento. Juntando estes dois pontos, obtemos um terceiro objectivo do socialista: ele anseia viver numa sociedade capitalista, conservadora até, já que é essa a sociedade que lhe dá toda a protecção, segurança, meios de expressão, de movimentação e associação, bem como lhe oferece o material (instituições, religiões, rituais, sacramentos, linguagem, etc.) que ele irá subvertendo aos poucos, como a criança pérfida que se compraz em ir arrancando cada um dos membros do gafanhoto que capturou.

Enquanto que o capitalista, de certa forma, só pode se comprometer com um novo objectivo quando renega os anteriores, o socialista nunca precisa de abdicar do seu primeiro objectivo transcendente, ou seja, ele pode abraçar ao mesmo tempo a utopia a realizar nos fins dos tempos, a revolução sangrenta e o conforto burguês, porque ele começou logo por aceitar um objectivo que também é um princípio de ordem, por mais aberrante que seja. Isto quer dizer que o socialista terá sempre uma vantagem estratégica em relação ao capitalista, já que, ao contrário deste, ele nunca abdica de nada e não se irá desviar do caminho, porque também ele sabe que não há caminhos, há que caminhar.

Posto isto, não é muito difícil perceber como podem cooperar socialistas e capitalistas. Os meta-capitalistas são os herdeiros dos socialistas fabianos do século XIX, que na altura não viam necessidade de uma luta de classes ou de uma revolução violenta. Como a “nova” estratégia revolucionária também se suavizou, os dois movimentos encontram-se naturalmente, embora também não deixem de ter um certo grau de oposição. Cada um dos movimentos não é propriamente dirigido por uma elite compacta e bem conhecedora da situação, mas é composta por indivíduos imbuídos de uma certa mentalidade e com uma visão limitada dos acontecimentos. Por exemplo, um meta-capitalista irá financiar uma série de grupos socialistas não porque esteja pensar no movimento socialista como um todo mas porque aqueles grupos que ele suporta desenvolvem acções que favorecem, pelo menos aparentemente, a sua agenda. Já os socialistas recebem o financiamento de bom grado, pois mais que ninguém eles valorizam os meios materiais, e vêem aqui a realização da profecia de Lenine, que dizia que os capitalistas teciam a corda que os iria enforcar. Note-se que Lenine é uma figura complexa, que não só foi um dos artífices da revolução violenta como deu vários elementos para a implementação da “revolução lenta”, como “dar um passo atrás para dar dois à frentes, “a estratégia das tesouras”, “o capitalismo como electricidade” ou o “capitalismo de Estado”.

Podemos dizer que a ideia genérica dos meta-capitalistas em financiar os socialistas passa pela criação de uma tal instabilidade – social, moral, anímica, psicológica – para que depois apareça uma elite, composta por banqueiros, farmacêuticas, pelas grandes famílias, por intelectuais comprometidos, engendrando uma solução global para os “problemas no mundo”. Naturalmente que a ideia dos socialistas é serem eles “a solução” e depois irão morder a mão que os alimentou. Se pensarmos que os socialistas são predadores, que vivem naturalmente na instabilidade e que, pelo contrário, os capitalistas dependem do domínio dos instrumentos financeiros e da própria coesão social para obterem a sua segurança e poder, não é difícil imaginar que quando a instabilidade chegar a um determinado patamar sejam os capitalistas os primeiros a ser executados, e com toda a justiça. Obviamente que o quadro real é bem mais complexo que isto. Os artífices do Califado universal assim como russos e chineses não só tentarão aproveitar esta instabilidade como têm contribuído para ela. Não falo propriamente no bloco eurasiano, que é uma realidade presente, porque no futuro nada garante que a Rússia e a China não sigam caminhos divergentes.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

O que querem os capitalistas?

Antes de entrar dentro da questão da organização dos movimentos de massas, creio ser conveniente fazer um (aparente) desvio para assuntos que há muito estavam previstos para entrarem no blog, e que agora podem entrar num contexto talvez muito mais apropriado, além de servirem para elucidar alguns factores chave da condução das massas. Em primeiro lugar, vou tentar mostrar o que é a mentalidade de um capitalista. Esta é uma figura que os blogues de “auto-referência” apenas abordam através de abstrações económicas, seja para louvar ou amaldiçoar, ou então mediante alguns chavões sociológicos e psicológicos sem profundidade alguma. Vou focar-me num aspecto central – o objectivo a que tendem os capitalistas – e, por motivos de exemplificação, escolherei 3 situações que tentam ser paradigmáticas. Naturalmente que é difícil de encontrar estes tipos «puros» assim na realidade, já que o ser humano está sempre nalgum tipo de transformação mesmo que não o perceba.

Comecemos por considerar um jovem empreendedor pronto para lançar o seu negócio. Na sua adolescência, enquanto os amigos apenas sonhavam com bebedeiras ou, pior, em obter algum tipo de aprovação grupal, ele já tinha um sonho, mas um sonho realista: tinha ambição de enriquecer a partir dos seus próprios talentos, sem se deixar arrastar pela choradeira derrotista do seu meio cultural e social. Passou anos a estudar formas de investimentos e durante horas sem fim burilou uma ideia que parece ter tudo para vingar. Teve o cuidado de desenhar um sistema de negócios completo, para que a sua boa ideia não ficasse a boiar num limbo de optimismo ingénuo. Olhou para a legislação, para os regulamentos e até conseguiu obter financiamento para o projecto. Ele não quer um subsídio do Estado porque confia que o mercado livre conseguirá valorizar o seu produto. Também não quer que o Estado crie regulamentação artificial, a partir da qual poderia conceber um produto destinado a resolver as necessidades assim criadas, dado que ele acredita mesmo que vai dar algo às pessoas que elas realmente precisam. Ele é, neste momento, verdadeiramente um entusiasta do capitalismo – do laissez-faire, do liberalismo económico, do livre comércio, da concorrência, como quiserem – mas, na verdade, ele ainda não é um capitalista.

Avancemos no tempo, e 15 anos depois o nosso homem não só continua no mercado como o seu negócio já possui uma dimensão nacional, exportando até para vários países. Dado que a maioria das empresas acaba por falir, poderíamos supor que o sucesso do nosso capitalista – agora já é um de pleno direito – o tornou num optimista férreo do sistema capitalista, talvez apenas mostrando um optimismo mais sereno devido a uma idade mais madura. Mas dificilmente assim será, por várias razões. Desde logo, nenhuma teoria liberal explica o mercado como ele realmente é, sobretudo quando tentamos transpor as reflexões de autores anglo-saxónicos para outros contextos, e aquelas teorias que tanto o entusiasmaram agora parecem um pouco vazias por deixarem tantos factores relevantes de fora, isto sem falar dos próprios liberais, sempre tão prontos a defender algumas abstracções mas que raramente se dão ao trabalho de estudar a teoria a fundo e muito menos de identificar as suas lacunas. Em termos mais práticos, ele sabe que nem tudo conseguiu atingir foi fruto do seu talento. Recorda que o factor sorte foi determinante em certas alturas, e quando teve que se expandir quase tudo poderia ter ido por água abaixo. Além disso, não conseguiu estar assim tão longe do Estado como imaginava, já que este é um dos seus clientes regulares. O mito recorrente diz que, nesta altura, o nosso homem se tornou num capitalista ganancioso, ávido de lucros a todo o custo. Sem dúvida que isto pode ocorrer, mas há um factor que é certamente mais relevante: um medo enorme de perder tudo, quer seja para um grande grupo internacional ou então para um jovem dinâmico, como ele foi, e que agora pode entrar no mercado a concorrer com ele, porque sabe que não tem a mesma energia e criatividade de antes para o enfrentar.

Paradoxalmente, agora que o nosso homem é um verdadeiro capitalista, ele passou a odiar o capitalismo. Desta forma, ele vai tentar fazer cada vez mais negócios com o Estado, ainda que seja para vender algo que não sirva para nada, na esperança de ali ter um cliente vitalício. Não vai recusar subsídios públicos e até os poderá exigir em nome do interesse estratégico que o seu negócio supostamente representa. Também vai querer que o Estado “regule” o mercado, ou seja que crie legislação à medida dos seus produtos – seja em nome da segurança, da qualidade, ou por qualquer outra razão –, ao mesmo tempo que dificulte a entrada no mercado de novos competidores. Pela mesma razão de limitar a concorrência, não se vai preocupar com o aumento de impostos, que não o afectarão porque o Estado de certa forma acaba por ser parceiro do seu negócio, e aquilo que tira com uma mão dá em duplicado com a outra. Ou seja, o que o nosso capitalista quer é um socialismo – obviamente sem cair na ruptura marxista-leninista –, que, se bem afinado, até lhe é bem mais benéfico e “moralmente justificado” do que o corporativismo.

Vamos dar mais um passo e supor que outros 15 anos passaram. O negócio progrediu ainda mais, e o nosso homem agora tem um império, não apenas em termos empresariais mas também em termos de contactos pessoais ou de possibilidades de influência. Não é apenas a família que se expandiu, nem a quantidade de amantes ou de clientes internacionais. A determinada altura, o nosso homem foi convidado a participar de certos grupos discretos, aos quais sempre tinha sido avesso, mas sábios conselheiros garantiram-lhe que aquela era a via de resolver algumas das suas inquietações. Uma delas é a inquietação material, que fica definitivamente relacionada com a ligação a oligopólios internacionais. Finalmente, ele percebeu algo que já vinha intuindo há muito tempo: a economia é irrelevante no mundo moderno para quem tem o domínio dos instrumentos financeiros e o poder de escolher políticos e ditar legislações. Mas, ao mesmo tempo, esta segurança material total provoca um vazio, porque as ambições que ele tinha, primeiro de dinheiro, depois de estabilidade económica, deixam de ter sentido, já que estão asseguradas à partida. Então, é-lhe feita uma segunda revelação, que vai de encontro a outra sua inquietação mais recente advinda do avançar da idade e da perda de vigor físico. A inquietação está relacionada com a morte, o sentido da vida e a continuidade familiar. E a revelação diz que o dinheiro, a política e as leis são instrumentos para que aquele grupo, a que ele agora pertence, possa mudar o mundo, manipular a natureza humana e, em alguns casos, até para tentar encontrar formas de espiritualizar a matéria. Então, quando o nosso homem chega a meta-capitalista, ele passa a querer algo como um super-socialismo, que é também uma espécie de totalitarismo religioso planetário, desde que o comando fique nas mãos daquela elite, que já há muito consegue garantir a continuação de poderosas dinastias familiares.

Apesar de estar a fazer um exercício teórico, os meta-capitalistas realmente existem e tentam fazer algo como o que aludi. Podemos questionar até que ponto pode resultar uma combinação que mete elementos tão contraditórios como: uma nova religião universal – uma espécie de papado laico –; o controlo total socialista; os instrumentos capitalistas e financeiros; e ainda a democracia liberal. Na verdade, trata-se de um casamento quádruplo necessário, já que cada uma destas coisas não consegue sobreviver nas suas formulações puras mas ao mesmo tempo está sendo feita uma tentativa implementá-las desta forma. Assim, torna-se necessária a existência das outras três partes. Digamos que isto é viável até à extinção da espécie humana, porque se trata da criação de um monstro de quatro cabeças, cada uma delas um ersatz de alguma função existente nas sociedades, mas enquanto que as funções naturais existem nos seus domínios respectivos, neste caso todas as “cabeças” entram em tudo – tudo se tornou democrático, comercializável, alvo de regulamentação e da religião do politicamente correcto –, cada uma delas provocando distorções insustentáveis, mas as quatro juntas dão um nível mínimo de coerência global através das limitações que umas impõem às restantes. Tal como a hidra, de pouco serve amputar uma destas cabeças isoladamente, porque logo outra surge em seu lugar.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

O movimento das massas (2)

No post anterior abordei dois tipos de movimentos de massas – greves e manifestações –, começando por distinguir dois planos – o dos participantes e o dos organizadores –, fazendo algumas considerações sobre a ligação entre eles. Vou agora entrar dentro da óptica dos participantes nestes movimentos, deixando para depois o plano da organização.  

Novamente, é mais fácil começar pelo fenómeno da greve, focando-me no caso português, do qual tenho mais evidências. Neste caso, a participação, como tinha dito, revela-se pela ausência no local de trabalho, não é preciso “dar a cara”; a pessoa pode aproveitar para ir à praia ou evadir-se no centro comercial. Pelo contrário, furar a greve pode até exigir uma boa dose de coragem devido a eventuais piquetes de greve. A adesão à greve de pessoal militante e dos facilmente sugestionáveis não carece de grandes explicações, mas acontece que hoje há, entre os grevistas, muitos indivíduos habitualmente avessos a estes movimentos. É bastante redutor achar que se trata apenas de uma reacção daqueles que se encontram acomodados à sombra dos direitos adquiridos, agora em risco. Num país carregado de impostos, a dinâmica de criação de emprego é muito reduzida e isso obviamente que cria em grande parte da população uma necessidade de segurança acrescida. Além disso, nos tempos que correm, não só a taxa de desemprego é elevadíssima como ninguém se atreve a dizer que ela vai baixar significativamente num prazo reduzido. Diariamente surgem notícias de estudantes que terminam os seus cursos superiores e imediatamente vão para o estrangeiro, já que por cá não vão conseguir se empregar num lugar conforme as suas expectativas mínimas. Face a isto, é natural a apreensão de quem tem 40 ou 50 anos e se encontra endividado.

Compreendendo a angústia de muitos portugueses, poderíamos perguntar, de seguida, para que servem greves e manifestações. A greve só cumpre o seu fim se causar algum tipo de incómodo. Um exemplo de uma situação natural de greve ocorre quando um grupo de operários se recusa a trabalhar na fábrica – seja devido a baixos, excesso de horas de trabalho ou falta de condições de segurança –, sendo as reinvindicações comportáveis para a empresa e, a longo prazo, esta até pode vir a ter mais lucro. Contudo, as greves actuais destinam-se a provocar um incómodo não apenas localizado mas transversal a toda a sociedade – como acontece com as greves na educação, portos e transportes –, e em que é muito duvidosa a justiça das reinvindicações. São greves que não visam um progresso mas uma imobilização ou mesmo a uma destruição.

Quando passamos para as manifestações, a coisa ainda fica mais obtusa. É natural que as pessoas fiquem indignadas pelo rumo que as coisas vão tomando e que desconfiem dos governantes. Mas destas manifestações que têm ocorrido não pode sair qualquer alternativa viável (isso não quer dizer que não existam alternativas viáveis, mas estas não são do interesse dos organizadores das manifestações), porque ou se vai trocar estes governantes por outros do mesmo calibre ou então cai-se numa deriva marxista que pode lançar o país numa espiral de miséria e de terror sem fim.

Pode parecer que a motivação é apenas uma voragem incontrolável pelo abismo. Mas para assim ser, tal implicaria que o cidadão comum não apenas compreende a situação do país em profundidade como entende quais são as verdadeiras consequências de greves e manifestações, levadas aos seus fins últimos. Não só o cidadão comum está longe de perceber isto como as elites também não estão em melhores condições, apenas disfarçam a ignorância com uma verborreia insuportável. O ponto de partida é simples: o indivíduo está apreensivo sobre o seu futuro por razões não só objectivas como evidentes; e ele “sabe” que a solução está na mudança e no «futuro», acreditando cegamente neste “valores” devido à contaminação da mentalidade revolucionária. Quem dá voz a estes descontentes? Naturalmente aqueles que partem da emoção negativa e tentam transmutá-la numa esperança de um futuro radioso. Quando os partidos do “centrão” apostam nas técnicas de comunicação e falam de esperança, eles estão tentando fazer algo assim, mas esta é uma ilusão que apenas resulta em tempos de normalidade democrática. As pessoas sabem que o “centrão” pode oferecer: na melhor das hipóteses, dele apenas podemos esperar algo mediano e certamente que não tem competência para lidar com uma verdadeira crise. Quando esta chega, a dimensão das esperanças tem que ser proporcional à amplitude do desespero, e este é o terreno dos partidos radicais revolucionários que possuem a infra-estrutura – material e intelectual – necessária. Portugal só não está em bancarrota por intervenções artificiais, e não deu um único passo desde a assinatura do memorando da troika para poder sair desta situação. Os radicais oferecem uma solução que é objectivamente suicida, mas psicologicamente é uma boa solução porque está colocada para além do tempo. Trata-se realmente de manipulação mental, da colocação de um interdito sobre a meditação das presentes condições dentro de um campo de espaço e tempo realmente existente. Dito de forma mais simples, é fazer com que o sonho esmague o raciocínio.  

Em parte, a própria democracia torna isto inevitável. Em teoria, o discurso retórico dos políticos daria elementos suficientes para os cidadãos fazerem uma dialéctica e assim chegarem a um nível de conhecimento muito mais razoável, mediante a confrontação das hipóteses em cima da mesa, e desta forma o debate na sociedade civil iria obrigar políticos e governantes a tomar decisões cada vez mais acertadas, excluindo das eleições os piores políticos por mera selecção da natureza humana. Mas para isto se verificar tinham que se reunir duas condições. Por um lado, o cidadão tinha que ser treinado na arte da dialéctica, e se percebemos que são raros os juízes que o são, ficamos conversados sobre este assunto. Por outro lado, os discursos dos actores políticos tinham de ser verdadeiramente retóricos, ou seja, teriam quer partir das verdadeiras crenças públicas e procurarem hipóteses razoáveis, sem entrar em qualquer tipo de manipulação. O que vemos é que a maioria dos discursos são erísticos – partem das crenças que se querem induzir no público e não das que este realmente tem, como acontece quase sempre que alguém começa por dizer “como você sabe” –, ou então são meras manipulações verbais e emotivas.

Ou seja, a democracia abre o debate tal como Pandora abriu a sua caixa, ficando todos os males à solta e restou apenas a esperança, que é aqui metáfora para a crença revolucionária de um futuro melhor. O debate público tornou-se tão caótico que a sociedade se torna hoje para nós tão temível como era o cosmos para o homem primitivo. Tal como o primitivo, entregamo-nos ao mito, ao discurso poético, mas não entendemos que estamos no mero terreno das possibilidades – tentando encontrar um princípio de ordem – e cremos que os nossos sonhos têm a força provante dos argumentos lógicos. Daqui surge naturalmente a dúvida se a democracia é inviável em si ou se precisa apenas de ser corrigida de alguma forma. Não tenho uma resposta definitiva para isto, embora pretenda investigar o assunto, sem grandes ilusões de poder ser totalmente bem-sucedido.  

Acabei por não focar muito a perspectiva realmente interna do participante numa manifestação, mesmo porque não estou actualmente em condições de fazê-lo em profundidade. É também importante fazer sempre uma contextualização do assunto, para não considerar o “manifestante em si”, como se fosse o arquétipo. Para além dos elementos que referi, podemos ainda juntar outros factores que suscitam maior “fervor contestatário”. Há, entre muitas outras, duas questões de fundo que lançam descrédito sobre as possibilidades de melhorar a situação por vias normais (a manifestação é uma exibição de força que visa, em última análise, uma alteração política a ocorrer por vias não convencionais).

Por um lado, existe a bem conhecida armadilha da maioria que é capturada pelos próprios benefícios insustentáveis que alcançou: não é possível a situação continuar como está por muito mais tempo, mas os sacrifícios isolados também não resolvem nada. O problema apenas pode ser resolvido mediante uma alteração colectiva e sem apelo, que a própria democracia torna praticamente inviável, e por isso está sempre latente o desejo de um regime mais duro. Daqui resulta também uma ambiguidade ou dualidade na alternativa radical revolucionária. Se parece que o seu foco é o sonho fora do tempo, não passa despercebido a muitos que, na prática, os revolucionários no poder vão começar por impor políticas de verdadeira austeridade, ou então criarão um caos tal que tornarão inevitável um pronunciamento militar que restitua a ordem.

 A outra questão é mais subtil e tem a ver com um certo desencanto em relação ao estilo de vida moderno, nomeadamente a profusão de mitos como o da “realização profissional”. O trabalho já não é visto como um dever moral mas como a substituição da própria espiritualidade (em conjunto com outros mitos modernos, como o cultivo do individualismo e do colectivismo), o que deixará infelizes 99,99% dos funcionários que não cheguem a ter um posto em algum conselho de administração. Isto pode parecer uma questão puramente sociológica, mas a própria democracia tem tendência a tudo politizar, pelo que se cria a crença e até a necessidade – ou mesmo a urgência – de resolver todos os problemas, inclusive os da intimidade, por via política e legislativa.

Face a esta contextualização mínima, vou intentar um esboço rudimentar sobre o que é uma manifestação política. Convém logo por fazer uma distinção, que não é tão irrelevante quanto parece, entre uma manifestação e um ajuntamento de pessoas para ver um concerto ou para participar em algum tipo de celebração pública. Nestes casos, embora exista um efeito grupal, ele é sempre mediado e até delimitado pelo objecto do evento, seja o espectáculo em si ou a comemoração de uma efeméride. Podemos incluir neste género algumas manifestações religiosas que tenham um objecto concreto e inequívoco para todos, como certas procissões. Contudo, outras manifestações religiosas apelam ao transcendente, a algo que não pode ser captado inteiramente por ninguém e, segundo alguns, para algo que não está efectivamente presente mas é fruto de projecção mental de cada um e “confirmado” pelo reforço grupal. As manifestações políticas parecem entrar neste enquadramento, e esta será uma das razões para alguns considerarem as ideologias como religiões políticas, porque elas se materializam frequentemente na forma de manifestações políticas que, mesmo tendo um pretexto alegado, insistem na fórmula “é muito mais do que isso”, o que remete de novo para o sonho atemporal.

A analogia entre religião e ideologia é muito sugestiva para alguns, sobretudo para aqueles que odeiam tanto uma como outra, mas acaba por ser muito limitada. A função da religião é elevar a pessoa em termos, espirituais e até intelectuais, e sabemos que se de uma manifestação religiosa saírem actos terroristas é porque algo correu no sentido oposto do que devia, e os indivíduos ao invés de se engradecerem ficaram dissolvidos num colectivo que abdicou da transcendência mas fala em nome dela para perseguir fins puramente imanentes. Contudo, a manifestação política visa apenas este fim, ela não sobrevive um instante se cada indivíduo tentar seguir um verdadeiro caminho, e usa o sonho atemporal como símbolo da transcendência, usada em sentido psicológico, já que tem que repugna-la oficialmente. Tanto a manifestação política como a manifestação religiosa deturpada iludem os indivíduos de se agigantarem ao “receberem” temporariamente a força do colectivo, já que naquele momento sentem, pelo menos, toda a potência destrutiva do grupo. Obviamente que se tratam de formas de alienação que podem ter efeitos irreversíveis.

Segundo esta descrição, terei que distinguir a manifestação política – que não tem um objectivo realizável no tempo – de outro tipo de ajuntamentos que podem ter fins políticos, como certas passeatas ou marchas de protesto ou mesmo celebrações de datas de importância nacional. Nestes casos, o objectivo é concreto, não existe a ilusão de transcendência e o efeito grupal é orgânico, situa melhor a pessoa no seu contexto e não a atira para um limbo atemporal. Numa sociedade saudável, as manifestações deste tipo serão praticamente as únicas existentes, ao passo que numa sociedade alienada grassam as manifestações políticas, embora nem sempre seja fácil distinguir as primeiras das segundas. As primeiras manifestações não ocorrem tanto por necessidade mas mais por dever, por honra e até por orgulho. Porque são tão apelativas as manifestações políticas aos indivíduos perdidos na vida? Porque estes têm muitas necessidades por satisfazer e têm carência que alguém lhes dê um contexto coerente, mesmo se totalmente falso, além de estarem sempre à míngua de aprovação grupal. A manifestação política oferece tudo isto e o sonho atemporal é um recipiente em que se podem projectar todas as vontades, que ali nunca parecerão desavindas. Mas enquanto que uma ditadura pode criar um aparato que convoca, pela demonstração de força, as pessoas a aderirem a uma manifestação política, em democracia opera o fenómeno da criação de necessidades e da concomitante crença de que estas, sejam de que género forem, são naturalmente supridas por via política.

Este esboço não visa, obviamente, tentar explicar o fenómeno na sua dimensão total. São apenas considerações que podem ser feitas pela mera interpretação dos factos à disposição de qualquer um. Sem fazer algum tipo de reflexão deste género, penso que de pouco servirá a leitura das obras a respeito, desde os elementos dados por Heródoto até passar pelas obras clássicas de Gustave le Bon.