terça-feira, 19 de novembro de 2013

Quanto custa salvar Portugal?

O título deste post pode dar a entender que vou falar dos milhões da troika ou algo assim, mas nada disso. Para evitar uma situação de bancarrota, Portugal recebeu um empréstimo de 78 mil milhões de euros. Não se trata de uma verdadeira salvação do país porque nada garante que os erros cometidos não voltem a ocorrer. Certamente que era necessária uma injecção de dinheiro (o que não implica uma aceitação do memorando da troika) para fazer face a uma catástrofe iminente, mas se nada se alterar na consciência das pessoas, cedo precisaremos de igual ou superior quantia, de modos que o nosso endividamento transcenderá o crónico. Então, a salvação a que me refiro de Portugal tem a ver com um saneamento intelectual e cultural. Mesmo admitindo que existe massa humana com qualidade e carácter necessários para o empreendimento, estas pessoas encontram-se dispersas e presas a outras actividades, pelo que lhes resta pouco tempo para darem o seu contributo, além de não terem orientação para saber como poderiam ser mais úteis. Então, seria literalmente necessário contratá-las para que possam estar totalmente dedicadas à tarefa de salvar Portugal. Fiz umas contas para um projecto de duração de 10 anos (se após esse período nada de notável tivesse ocorrido, o projecto seria um falhanço) e fiz uma estimativa de custos: 100 milhões de euros. Aqui se incluiria:

1. Um Centro de Estudos: com cerca de 20 intelectuais, cujos estudos incidiriam sobretudo na história, da filosofia e na verdadeira ciência política, mas também com intelectuais conhecedores de outras matérias, como a economia ou o direito. A ideia é sobretudo desfazer alguns mitos criados ao longo de gerações e expor algumas fraudes intelectuais em voga, para além do trabalho específico dentro de cada área. Estão também previstas algumas despesas específicas para alguns estudos especiais.

2. Um Grupo de Guerra Cultural: também com cerca de 20 pessoas, não tão especializadas como os anteriores mas treinadas para actuarem diariamente e em cima dos acontecimentos nos jornais online, nos blogues mais visitados, na Wikipedia (muitas crianças consultam-na para trabalhos de escola), etc. Para além disto, fariam mais duas tarefas muito importantes mas discretas. Iriam mapear a verdadeira estrutura de poder em Portugal, incluindo as ligações ao exterior, pelos rastos que eles vão deixando, desde os grandes financiadores até aos jornalistas que fazem trabalhos especializados, passando pelas ONG, sociedades secretas, etc. Outro trabalho, seria a análise dos programas políticos em circulação, sejam nos partidos, seja nas universidades ou outros fóruns, sendo que análises mais aprofundadas devem ter a participação dos intelectuais do primeiro grupo.

3. Uma Biblioteca e um Centro de Documentação: destinados a servir de apoio aos grupos anteriores. A biblioteca devia apontar para cerca de 100.000 livros “normais” cobrindo todas as lacunas existentes no mercado e em muitas bibliotecas, mais cerca de 10.000 raros, além de cerca de 100 enciclopédias. Os números são relativamente modestos mas o objectivo não é criar uma biblioteca genérica mas uma que esteja especializada em algumas áreas chave e na própria cultura clássica. O centro de documentação não só englobaria todo o tipo de documentos que não são livros como as próprias publicações efémeras que possam conter dados úteis ao mapeamento da estrutura de poder, além de documentos que possam ser úteis para uma caracterização sociológica da sociedade.

4. Uma estação de radio: ao que se pode acrescentar, ou substituir eventualmente, uma radio online. Em geral, o público radiofónico é mais conservador que o público televisivo, mas é um meio que está muito mal aproveitado, e tem a vantagem de ser muito menos oneroso do que entrar nos canais televisivos.

5. Um jornal online: não só para dar informação de confiança, como possa servir de watchdog de blogues, televisões e outros jornais. Trata-se de um prolongamento e de um complemento da acção do Grupo de Guerra Cultural.

6. Uma revista mensal impressa: com artigos de nível de excepcional mas tentando ser ainda acessíveis a um público alargado mas exigente.

7. Uma editora e uma livraria: a editora devia ter uma tripla vocação – voltar a editar obras importantes que saíram fora de circulação, dar voz a autores com valia que estão na sombra e publicar obras fundamentais traduzidas em falta. Devem estar cerca de 20 tradutores a trabalhar em contínuo, mais alguns convidados para trabalhos especializados, sendo possível ainda aceitar traduções de particulares que mostrem alguma competência. A livraria deve ser um local de excepção, não só livre das execráveis novidades mas também extirpada de viés ideológico, dando permissão de entrada a todas as correntes políticas e expressivas. O espaço deve também estar associado a um auditório.

8. Um auditório e palestras trimestrais: as palestras devem ser dadas quer pelos intelectuais do grupo, quer por especialistas de nível internacional, numa espécie de ciclo de conferências. Para além destes eventos de peso, o auditório pode ser usado para outros eventos, como o lançamento de livros, projecção de filmes, aulas, cursos de formação, etc.

9. Outras instalações de apoio: não apenas salas de trabalho e gabinetes específicos, mas também quartos de alojamento para receber estudantes e professores visitantes, refeitório, etc. Um objectivo é precisamente poder dar cursos quer sobre matérias base actualmente desprezadas (cultura grega, latim, filosofia, história) mas também sobre matérias específicas importantes para compreender a sociedade actual, nomeadamente as ligadas à guerra cultural e à história contemporânea.


O custo que estimei para estes nove pontos, de 100 milhões de euros, inclui infra-estruturas, recursos humanos, manutenção e equipamento, mas naturalmente que nem todos os factores foram tidos em conta. Não foram contabilizadas eventuais receitas que algumas destas actividades possam fornecer. Não é um projecto empresarial porque nem vale a pena perder tempo com os nossos empresários de “topo”, que são coniventes com o regime existente. Trata-se de um custo elevado para um país do tamanho de Portugal, mas seria relativamente insignificante para o Brasil, onde não seria necessário fazer uma coisa muito maior do que isto para ter um impacto semelhante, se abstrairmos outros factores. Obviamente que se trata apenas de um exercício especulativo, mas serviu logo para perceber que o custo de fazer uma coisa que considero que possa ter algum impacto é muito maior do que suponha à primeira vista. Com o nosso nível de impostos, para pagar às pessoas condignamente, cerca de ¾ do total teriam que ser reservados a salários. Tudo isto poderia já estar a ser feito se as universidades, institutos e fundações estivessem a fazer aquilo a que nominalmente se propõem.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A sintomatologia histérica

A vida moderna convida ao eremitismo porque as pessoas parecem que andam parvas e não se consegue ter uma conversa decente a não ser mediante a repetição de lugares comuns. O problema está na dificuldade que muita gente tem em perceber as coisas mais óbvias, e não me refiro apenas aos estultos que não conseguem acompanhar um raciocínio elementar mas sobretudo àqueles, especialmente os dotados de um intelecto treinado, que não conseguem aceitar os dados brutos da realidade imediatamente acessíveis aos sentidos, incluindo as acções que eles mesmos produzem, ou seja, àqueles que “não conseguem ver um boi à sua frente”. Não se pode dizer que seja uma queda somente devida à moderna educação ou ao excesso de “informação”, porque a mutação deu-se também em pessoas que já não estavam em idade escolar, além de que os sintomas são muito menores em alguns países em que existe a mesma psicose informática.

O sintoma a que me refiro é mais propriamente o da histeria disseminada. O histérico é aquele que, na fórmula compacta do filósofo Olavo de Carvalho, não sente o que ele vê mas vê o que ele sente. Andrew Lobaczewski, no livro Political Ponerology, identificou o fenómeno da disseminação da sintomatologia histérica sob domínio de lideranças psicopáticas. George Orwell já tinha descrito o fenómeno de forma hiperbólica no livro 1984, e certamente que é nos sistemas totalitários que podemos mais facilmente observar o processo decorrendo. Enquanto o psicopata no poder mente sabendo que o faz, o histérico mente para se encaixar na situação constrangedora em que se encontra e depois acaba mesmo por deformar a sua divisão das coisas. O fenómeno também ocorre de forma maciça nas democracias, embora seja mais difícil de identificar, não só porque aqui é usado um conjunto disperso de meios mas porque os psicopatas que efectivamente detém o poder não são facilmente identificáveis, não podendo ser mapeados directamente pelos cargos de governo do país. Contudo, creio que em Portugal o fenómeno é ainda mais insólito, por razões que apresentarei abaixo.

Não é difícil de identificar o fenómeno da liderança psicopática e da disseminação da sintomatologia histérica no caso do governo de José Sócrates. O antigo primeiro-ministro usava a estratégia, aparentemente pueril, de se vitimizar ante qualquer acusação que recebia, ao mesmo tempo que não tinha pudor em usar os meios do Estado para perseguir os seus adversários. A determinada altura uma sondagem (penso que já me referi a ela neste blogue) indiciava um facto assombroso: os portugueses achavam que Sócrates era corrupto mas que podia perfeitamente continuar a governar. Note-se que, neste caso, a visão deformada não se aplica tanto a Sócrates mas mais ao papel do próprio governante. Contudo, José Sócrates não tinha um poder absoluto e só conseguiu obter tanto sucesso em “histerizar” os portugueses porque herdou um processo que já vinha decorrendo há muito tempo. Nesta altura, seria de esperar que fosse culpar a hegemonia socialista mas, neste caso em particular, creio que há um elemento muito mais preponderante e que pouquíssimos considerarão de relevância política: o futebol.

O futebol português tornou-se numa palhaçada indescritível e não há um único resultado desportivo que deva ser considerado credível. Mas o que é relevante para este caso é a permanência de certas lideranças desportivas – não somente ao nível dos clubes – que usam de todo o tipo de esquemas ilegais mas que a justiça oficial nunca pune, mesmo quando a corrupção é evidente, a que se juntam os comentadores desportivos especialistas a justificar o injustificável. As discussões entre os adeptos de clubes adversários passaram das normais picardias, em que ninguém se levava muito a sério, para uma crença total naquilo em que se defendia. Sobretudo, as vitórias desportivas e a impunidade oficial santificaram a corrupção, a mentira, as putarias e a violência. Isto não seria especialmente grave se ficasse confinado aos adeptos mais fanáticos e à própria temática do futebol. Mas gradualmente espalhou-se, por todos os adeptos do futebol e mesmo entre aqueles que nem gostam deste desporto, a lógica de que “se alguém pode fazer algo impunemente então ele deve mesmo fazer aquilo”. Inevitavelmente, esta lógica deturpada acabou por aparecer como válida para outros domínios, desde que aparecesse alguém com a suficiente falta de vergonha na cara para a encarnar, como aconteceu como José Sócrates.

Podemos tentar achar justificações para o estado calamitoso em que Portugal se encontra na Inquisição, no Marquês de Pombal, nas Invasões Francesas, na Revolução Liberal, na queda da monarquia, no Estado Novo, no 25 de Abril e no PREC, na entrada para a CEE, no Euro, mas hoje estou firmemente convicto de que tudo isto se torna irrelevante em comparação com a revolução das consciências que o fenómeno do futebol operou dos últimos 30 anos. Sei que ao dizer isto pareço estar a proferir uma das maiores barbaridades que alguém já disse em língua portuguesa, mas creio que quem queira estudar o fenómeno sem preconceitos chegará, em poucos anos, à conclusão de que o futebol operou uma devastação avassaladora nos padrões éticos e na inteligência (entendida como capacidade de conhecer a realidade) dos portugueses.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Sinais dos tempos

Os jovens que andam de calças descaídas talvez não saibam que este “hábito” começou por ser uma forma de os presidiários norte-americanos sinalizarem a sua disposição para serem sodomizados, naturalmente com aquela delicadeza que caracteriza os homens encarcerados. Mas mesmo sem conhecer esta origem pré-histórica (para os jovens, tudo aquilo que aconteceu há mais de seis meses é colocado numa origem mítica dos tempos, do qual pouco se sabe e pouco se deve saber, devido ao risco de ostracização), qualquer um percebe intuitivamente que esta “moda” tem algo de submisso, não é apenas um pormenor estético. O sujeito de calças descaídas tem de andar de forma específica, o que limita os seus movimentos e a capacidade defensiva, além de não poder ter a coluna direita nem a cabeça verdadeiramente erguida. Fisicamente e psicologicamente, ele coloca-se numa posição de inferioridade, como o lobo que mete o rabo entre as pernas para suscitar a condescendência do macho alfa.
Podemos questionar o que fez a escola e a indústria da ilusão para levar os jovens naturalmente a uma postura derrotista e humilhante. Contudo, antes disso, penso que deviam ser procuradas causas mais “próximas”. Os nossos jovens não teriam aderido tão facilmente à postura das calças descaída se não vissem o exemplo dos seus pais constantemente com as calças arreadas, falando em termos metafóricos. Começa logo por, na maior parte dos lares, serem as mulheres a “vestir as calças”, enquanto os homens se tornam cada vez mais presenças amorfas e indefinidas. A luta moderna contra o “sexismo” acabou por criar diferenças de género de uma dimensão nunca vista, ainda para mais sem qualquer relação com as inclinações naturais das pessoas. Já não há uma descoberta do que é ser mulher e ser homem, apenas a aquisição de um papel social ditado pelo politicamente correcto, que não é apenas estúpido mas também infinitamente variável, colocando as pessoas sempre numa instabilidade que as deixa medrosas e, assim, mais dependentes do politicamente correcto.

Por outro lado, os jovens também se acostumaram a ver os pais “de quatro” em muitas outras situações. Falam mal do governo mas têm uma subserviência canina ante tudo o que o Estado pede. Os jovens habituaram-se a ver os pais desde sempre a baixar as calças para os patrões abusadores, para os vizinhos desrespeitosos, para os condutores desvairados, para os consumidores trogloditas nos supermercados e assim por diante. A educação caseira passa a mensagem de que o fundamental é a adaptação às situações, e que essa adaptação se faz sempre cedendo, mesmo se tivermos de abdicar de coisas importantes. Paradoxalmente, o jovem chega à adolescência com desejo de rebeldia mas a sua forma natural de pensar e agir é o conformismo mais rasteiro. Podemos perguntar que tipo de adulto sairá daqui, e a resta é simples: ele não chegará a adulto.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Political ideology choice for dummies

Caro mancebo político,


Se ainda não escolheste uma ideologia política para o resto da vida – a idade ideal para isso acontecer é aos 17 anos –, dá-te por felizardo porque encontrarás aqui um pequeno manual que irá dar-te todas as indicações nesse sentido.


1. Quem és tu?

Como todas as pessoas de tenra idade, inevitavelmente és um idiota. Mas isto não é grave desde que os outros não percebam. Isto pode não te parecer uma grande instrução, mas o que quero dizer é que não deves tentar dar um passo maior que a perna e, sobretudo, nunca teves tentar descobrir algo por ti mas sempre seguir algo já pronto.



2. Como funciona o mundo?

A realidade social e política é completamente arbitrária, não há soluções melhores ou piores, tudo é igualmente defensável ou condenável. Talvez isto não seja bem assim, mas seria necessário muito tempo e seriedade para descobrires a verdade, pelo que não vale a pena. Além disso, irás perceber que a ignorância em relação aos aspectos fundamentais da vida e da sociedade é muito importante para tomar decisões rápidas e sem problemas de consciência.



3. Que ideologia devo escolher?

Deves escolher a ideologia que responda de forma mais rápida às tuas frustrações e que te permita sempre culpar algum inimigo. Sugiro algum tipo de socialismo: (1) marxismo, caso sejas um jovem de voz grossa e não te importes de colar cartazes e trabalhar na Festa do Avante; (2) socialismo fabiano, caso tenhas uma voz efeminada e uma pele delicada; (3) marxismo cultural, caso queiras comer gajas fáceis e fazer uns “riscos” de graça.



4. Como defender a tua ideologia?

Deves começar por justificar a tua escolha ideológica para ti mesmo: “a minha ideologia está certa porque eu sinto que sim”. Sempre que comeces a ter dúvidas, deves parar, respirar fundo e pensar em alguma figura ou classe social em relação à qual tenhas muito ódio, e assim as dúvidas irão se desvanecer. Os teus argumentos devem ser escolhidos de forma a sentires que és melhor do que as pessoas comuns e que entendes coisas que elas não podem entender. Tudo isto pode ser facilmente absorvido em grupo, além de que uma ideologia é tanto melhor defendida quanto maior o número de pessoas que conseguem gritar em conjunto a seu favor. Concentra-te no som e nas vibrações que as palavras de ordem te provocam. Quando falares para leigos, nunca te preocupes em dar grandes justificações, porque se trata de um público que ainda não viu a luz, e está ali apenas para observar a tua demonstração de força e superioridade.



5. Como tratar os adversários ideológicos?

O mais importante é saber que qualquer adversário ideológico é infinitamente perverso e está imediatamente excluído da espécie humana. Nunca deves cair no erro de entrar numa troca de argumentos. Logo para começar, deves acusar o teu adversário de alguma coisa para o colocar na defensiva. Deves acreditar firmemente que os teus adversários são realmente culpados de todas as tuas acusações (racismo, imperialismo, pedofilia, traição, etc.), e se isso não for aparente, ainda acrescentas que eles são dissimulados. Caso tenham eles a audácia de te acusar, deves vitimizar-te e dizer que eles não têm uma postura digna.



6. Como lidar com crises de meia-idade?

Se chegares aos 22 anos e tiveres uma crise de meia-idade, ou porque desgostaste da tua ideologia ou porque foste expulso do grupo, deve então fazer uma troca. Podes mudar do marximo para o fabianismo ou algo assim. Outra escolha altamente recomendável é o liberalismo, caso tenhas tendência para racionalizações e um igual ódio à realidade.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

A sabedoria dos tolos letrados

Os conselhos de sabedoria que se encontram nas revistas cor-de-rosa e nos programas de televisão familiares são uma boa fonte para perceber para onde está apontando, em cada momento, a engenharia social. Claro que os “sábios” não precisam de estar conscientes da globalidade do processo, basta-lhes captar o “espírito do tempo”, depois fecham-se nas suas conchas meditativas e finalmente parem algumas pérolas de sabedoria. Chamou-me a atenção um artigo com 20 conselhos de sabedoria dirigido a um público pré-universitário, dado o alvo ser tão específico e, de certa forma, relevante. Os conselhos podem parecer banais a uns, preciosos a outros, mas tentarei mostrar que são formas de imbecilização subtis.


Irei citando o artigo e fazendo alguns comentários. O trabalho vai ser longo mas, de certa forma, divertido.

 


1.Mantenha o contacto com os amigos verdadeiros
É fácil perder o pé nos próximos tempos, ofuscado com a quantidade de pessoas novas que vão entrar na sua vida e a animação constante que se avizinha. Mas não se esqueça de continuar a falar com os seus melhores amigos de sempre, porque esses você sabe que estarão sempre ao seu lado, já o mesmo não pode dizer (para já) das pessoas que vai conhecer daqui em diante.

 

 

Está aqui implícita uma concepção de amizade puramente animal, de rebanho, de puro conforto. Claro que uma ovelha não deve se sentir confortável no seio de uma alcateia de lobos, mas se o público alvo são futuros universitários, eles deveriam ter como objectivo um alargamento do horizonte de consciência, pelo que a amizade verdadeira só pode ser encontrada entre aqueles que partilham a mesma comunidade de valores e de repúdios. E aqui as notícias não são boas para aqueles que buscam a verdade. Por um lado, pode ser benéfico manter contacto com os anteriores amigos, mas muitos deles não vão conseguir acompanhar os novos interesses, pelo que a verdadeira intimidade está vedada. Por outro lado, os novos colegas universitários, mesmo que tenham uma cultura mais vasta, em geral mostram uma consistência existencial muito reduzida. É fácil encontrar companheiros de aventuras imbecis, mas para quem almeja algo mais profundo o melhor é se preparar para uma longa e penosa busca de verdadeiras amizades.


 

2.Apesar de ser inteligente, o seu cérebro ainda está em formação. Escute os seus pais, mais do que eventualmente gostaria 
Só aos 23 anos o seu cérebro consegue estabelecer todas as ligações que o tornam realmente 'adulto'. Até lá (e também depois disso...) continue a escutar os conselhos e os alertas dos seus pais. Eles são (na maioria dos casos) mais fiáveis do que as suas ideias.
 
Aparentemente, temos aqui uma proposta sensata, que tenta refrear a arrogância juvenil. Contudo, nada imbeciliza mais do que a incorporação de factos “cientifóides”, que tentam esmagar o entendimento com o peso do rigor científico. Alguém que tenha superado os 23 anos sentiu, atingida essa idade, um “clique”, que, num repente, ficou mais adulto? E os inúmeros reis que começaram a reinar aos 16 anos e tiveram desempenhos exemplares foram informados disto? Bem mais relevante do que o desenvolvimento neuronal é a própria complexidade do mundo moderno, repleto de sinais contraditórios. Um jovem universitário não pode ter um grande nível de maturidade simplesmente porque não teve tempo de: (1) conhecer o contexto onde se vai inserir; (2) saber o que se espera dele; (3) saber como evitar falsos caminhos e assim por diante. Mas tudo isto são elementos externos, que podem facilitar ou dificultar a maturidade, mas não levam em conta um elemento interno fundamental, que é a própria vontade. O indivíduo só se torna maduro se quiser, e hoje muitos não querem amadurecer e depois acabam mesmo por não o conseguir.

A ideia de ouvir os pais é muito menos razoável do que parece. Os pais têm que ser respeitados mas o adolescente necessita de seguir o seu próprio caminho, cometer livremente os seus erros, e se continuar “ouvindo os pais” isso vai metê-lo numa busca de afeição que o poderá infantilizar para o resto da vida. Só bastante mais tarde, depois de conhecido o mundo e obtida uma grande dose de auto-confiança, volta a ser altura de ouvir os pais. Isto não significa que o jovem deva entrar em conflito com os pais, mas apenas que deve procurar o próprio espaço, porque o radicalismo juvenil é quase sempre a submissão canina a um novo grupo de referência, o que não constitui uma verdadeira abertura ao mundo.



3.Aproveite o momento
Mais do que em qualquer outra fase da sua vida, esta é a altura em que está mais concentrado no seu futuro. Mas vá com calma. Isso é bom para se agarrar aos estudos e dar o seu máximo, mas não deixe de viver por causa disso. Saber gozar cada momento é uma capacidade que vai perdendo à medida que os anos passam. Aproveite-a agora!

Quanta estupidez se pode verter numas poucas linhas! Realmente, são bem poucos os jovens ambiciosos que se concentram no futuro, e para o fazerem atém necessitam de algum treino específico. A maior parte dos jovens esforçados, na verdade, ou está em busca de aprovação dos pais ou professores, ou então tenta provar a sua força. Por outro lado, aproveitar o momento e concentrar-se no futuro não são escolhas antagónicas mas são elementos que têm necessariamente de conviver tensionalmente. O nosso sábio conselheiro pressupõe que se pode passar de um a outro, ora para aliviar a tensão, ora para a provocar, mas o que acontece é uma mescla: o momento torna-se estéril se não tiver um sentido a ser lembrado no futuro, e o futuro é alienante se não poder ter já algo em que se apoiar, ou será um sonho sem suporte real.

Por último, a ideia de que se perde a capacidade de gozar cada momento é simplesmente falsa e demonstra a total falta de capacidade do autor para perceber o ser humano. Na infância existe uma capacidade de apreender  “o momento” que é inigualável, cada lugar é como se fosse um planeta novo, onde cada detalhe parece espantoso, cada ocasião pode ficar marcada para sempre. Na adolescência e no início da idade adulta isto perde-se, porque o indivíduo já não está interessado em ser um mero agente passivo mas quer agora se integrar de forma activa no mundo, deixar a sua marca, provar o seu poder. Isto quer dizer que ele pode ter experiências que são objectivamente banais mas que são vividas subjectivamente de forma muito intensa, porque representam um conflito entre o indivíduo e o mundo, uma superação ou um fracasso colossal. Passar por isto é importante mas é um erro ver aqui um “gozar o momento”, porque em geral a pessoa está tão focada em si mesma que está bastante alheada do cenário e das eventuais pessoas envolvidas. A maturidade consiste precisamente em abandonar o excessivo centramento em si mesmo e abrir-se para as experiências na sua integralidade, nem demasiado passivo como as crianças, nem demasiado activo como os adolescentes. Só aí começa a desenvolver-se uma verdadeira cultura de vida, que poderá ir melhorando até aos últimos dias de lucidez. Contudo, esta terceira fase é incompreensível para quem ficou preso à fase adolescente da vida e ainda sente que tem algo a provar a si mesmo. 



4.Vai sentir saudades desse seu corpo mais tarde
Chegará o dia em que terá saudades mesmo dessas partes do seu corpo que hoje odeia. E por mais inacreditável que lhe pareça, até vai achar que, afinal, eram quase perfeitas. Cuide bem do seu corpo. Alimente-se de forma saudável e faça exercício físico.

 

Agora começa a ser evidente que o nosso sábio realmente não conseguiu superar a adolescência e tenta exorcizar os seus fantasmas assumindo um postura superior e “conselheira”. Se o adolescente não se sente confortável com o seu corpo, tendo ou não razões objectivas para isso, de nada lhe serve saber que, talvez no futuro, tudo aquilo lhe parecerá irrelevante. E a própria preocupação com o cuidado do corpo até lhe pode aumentar o desconforto, porque ele procura uma solução material para um problema psicológico. A própria alimentação “saudável” e a cultura do exercício físico já vêm cheios de mitos, podendo conduzir a resultados contrários aos desejados, e ainda dão maior importância ao corpo. Normalmente, o sujeito não odeia partes do seu corpo mas fica desolado por achar que essas partes não são do agrado das pessoas com quem quer conviver sexualmente (pode também haver um desagrado dentro do grupos de amigos mas que não toma proporções “metafísicas”). A solução para isto passa pela conquista amorosa ou, em último caso, é bem mais saudável recorrer à prostituição do que comer tofu e andar de calças de licra num ginásio.


 


5.Se alguém for realmente indelicado consigo, o problema está nele, não em si
Palavras duras e injustas são geralmente usadas por pessoas inseguras contra aqueles que consideram mais fortes ou melhores do que elas, como a única forma de os tentar abalar. Não se deixe abater.

Mais um conselho para quem apenas se quer manter à tona de água. Podemos ficar abatidos por alguém ter sido indelicado connosco não por nós mas por percebermos a miséria existencial daquela pessoa. Este tipo de possibilidade parece nunca passar pelo espírito desta besta-quadrada (penso que nesta altura já é legítimo trata-lo assim). É um pouco estranho dar este tipo de conselhos a alguém com 17 ou 18 anos, que já deveria ter experiência em lidar com estas situações. O conselho justificar-se-ia se fosse para alertar para outro tipo de situações em que podem ser mal-educados para nós e que são menos conhecidos mas importantes na vida adulta.

Por exemplo, numa situação laboral, alguém pode nos falar de forma ríspida não porque nos quer abalar ou porque quer medir forças connosco mas apenas porque quer que façamos uma determinada tarefa atempadamente, e não está em causa nenhum ataque pessoal. Por outro lado, a indelicadeza e o insulto não são apenas armas dos inferiores cheios de inveja contra os superiores. São também meios de condicionamento ideológico, usados com precisão quase científica, e seria interessante alertar os jovens para isto numa altura em que eles se começam a interessar por questões políticas. Nestas situações, o não se deixar abater é irrelevante, e pode mesmo ser necessário responder com muito mais força de insulto, humilhar se for preciso. Obviamente que este tipo de considerações está infinitamente acima daquilo que pode conceber o conselheiro mor da juventude.


6.Aprenda a pedir desculpa
Admita quando errou. Diga 'lamento', seja humilde e não arranje mais desculpas para se justificar.


Não sei quantas aulas são necessárias para aprender a dizer “lamento”. Parece que o autor se lembrou de determinada situação e depois achou que aquilo se aplica em todos os casos. Há casos em que cometemos faltas e a desculpa deve ser lacónica, porque há actos que simplesmente não têm qualquer justificação aceitável. Mas em muitos outros casos as justificações são necessárias, às vezes até para confortar o lesado. A justificação não é apenas uma fuga do rabo à seringa ou um tentar virar o bico ao prego. Quem disse que todas as situações na vida são tão simples para podermos dizer: «fui eu, lamento»? Na realidade, em muitas situações complexas, se assumimos o erro geral, isso é tão hiperbólico que não estamos admitindo nada, e ainda acabamos por nos vitimizarmos, como se disséssemos que assumimos as nossas culpas e as dos outros. Aprender a pedir desculpa é bastante mais complexo do que dizer “lamento”, que acaba por ser apenas um truque para escapar a uma verdadeira responsabilização ou, então, podemos andar a assumir responsabilidades por actos de outros.


 

7.A formação é muito importante
Acredite que se vai orgulhar da sua licenciatura para o resto da vida... e se irá arrepender se não a completar. Não interessa se vai ser médico, engenheiro ou professor, ou seguir uma profissão que nada tem a ver com o seu curso, mas fique com a certeza que será sempre um profissional melhor e uma pessoa mais esclarecida.

E eis que chega a apologia da universidade. Mas afinal o que dá o curso superior? Há sempre a vaga promessa de que se terá uma grande carreira pela frente, com muito prestígio e dinheiro, mas esqueçam isto. O curso superior permite apenas, em média, ter um trabalho melhor pago mas que não é muito mais estimulante do que aquele que se obtém numa profissão sem diploma. Pensam que vão ser advogados nas barras dos tribunais “encostando” grandes criminosos contra a parede? Vão antes tratar de casos de multas de estacionamento. Ou pensam que serão médicos a lidar com casos estranhos como aqueles que aparecem no House? Antes irão ver hemorroidas e unhas encravadas. Ou pensam que serão engenheiros a trabalhar no próximo projecto para a Nasa? Antes irão fazer umas consultas a bases de dados sem saber para que serve o resultado. E se forem professores não estarão a educar novas gerações mas a imbecilizá-las, aplicando os programas desenhados para isso. O curso superior é importante para fazer uma função especializada numa empresa que é de um milionário que não foi à universidade e se concentrou em coisas mais importantes.

É também completamente falso que um curso superior deixa a pessoa mais esclarecida. Naturalmente que na área em que a pessoa se especializou, ela ficará mais esclarecida, apesar de por vezes nem isso, já que nas áreas em maior declínio e sem aplicação material o diplomado pode ter emburrecido tanto que esqueceu aquelas coisas que antes sabia intuitivamente. E certamente que não serão mais esclarecidos no geral, o que podem é ter adquirido uma linguagem pomposa que os leva a falar de tudo sem dizer nada e assim dão um ar de saberem alguma coisa. A universidade forneceu-lhes vícios de pensamento e uma forma de raciocínio sobre partes muito fragmentadas da realidade, são incapazes de ver o todo mas conseguem engenhosas justificações de barbaridades. Por isso são em geral os universitários os apoiantes do terrorismo e do genocídio.


8.Deve dizer NÃO sempre que achar necessário 
A vida é sua e ninguém o pode obrigar a fazer aquilo que não quer. Mesmo que agora as consequências lhe pareçam pesadas, vai sentir-se muito pior se aceder a fazer algo que considera errado ou inapropriado, apenas porque os outros querem.

O problema não é dizer “sim” ou “não”, mas sim ter a coragem de se afastar de pessoas que não prestam. Quando alguém está dependente de um grupo o dilema moral já está reduzido ao mínimo, porque apenas funciona a lógica de matilha, e apenas há uma expectativa de ver qual é a próxima orientação, sem fazer quaisquer considerações de valores. Além disso, se a pessoa pertence a um grupo de canalhas, na verdade ela também já é daquelas que tentam obrigar os outros, nem que seja pela mera presença, a fazer o que não querem. É curioso que alguém que quer ensinar os outros a pedir desculpa pelos erros (ponto 6) nem se lembre de chamar a atenção para isto. Claramente trata-se de uma mente atomística e “pragmática”.


9.Tudo o que 'postar' nas redes sociais fica para sempre
Uma fotografia que retrata um momento embaraçoso, um vídeo atrevido ou um comentário irreflectido podem impedi-lo de chegar tão longe como gostaria. Cada vez mais os recrutadores usam as redes sociais para conhecer a verdadeira personalidade dos candidatos.

Não era mais simples restringir as publicações apenas a um grupo limitado de pessoas? E que merda é essa de ficar com medo do policiamento que eventuais empregadores façam no facebook ou outras redes? Hoje em dia, quem não tem facebook é suspeito de esconder algo, e os outros devem ficar sempre com receio de ser excessivos. O conselho devia ser o seguinte: rejeitar quaisquer empregadores que façam patrulha na internet e denunciá-los em público.


10.Siga a sua voz interior 
Não se deixe manipular pelos outros em relação ao que pretende fazer da sua vida. Se o seu sonho é ser advogado não dê ouvidos ao seu melhor amigo que quer á força levá-lo com ele para Publicidade. Até pode ser uma carreira mais excitante, mas se não é isso que o entusiasma, deixe-o ir.

A nossa voz interior pode não ser tão nossa como parece a este tolo. Os nossos sonhos e expectativas são quase todos derivados da pressão contínua que vem da sociedade sem percebermos. O importante não é seguir a nossa voz interior mas obter uma voz própria, que possa escutar as solicitações dos amigos e da sociedade mas ainda assim ter uma palavra final decisiva. Seguir os sonhos é apenas uma tolice daqueles asnos que se habituaram a seguir a cenoura que lhes colocaram frente aos olhos.

 

11.A meditação ajuda-o a alcançar os objectivos
Não deixe que os dias passem uns atrás dos outros, sem parar um pouco para reflectir se está a caminhar na direção certa. O curso pode não ser afinal aquilo que imaginara, e não vale a pena esperar pelo final para depois voltar a trás ou transformar-se numa pessoa infeliz. Quanto mais cedo se aperceber e tomar medidas, mais rapidamente muda para o rumo certo. Mas este hábito também lhe será muito útil em outras questões do dia-a-dia - na escolha dos amigos, no tipo de vida que leva, no investimento que está a fazer no estudo, entre outras coisas.

Realmente, se há alguém capacitado para falar de reflexão é este nosso sábio esquizofrénico, que não consegue sequer ter uma visão mínima de conjunto dos seus vários conselhos (isso é a actividade meditativa propriamente dita). O que ele também parece não perceber é que grande parte da actividade universitária dos alunos – precisamente a que causa maior frustração – é bastante semelhante de curso para curso, e deriva das próprias exigências disciplinares e burocráticas, e ainda que nada disto tem relação com aquilo que se vai encontrar no mercado de trabalho. Certamente que a reflexão é importante, mas estamos a iludir os incautos se acharmos que ela se pode fazer pelos mínimos indícios. A reflexão, para ser efectiva no mundo real, exige antes uma longa e demorada colecta de dados, exige também um conhecimento das situações humanas. Os jovens inteligentes que se habituam a pensar e decidir rápido apenas irão se viciar em racionalizações e iludir-se a si mesmos.


12.Viaje
Esta é a fase ideal para conhecer outras formas de estar na vida. Nem sempre é preciso gastar muito, se souber procurar boas oportunidades. Pode viajar de comboio, autocarro ou em voos low cost e tentar ficar em casa de amigos, ou de amigos de amigos, para poupar na estadia. E porque não aproveitar o convite do seu colega polaco para ir visitar o país dele? Vai precisar de mundo para ser um bom profissional e isso não se consegue na faculdade.

A juventude não é, seguramente, a melhor idade para viajar (mas a infância poderá ser), a não ser que o objectivo seja provar a si mesmo que se é capaz de partir para lugares desconhecidos e desenrascar-se em situações imprevistas. Os jovens são demasiado auto-centrados e não conseguem se esquecer um pouco de si mesmos para conhecer outras formas de vida, a não ser nos seus aspectos mais caricaturais. Jovem, ganha vergonha na cara e não gastes mais dinheiro dos pais em viagens onde irás fazer figura de idiota. Espera até trabalhares para poderes financiar os teus próprios projectos.  

 


13.Não polua o seu corpo
 
Não fume, não abuse do álcool, não tome drogas, e reduza a junk food ao máximo. As toxinas afetam não apenas a sua saúde, mas também a sua beleza exterior - arruínam a pele, o cabelo e retiram-lhe o brilho característico da juventude. E estes hábitos influenciam a imagem que as pessoas constroem sobre si. Cuide-se.

Os jovens não “poluem” o corpo como um objectivo em si mas em decorrência das suas actividades grupais e de conquista, pelo que a observação de que “estes hábitos influenciam a imagem que as pessoas constroem sobre si” acaba por ser descabida. O simplismo destes conselhos não permite ver as situações como elas aparecem na realidade. A questão passa por saber o que cada um está disposto a fazer para chegar a determinados fins. Colocar no mesmo saco tabaco, álcool, drogas e junk food é misturar coisas com efeitos muito diferentes, algu,as que até podem ser benéficas. Na verdade, este ponto não é um conselho mas uma forma de pressão social para criar indivíduos ordenados segundo a ditadura do politicamente correcto.


14.Dê uma oportunidade aos outros
Escute as pessoas mesmo quando não concorda com elas. Tente perceber o que as leva a defender argumentos diferentes dos seus - por vezes, até há factos que pode desconhecer. Não faça julgamentos precipitados. Tenha uma mente aberta.


Não percas tempo a escutar idiotas, aproveita para estudar. Se é para ouvir alguém, escolhe quem sabe muito mais que tu e não adoptes uma postura de concordo / discordo mas de simples absorção. Quem entra para uma universidade já tem idade para se ter exercitado o bastante em discussões. Daqui para a frente, só deve entrar em discussões se a sua participação tiver uma importância moral objectiva.



15.Seja você próprio
Pare de se comparar com os outros ou de tentar ser uma cópia de alguém. Esse é um comportamento típico da adolescência que é suposto não levar na bagagem para a faculdade. Aprenda a valorizar os seus pontos fortes e tente melhorar os fracos, sem lhes dar demasiada importância.

Ao contrário do que diz o conselheiro, o adolescente é aquele que já superou a fase de comparação com outros e agora quer ser “ele mesmo”. Na realidade, este é um conselho de um adolescente tardio que pensa ser adulto apenas porque está rodeado de pessoas ainda mais infantis que ele. O universitário deveria aprender a ser eficaz e não se preocupar com quem ele é.



16. Fale com os professores
Peça ajuda sempre que precisar. Na faculdade os professores são mais distantes, mas não são inacessíveis. Conversar com eles sobre dúvidas ou dificuldades pode até contribuir para que fiquem com mais atenção ao seu desempenho e possam ajudar a abrir-lhe algumas portas quando for preciso.

Fale apenas com os professores que forem também pessoas.


17.Se quer receber, não se esqueça de dar
Em vez de se queixar que a senhora de idade que lhe aluga o quarto lhe desliga o esquentador quando se demora no duche e não o deixa cozinhar depois das 21h, já pensou em oferecer-se para lhe carregar os sacos do supermercado ou a ajudou a conversar com o neto que está em Londres, através do Skype? Se lhe tentar agradar mais vezes, talvez ela até o adote como um neto e feche os olhos a algumas coisas.

Treta. Quem dá pensando em receber já é um cretino oportunista, e ainda pode sair frustrado porque muitas pessoas nunca retribuem e gostam de se aproveitar de quem dá. Dê, simplesmente, se quiser cultivar a virtude da generosidade. Se quiser receber, então volte para a casa da mãe porque ainda não está preparado para a vida adulta.



18.As pessoas vão tratá-lo da forma que as deixar
 Está nas suas mãos o poder de determinar como as pessoas o vão tratar. Rodeie-se de pessoas positivas, bem formadas e divertidas, e mantenha as negativas ou abusadoras à distância. Esta é a forma de ter uma vida mais agradável.

Isto é quase verdade, porque toda a gente quer estar rodeada dos “bons” e afastada dos “maus”. No entanto, isto é bem mais difícil do que parece, mas a nossa aventesma não dá por isso. Para evitarmos que certas pessoas nos tratem mal temos que estar dispostos a tudo, inclusivamente a metermos a mão na cara dos idiotas, e depois ainda seremos mal vistos por todos os cobardes que não querem ver a ordem perturbada. Encontrar pessoas “positivas, bem formadas e divertidas” é difícil, talvez porque são uma minoria e estão preocupadas em fazer coisas mais importantes do que cuidar dos seus colegas infantis. Afastar-se dos negativos e dos abusadores é mais difícil do que parece porque estas pessoas não surgem logo com um rótulo pejorativo e podem até começar por vender a sua afeição. O importante é não ser um débil emocional, para não ser capturado pelos grupos parasitas, e ao mesmo tempo conseguir identificar, mediante uma espécie de ressonância não meramente afectiva, as pessoas válidas.



19. Repare como os colegas tratam os pais e... os empregados
Quando conhece alguém (especialmente alguém por quem se sinta atraído), observar como lida com os pais é um bom indicador do que poderá esperar dessa pessoa no futuro. Também a forma como trata os empregados - de lojas, cafés - diz muito sobre o seu carácter.

Finalmente um conselho que posso subscrever, contudo, tem ele noção de como se conjuga isso com outros conselhos, como aquele de dar uma oportunidade aos outros (14)? Quantas observações são necessárias para condenar e aprovar alguém? E como tratamos nós os nossos pais e empregados?


20.É possível ter boas notas e divertir-se ao mesmo tempo
O truque é fazer uma boa gestão do tempo. A universidade implica muito mais estudo do que o secundário, mas não precisa de lhe dedicar todo o tempo que passa acordado. Além disso, não é necessário estudar afincadamente todos os dias. Nas épocas de testes e exames convém reduzir as saídas, mas há sempre espaço para desanuviar. Preocupe-se em descobrir rapidamente qual o melhor método de estudo e depois encaixe a diversão no tempo livre.


Um conselho quase tão vazio como todos os outros. Entrar numa dualidade de estudo / diversão é uma das maiores causas de frustração nos estudantes, que sentem que o estudo lhes rouba o seu direito ao divertimento e que o divertimento lhes pode penhorar o futuro. Na realidade, muitas saídas podem ser tediosas e frustrantes, ao passo que o estudo pode ser divertido, em certa medida. Mais importante que isto é saber quais são as nossas motivações pessoais profundas, que para serem válidas terão que ir muito além de “estudo e diversão”.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Uma palavra ao revolucionário

Caro revolucionário,

Começo por pedir-te desculpas pela minha cobardia, uma vez que falo de indivíduo para indivíduo em vez de me dirigir a um colectivo. Sei que me devia endossar não a ti mas aos revolucionários como um todo, já em posição defensiva e receando a vossa força grupal avassaladora. Lamento não ser humilde o suficiente para me colocar, inerme, debaixo das vossas botas em marcha. Talvez um dia aprenda a ser pisado com resignação ou, melhor ainda, me junte a vós e aprenda a pisar. Até lá apenas sei falar assim de igual para igual.

Sei que queres transformar o mundo à tua imagem e semelhança. Nada mais óbvio, porque Deus morreu mas não queres ser como Nietzsche, um “super-homem” num mundo niilista, condenado a morrer abraçado a um cavalo. Ora, se Deus morreu, o lugar está vago e à tua disposição! Há quem te chame louco por esta pretensão, mas não tentarei demover-te de algo tão tentador e aliciante. Muitos de nós nunca sonharam ser Deus, mas acredito que uma vez congeminada essa possibilidade nenhuma outra será apelativa. Na verdade, se imaginas ser Deus é porque já és Deus: vê como é fácil corrigir o argumento de Santo Anselmo.

Também sei que não te posso demover da causa revolucionária falando dos massacres, dos campos de concentração ou do terror que os teus camaradas espalharam. Certamente que os massacrados merecerem o seu destino, especialmente os mais inocentes, e a história um dia irá glorificá-los como um degrau rumo à meta final. O sangue derramado fecunda a terra de futuro, e sabe-se lá quantas mais coisas sereis obrigados a fazer para combater as injustiças. Como é doce a liberdade parida pelo sofrimento atroz. Aqui não há mácula, tudo é perfeito, inebriante, como a faísca do martelo que bate na bigorna, como o grito do prisioneiro que recebe o choque na pele, como o último olhar do homem atingido pela metralha. Sim, tu és como os velhos deuses, exiges sangue, sacrifícios, ou a tua glória não é elevada aos céus.

Mas por vezes o "antigo" teima em manter-se de pé e tarda em ser esmagado pela marcha do tempo. Por isso, sei que te vês obrigado em ser um elemento corrosivo que o desfaz por dentro; és um agente cancerígeno que vai matando aos poucos, primeiro de maneira indolor, nulificando as funções, estupidificando, corrompendo. Tal como apressas a meta final da revolução, também apressas o final da sociedade tradicional, porque tanto a ascensão de uma como a queda de outra são coisas inevitáveis. Oh, quantos séculos de existência humana conseguiste abreviar com feminismo, gayzismo, abortismo, pacifismo, ecologismo, desarmamentismo. Os milénios não tiveram que esperar pacientemente para que uma nova era chegasse, pois já ali ao virar da esquina esta civilização vai perecer às tuas mãos.  

Por último, há que louvar-te por tudo o que fizeste para criar uma nova linguagem. Na linguagem antiga, por meio de muitas dificuldades, os homens ainda conseguiam entender-se e assim acabavam por se acomodar, talvez até amar o próximo. Mas tu fizeste da linguagem um elemento de incompreensão: o homem já não se encontra em terreno firme e assim já pode ser arrancado pela história e lançado no futuro, deixando-se manipular pela vanguarda do povo. O teu trabalho neste campo já vai avançado, pelo que estou consciente de que dificilmente serei entendido por quem me leia. Talvez aches que isso é uma espécie de caridade, porque se o vulgo estiver na incompreensão também não sofrerá a angústia de antever o rolo compressor que o esmagará.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Acção ou reflexão?

A acção é uma dupla escravidão, mas também uma dupla libertação. A acção começa por nos escravizar o corpo, por vezes até nos tomando a vida, e cada homem sente isto porque nele há sempre um desejo latente de viver na terra de Cocanha. Mas a acção também escraviza porque nos pode tomar a alma, que ficar retida ou suspensa pelos fins limitados, e assim coloca-nos abaixo dos animais, já que para estes a pura acção não está em oposição à natureza que os possui. Ou seja, o homem tem a capacidade de ser apenas animal, mas assim nem chega a ser homem, torna-se numa besta mitológica.

Também a reflexão é uma dupla escravidão e uma dupla libertação. Ela pode libertar-nos da escravidão da acção. Por um lado, ela pode libertar o corpo, encontrando melhores formas de o usar ou dando-lhe ferramentas que o aliviam. E a reflexão também libertará a alma presa à acção, dando um contexto e um sentido a cada tarefa.

Contudo, a reflexão também escraviza o corpo, inundando-o desejo. Podemos achar que o desejo é mero instinto e imaginação, mas ele apenas se torna avassalador com a ajuda da reflexão, que trabalha cada inclinação e imagem para formar uma bola de neve incontrolável. A acção servirá, então, de elemento de alívio, que libertará energia e tensões. E a reflexão também consegue escravizar a alma, prendendo-a a concepções irrealistas, a teorias fantasiosas, que no limite podem levar à loucura. A libertação pode vir pela acção, que começa logo por nos prender às condições de espaço e tempo, dando-nos assim de forma implícita um princípio de orientação.

O ser humano está assim colocado numa cruz (e este simbolismo aplica-se a muito mais situações), em que um eixo é a alma e outro o corpo. Em cada eixo existem as forças actuantes da  acção e reflexão. O homem está numa situação de permanente instabilidade, sendo puxado nas várias direcções e frequentemente esquece que pode decidir como quer usar os elementos à sua disposição, ainda que tal não lhe dê de imediato o controlo sobre os mesmos. Podemos ser treinados para agir e para reflectir, mas seremos como que meras máquinas defeituosas enquanto não soubermos como e quando combinar estes dois momentos.





Nota: Este post e este aqui partiram exactamente da mesma experiência de base – uma simples mudança de habitação – e exemplificam as diferentes posturas que tenho em cada um dos blogues. 

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Olvido de Cassandra

Cassandra é uma personagem peculiar na mitologia e no teatro grego. Ela é a famosa profetisa, filha do rei Príamo de Tróia, em quem ninguém acredita e assim não consegue evitar a queda da sua cidade. Ésquilo utilizará depois a personagem, agora como consorte de Agamémnon, e novamente Cassandra vai profetizar desesperançadamente, sabendo que nada evitará o seu destino trágico. Ao lermos as obras antigas, a presença de Cassandra parece-nos apenas um efeito cénico, que visa dar algum colorido à história mas que realmente nada de substancial lhe acrescenta, estando o verdadeiro drama centrado noutras personagens. Isso ainda parece mais óbvio quando inúmeros autores desde então têm copiado este efeito cénico de alguma forma, e parecendo-nos um procedimento ingénuo comparado com outros que surgiram no desenvolvimento da narrativa. Cassandra serviria apenas como um símbolo da impotência do conhecimento, quiçá convidando à resignação. Contudo, os autores antigos – pelo menos os mais distintos que nos chegaram – não eram ainda profissionais no enchimento de chouriços, e a experiência mostra que aquilo que neles nos parece irrelevante exemplifica apenas a nossa incompreensão. Vou tentar salientar dois aspectos, que provém de interpretação minha, sem os quais não acredito que seja possível compreender o mito de Cassandra.

Em primeiro lugar, Cassandra é dada como louca quando profetiza sem ser acreditada, mas a nós, espectadores distantes e sabedores do fim da história, parece-nos quase o oposto, que loucos eram aqueles que não lhe queriam dar ouvidos. A minha interpretação é que Cassandra realmente fica louca porque não consegue suportar que terríveis verdades que lhe são tão evidentes não possam ser partilhadas com a comunidade. Esta é a terrível sina do conhecimento, o isolamento que ele provoca entre o portador do conhecimento e os outros homens. Por mais óbvia que uma coisa nos pareça, nada garante que conseguiremos convencer mais alguém a ver a situação da mesma forma. E se toda a nossa cosmovisão se torna incompreensível aos restantes, viveremos numa espécie de realidade paralela, e acabamos por sair da comunidade dos homens, algo que poucos conseguirão suportar. Em desespero, podemos “cortar a nossa cabeça” para voltarmos a estar à mesma altura do vulgo, mas também isso é uma ilusão de reintegração social, porque uma coisa é o homem que não quer ou não consegue ver, outra é aquele que viu e decidiu esquecer para não mais voltar a ver, e assim amputa uma parte de si mesmo, ficando condenado a viver num deserto sem fim, sempre atormentado pelo fantasma da sua renúncia.

A consciência da problematicidade da posse do conhecimento, que acredito já estar contida no destino de Cassandra, foi se tornando mais aguda. Heráclito dizia que as pessoas não conseguiriam compreender o que ele dizia, por mais óbvias que fossem. As primeiras escolas de pensamento, como a dos pitagóricos ou a dos eleatas, tinham um carácter esotérico, porque havia a necessidade de criar uma comunidade própria isolada da vida mundana, onde o conhecimento pudesse ser aceite por cada um. Ainda assim, as escolas eram frequentemente perseguidas por serem vistas como perigos. Os próprios profetas hebraicos também corriam enormes riscos, tanto sendo adorados como vistos como uma presença intolerável. Sócrates se tivesse sido um mero retórico não teria sido levado a tribunal, mas ele mostrava saber algo a mais do que os outros e a todos instava, como um moscardo, a seguir a mesma busca. Pôncio Pilatos pergunta diante de Cristo: «O que é a verdade?» Ele não apenas sabe que Cristo está inocente como finge não saber que Ele é o próprio Logos encarnado, mas decide lavar as suas mãos e seguir a multidão. Neste episódio fica expresso todo o ódio ao conhecimento do homem moderno, que ficou preso a alguma experiência traumática de posse do conhecimento que o tenha afastado do seu grupo de referência, e daí para a frente ele empenha-se a não compreender mais nada. Na realidade, ele nem precisa ter essa experiência pessoalmente, basta-lhe ter visto acontecer a outros.  

O outro aspecto que pretendo ressaltar na história de Cassandra, e que está relacionado com o anterior, tem a ver com a maldição que lhe foi imposta. Apolo, despeitado por não conseguir consumar uma relação carnal com ela, dita que ela será uma vidente sem qualquer poder de persuasão. Podemos logo começar por questionar se Apolo desejava assim tanto Cassandra, porque Ájax na mesma situação não hesitou em violá-la, mesmo em pleno templo de Atena. É evidente que não podemos exigir uma total coerência lógica de um relato mito-poético, mas neste caso talvez isto tenha algum relevo, como veremos mais adiante. É fácil de constatar que a maldição que Apolo lança sobre Cassandra na verdade atinge toda a comunidade, ou seja, cada ser humano ficou amaldiçoado porque deixou de ser sensível às verdades mais óbvias. No mundo grego, a loucura era frequentemente vista como uma manifestação da posse divina, pelo que Cassandra não era ignorada pelo seu estado mas pela perda de faculdades dos seus ouvintes.

Há aqui uma queda ontológica, análoga ao Pecado Original mas que não tem nem o mesmo alcance, nem o mesmo nível de auto-consciência e nem o mesmo sentido último. No relato do Génesis, apesar da expulsão de Adão do paraíso representar uma queda não só do homem mas de toda a criação, o mundo continua a ser, apesar de todas as suas contradições, algo bom. A vida, paixão e morte de Cristo ainda vieram garantir que apenas vai para o Hades quem assim escolher. A perspectiva gnóstica só torna-se dominante na modernidade com a perda de força do cristianismo, mas não era esta a visão no mundo grego. Na peça Agamémnon, Ésquilo mostra-nos que não era apenas Cassandra a estar amaldiçoada mas todos os restantes, e o próprio rei de Micenas parece desejar o abismo quando concede caminhar sobre as tapeçarias púrpuras, aliciado por Clitemnestra, sua esposa adúltera, sabendo que aquele privilégio estava reservado aos deuses, incorrendo assim em hybris. Felizmente, possuímos o restante desta trilogia, a Oresteia, o que nos permite tirar mais algumas conclusões.

Tal como Tróia tinha caído por não escutar Cassandra, também Agamémnon não é sensível aos vaticínios dela e tem o mesmo destino, caindo às mãos de Clitemnestra e Egisto, que irão depois tombar no ferro de Orestes. O julgamento torna-se necessário, porque Orestes, por um lado, tinha sido um agente da justiça instigado por Apolo mas, por outro lado, também tinha assassinado a própria mãe. A casa dos atridas já vinha sendo fustigada há algumas gerações por uma série de vinganças sangrentas, que eram ao mesmo tempo reparadoras mas também iniciadoras de novos ciclos de injustiça a ser reparados. O julgamento de Orestes representa um questionar deste mesmo processo, que parece não ter fim. O próprio Apolo entra como testemunha no julgamento defendendo Orestes, e questionado sobre a ignomínia da morte de uma mãe, ele confessa que é apenas um veículo do seu pai Zeus. Aqui podemos questionar se a maldição de Apolo sobre Cassadra, logo sobre toda a humanidade, não teria sido igualmente ditada por Zeus.

Isto é particularmente significativo porque, quase no início da trilogia, Ésquilo tinha, no chamado “Hino a Zeus”, esboçado uma espécie de monoteísmo, onde o deus supremo do Olimpo já era quase que uma espécie de princípio metafísico. Já não se trata de uma intervenção caprichosa de algum deus mas da estrutura profunda da realidade, tal como os gregos a viam, que assim se mostra ser trágica para eles. O arranjo final da peça parece-nos estranho: Orestes é salvo à tangente não por intervenção divina soberana mas por um arranjo mais ou menos burocrático entre homens e deuses, e um difícil apaziguamento das Erínias. Isto é necessariamente assim devido a contradições na concepção originária que os gregos tinham da estrutura da realidade, onde não existe um verdadeiro princípio que não entre em contradição consigo mesmo se aplicado a todas as situações. Isto começou a ser resolvido por Platão e Aristóteles, mas só se tornou ultrapassado com o advento de Jesus Cristo.

Contudo, não é uma conquista ganha para sempre, tendo, pelo contrário, que ser reconquistada de geração em geração, ou então cairemos numa cosmovisão trágica e gnóstica. Começa logo por redescobrir o sentido profundo dos mitos como o de Cassandra, que só é efectivado quando reconhecemos as Cassandras do nosso tempo e a nossa tendência para o esquecimento e para a cegueira. Depois, não podemos ver a filosofia grega como uma relíquia histórica, definitivamente ultrapassada por Kant, Russel ou Derrida, que não passavam de pobres coitados empenhados em não entender nada. Por fim, temos que perceber aquilo que Cristo trouxe de novo e de alguma forma alberga-Lo em nós.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Da crença

Os jovens ateus, supondo não serem possuidores de fé, acham-se frequentemente acima dos crentes. Olham para a idosa do povo que acende uma vela a alguma instância sagrada, pedindo que o filho se cure, e sentem-se superiores, como se vivessem num patamar distinto da realidade, onde não há necessidade de recorrer a expedientes divinos para resolver os problemas pessoais. Acham também que podem dispensar o mistério, porque é sempre possível recorrer ao oráculo da ciência para obter uma explicação – ao mesmo tempo definitiva e não aberta a contestação mas também provisória e prenhe de reavaliação – sobre o que quer que seja. Na realidade, esta descrição aplica-se a muitos crentes modernos, que relegam a religião para um domínio íntimo totalmente irrelevante, como se rezar fosse tão vergonhoso como o hábito de ir sorrateiramente à dispensa comer bolachas. Os ditos crentes recusam reconhecer qualquer intervenção divina na realidade, para além da infusão de uma vaga inspiração, e consideram que se deve dar à ciência o que lhe é devido, segundo os cânones da modernidade, isto é, que seja ela a única fonte de conhecimento legítimo e ainda a única autoridade que possa ditar o que pode ou não pode ser conhecido e de que formas. Esta postura amorfa e “recolhida” do crente de hoje, ao invés de provocar uma tolerância para com o religioso, pelo contrário, incita o desprezo e mesmo o ódio em relação ao crente e à religião: o homem detesta o fraco e receia o forte.


Contudo, se recuarmos para períodos de fervor religioso mais autêntico, as coisas não eram assim. Antes de se espalhar a ideia kantiana da fé como crença em algo que não pode ser fundamentado, a fé era naturalmente a fidelidade a algo: a uma experiência em que o transcendente se tinha revelado à pessoa, importando que essa experiência não caia no esquecimento que a dissolução do cotidiano providencia, ou a simples experiência na confiança numa pessoa como Cristo. Isto em si é naturalmente problemático, e mais ainda quando se liga à aceitação de uma doutrina que levou séculos a ser desenvolvida. Percebemos que algo está errado quando um religioso mostra uma fé inabalável, monolítica, e vocifera mecanicamente palavras da doutrina religiosa, e o chamamos de radical, fanático, fundamentalista. O homem religioso sempre teve que lutar contra o esquecimento, daí na antiguidade ser tão fácil a multiplicação de deuses, que serviam para revigorar a crença, e o próprio Cristo foi continuamente providenciando o aparecimento de santos para trazer as pessoas para mais perto de si.


Pelo contrário, o ateu (ou melhor, o ateísta, porque o verdadeiro ateu é sobretudo aquele que não se interessa pela questão de Deus), muitas vezes sem perceber, opta pelo caminho fácil da crença inabalável. Ele já resolveu, de uma vez por todas, uma série de problemas: não existe Deus, nem transcendência, nem milagres, e toda a experiência religiosa é uma sequência prodigiosa de auto-enganos, ilusão de massas, demências mentais, mentiras, falsificações, etc. É também notória a sua crença inabalável sobre os ditames da ciência e, mais subtilmente, pelo poder criador da sua própria palavra. Ou seja, o ateísta não acredita no poder criador da palavra divina mas crê que tudo aquilo que ele é capaz de verbalizar sem ironia é verdade, o que remete para uma espécie de auto-divinização.


A crença ateísta apresenta fortes sintomas neuróticos, não só por ser crença esquecida mas por partir do princípio de que a matéria é uma ditadora de leis absolutas num universo sem qualquer inteligência permeando-o. Resta ao ateísta passar o resto da vida procurando contradições lógicas nas palavras dos santos, não percebendo o desnível ontológico que o separa deles, fazer interpretações retorcidas das palavras Bíblia, apregoar as falsificações históricas contra a religião tantas vezes já desmascaradas, e achar que quanto mais confinado estiver na sua torre de papel, mais protegido estará contra o obscurantismo, contra a crença cega, contra a ilusão. São figuras patéticas que têm orgasmos quando escrevem “deus não é grande”, acusando-O ao mesmo tempo de todos os males, especialmente do pecado de Ele não existir.


Contudo, quando nos apercebemos da dimensão patológica do ateísmo, isso não nos coloca de imediato numa via espiritual autêntica. Se entrarmos para uma comunidade religiosa, pensando que ela é uma porta de entrada para a verdadeira religião, o mais provável é cairmos numa situação dominada por aspectos tão profanos como aconteceria em qualquer outro grupo. Rapidamente nos desiludimos e apenas vemos ali “consumidores de ópio”. Resta-nos ir ao encontro do divino onde ele se encontra: visitamos as catedrais, ouvimos música sacra, contemplamos a vida de santos como o padre Pio, estudamos os milagres reconhecidos pela Igreja, etc. Mas nem isto pode nos bastar. Então ficamos sós, sem saída, sem recursos para ir mais além e questionamos se tudo é verdade ou mera ilusão: Deus existe? Cristo ressuscitou? Moisés dividiu as águas do Mar Vermelho? O arcanjo Gabriel ditou o Corão? Buda realmente despertou? Se tudo isto for mera curiosidade intelectual, não encontraremos uma verdadeira resposta, já que argumentos de um lado e de outro podem sempre ser lançados. Só podemos obter uma resposta se as questões se tornarem mortalmente sérias para nós, e aí sabemos que somos totalmente impotentes para lhes darmos resposta, mas ainda assim queremos saber. É realmente verdade? Uma resposta definitiva não pode vir de nenhuma pessoa nem de um grupo, qualquer que ele seja. Só pode vir de uma fonte absoluta e, mesmo sem percebermos, a nossa dúvida, quando é absolutamente sincera, já é uma forma de falarmos com Deus e, mesmo que seja para nega-Lo verbalmente, já começamos a aceitá-Lo em nós.



Este post foi também publicado, simbolicamente e excepcionalmente, no blogue Prometheo Liberto, onde iniciei recentemente a minha colaboração.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O movimento das massas (3)

Ninguém defende que uma manifestação possa ser puramente espontânea, no sentido de ser um resultado de movimentos individuais aleatórios, já que isso anularia o próprio sentido da coisa e daí não poderia daí advir qualquer vantagem política. Os organizadores de um protesto não negam a sua convocação mas falam em espontaneidade das reacções, em dinâmica social, para dizer que não actuaram como manipuladores de massas mas como intérpretes de uma vontade patente mas ainda não expressa. E em geral isto é verdade, porque os organizadores materiais de uma manifestação estão demasiado ocupados para poderem fazer o trabalho subterrâneo e de longa duração de gestão das consciências alheias, mas desenganem-se aqueles que acham que a divisão do trabalho é uma invenção liberal, pois ela existe desde que os primeiros mamíferos começaram a caçar ou a organizar a vigilância em conjunto. Contudo, o mito da espontaneidade persiste, tanto no cidadão comum como no letrado, porque nenhum deles tem coragem suficiente para reconhecer o quanto é manipulado desde fora.
Reconheçamos o quão anémicos são os actuais caminhos da dialéctica, quando alguém, que pretende contestar uma opinião que é dada como certa por todos, sente-se na obrigação de afirmar que “uma coisa é a opinião pública, outra é a opinião publicada”. Claro que a maioria dos cidadãos não partilha da opinião “publicada” (leia-se impressa, radiodifundida, teledifundida, blogoesparramada), que é abortista, gayzista, pederasta, hedonista, cocaínama, globalista, ultra-individualista, etc. Aqui está algo a ser aproveitado por conservadores e tradicionalistas, mas apenas no caso de serem totalmente alteradas as relações entre o indivíduo e a coisa pública. Uma opinião pode ser partilhada por 98% das pessoas mas, se estas não tiverem canais de expressão, vai pesar menos do que a opinião dos restantes 2% que esteja bem articulada e veiculada pelos canais mediáticos. Isto quer dizer que, em termos políticos, só existe opinião publicada e tudo o resto é um imenso resíduo com um peso insignificante, tal como a famosa matéria negra, que talvez constitua a esmagadora percentagem da matéria do universo físico mas nem sequer sabemos se ela existe.
É impossível não ver algo de estranho no facto das massas, cuja opinião em geral não conta rigorosamente para nada, de repente, quando convocadas para um protesto, serem tidas como a força preponderante na sociedade. Obviamente que as massas só ganham tal estatuto quando repetem cegamente alguma opinião decretada pela pequena minoria de iluminados que domina a opinião publicada. Na verdade, trata-se de algo necessário para ambas as partes. Por um lado, as elites ocultas procuram algum tipo de legitimação popular, que tanto pode ocorrer em actos eleitorais como em manifestações ou outros actos públicos informais: assim a democracia dá um leve indício de funcionar conforme o que era suposto. Por outro lado, a populaça precisa de ser ouvida para aliviar as suas tensões, e no fundo sabe que apenas participa numa encenação grotesca, mas um pacto de silêncio atira para o fundo da consciência esta constatação. 
Os actos que supostamente legitimam a democracia são precisamente aqueles que a consolidam como uma oligarquia impenetrável. Era suposto as eleições servirem para o povo eleger para seu governo aqueles que considera os seus melhores representantes, levando à formação de uma elite pelo mérito ou então à responsabilização colectiva pela escolha de medíocres. Ora, nem isto aconteceu na antiga democracia directa grega e menos ainda ocorre na moderna democracia representativa, e o alargamento do sufrágio ao invés de corrigir isto apenas parece ter agravado a situação. Se na democracia directa qualquer um com algum talento natural para a palavra pode ser um candidato natural, na democracia representativa o candidato já pressupõe atrás de si uma máquina capaz de chegar aos possíveis representados por meios não democráticos, ou seja, só é possível ser eleito através de um poder já consolidado e não eleito, que por vezes se chama de “partido” mas que quase sempre é um aglomerado de interesses que o transcende largamente, podendo mesmo envolver grupos internacionais. O cidadão quando vota apenas está legitimando este sistema oligárquico – que está encoberto mas é relativamente fácil de identificar, pelo menos até certos limites –, que lhes dá a escolher uma série de candidatos, todos muito idênticos e medíocres, com algumas aberrações misturadas para os primeiros parecerem mais razoáveis. No fim, podemos dizer que a sentença “cada povo tem os políticos que merece” se torna numa profecia auto-realizável, dado que o processo envolve uma corrupção moral de parte a parte.
Muitos acham que isto se corrige com uma coisa estranha chamada “democracia participativa”, onde presumivelmente se incluem todos os actos não oficiais onde se discute a coisa pública. Só que aqui estamos novamente limitados pela linguagem pública e pela selecção de temas ditadas por uma ínfima minoria e que já determinam de antemão todo um leque de opções, pelo que o processo é sobretudo uma dominação mental indolor, funcionando até como uma espécie de terapia, onde os sofrimentos e as ideias individuais vão se acomodando progressivamente a um modelo pré-definido de discurso, o único que possibilita a obtenção de algum eco, e no final tudo se transforma na única coisa que poderia ser desde o primeiro momento. Não é coincidência que a ideia de autonomia pessoal e a presunção de pensar pela própria cabeça tenham se difundido precisamente na altura em que se tornaram mais irreais que nunca, porque isto coincidiu com a aplicação generalizada da estratégia de revolução lenta, isto é, quando se trocou a proposta explícita de criar um mundo socialista por uma miríade de pequenas alterações, aparentemente independentes umas das outras e cada uma com os seus métodos próprios de consecução. Tudo isto parece simplesmente «o mundo em mudança», e querer se opor ao conjunto parece um esforço tão inglório como querer parar as vagas do oceano com as próprias mãos. Não é ao nível do discurso que percebemos alguma unidade entre todas as propostas parciais mas reconhecendo uma mentalidade de base que permeia todas: está sempre implícito o imperativo de abolir o passado em nome de um projecto de futuro. A nível material podemos também encontrar uma certa unidade nas fontes de financiamento de todos os movimentos de ruptura e de “avanço civilizacional”, mas isto não implica que exista um grande controlo sobre o rumo das coisas somente que o indivíduo está impotente contra uma rede incessante de pressões alienantes.