Nos últimos tempos temos assistido, em Portugal
e no estrangeiro, nomeadamente no Brasil, a uma série de movimentos colectivos,
sobretudo greves e manifestações, onde os comentadores ora demonstram uma grande
confusão sobre coisas simples, ora se mostram assertivos sobre realidades
confusas em si mesmas. O que há de simples para compreender é a estrutura
organizacional de base, a mobilização, a propaganda, a conivência mediática.
Bastaria perguntar: quem organizou, como o fez e porquê? Não que seja sempre
fácil descobrir estes elementos de causalidade próxima, porque os verdadeiros
actores podem se esconder através de organizações de fachada, mas mesmo essa
dúvida aparece com naturalidade quando não perdemos o foco nas perguntas
essenciais.
Contudo, a contaminação do pensamento
sociológico leva-nos a abandonar este “chão duro da realidade” e a enveredamos
por uma busca de causas remotas, supostamente mais profundas. Então, olhamos
para as massas e, por debaixo de tudo o que elas dizem ou fazem, tentamos dar
uma explicação única para a mobilização geral, mesmo que os mobilizados em si não a
percebam. Em exemplo disso é explicar as manifestações por uma saturação da
corrupção e por a democracia não estar a representar as pessoas. Mas é exactamente
aqui que as coisas são confusas em si, especialmente quando cada vez mais as greves
e manifestações não são apenas preenchidas por simpatizantes de algum tipo de
socialismo mas têm muitos adeptos liberais e conservadores. Quando chegamos a
este ponto, torna-se patente que não podemos encontrar uma justificação dos
protestos ao nível de uma reivindicação única, porque os vários pretextos alegados
ou sub-entendidos anulam-se entre si. Por outro lado, também não convence uma
explicação sociológica unificada, não só pela heterogeneidade dos participantes
mas pela dificuldade nela de se transformar em acção concreta coordenada. De
certa forma, podemos dizer que as pessoas não se manifestam por algo concreto
mas pelo próprio retorno que a participação na manifestação oferece.
Temos, então, o fenómeno repartido em dois
planos, que naturalmente são obrigados a comunicar entre si, mas que podemos
investigar separadamente até certo ponto. Por um lado, não há protesto
colectivo sem um núcleo organizador, que em última análise será quem irá
retirar os dividendos. Só podem existir movimentos de massas espontâneos quando
estamos na presença de símbolos estabelecidos há muito, por todos conhecidos e
que de certa forma a todos dizem respeito, como o dia do aniversário do rei, o
dia de independência de um país e assim por diante. Naturalmente que a melhor
organização pode não conseguir despoletar um movimento de massas, e em geral há
várias tentativas até a coisa pegar, ou seja, para que uma vontade oculta de um
grupo restrito se traduza num colectivo alheado.
A ligação
entre os dois planos – daquele que planeia e daquele que oferece a sua
participação – é relativamente fácil de ocorrer no caso das greves, onde os
sindicatos bem colocados no terreno podem pressentir um desconforto geral, que
depois tentam canalizar para um slogan único, que de antemão vai sendo
divulgado de forma a que os vários incómodos convirjam para um ponto, não raro
bastante afastado das preocupações originais. Os sindicatos podem desmarcar as
greves quando pressentem que não conseguiram ser suficientemente eficazes nesta
acção de convergência de descontentamentos. Naturalmente que existem situações
em que ocorre um verdadeiro descontentamento por um motivo objectivo – como uma
alteração drástica em alguma condição de trabalho –, mas aí são os sindicatos
que têm de “correr atrás do prejuízo”, ou algo mais espontâneo pode começar a
formar-se e surjam representantes alternativos dos trabalhadores. Este tipo de
ocorrência, onde há um verdadeiro descontentamento partilhado por um grupo, é aquele
onde os sindicatos conseguem ter menos eficácia, porque eles só tiveram tempo
de se colar a algo que já estava em ebulição, e não conseguiram criar uma
camada de abstracção que torna os protestantes meros utensílios dos
organizadores, embora possa sempre surgir um líder sindicalista que consiga,
num golpe de génio, tomar conta do movimento. Mas isto já é fruto dos seus
méritos pessoais e não do processo habitual de manipulação de massas.
A
ligação entre os dois planos torna-se mais complicada no caso de manifestações.
No caso de uma greve, em geral a reivindicação é precisa, fácil de entender (embora
as pessoas não percebam que já foram manipuladas para se juntarem a uma causa
que pode já não corresponder em nada às suas preocupações originais), e o
protesto limita-se a uma ausência das habituais funções. No caso da
manifestação já é bem mais que isso, dado que é necessário que as pessoas
tenham uma acção real, que se reúnam num certo local e, depois, a manifestação
tem que ganhar corpo, tem que “engrossar” tanto em números como em emoção. Então,
para fazer greves é necessário um conjunto de militantes relativamente
discretos mas que estejam colocados em permanência no terreno, enquanto que a
manifestação implica um núcleo agitador disposto à acção rápida no cenário.
Em termos de planeamento há também
diferenças. A greve está sempre latente, os sindicatos procuram a cada momento
um pretexto e, encontrado um, automaticamente põem em acção o mecanismo de
convergência de vontades, bastando seguir umas simples directrizes do “comitê
central”, que são transmitidas a um público maior pelo sindicalista em algum
encontro onde apareçam as câmaras de televisão. Até há não muito tempo atrás as
manifestações eram também organizadas essencialmente por sindicatos e partidos
com elevada militância (isto não é válido para alguns países anglo-saxónicos
onde existe ainda um elevado grau de mobilização civil). Contudo, hoje vemos
que as maiores manifestações são organizadas por outras instâncias e através de
meios como o facebook, havendo até uma certa hostilidade dos manifestantes em
relação a partidos e sindicatos. Claramente existe uma disputa de terreno, em
que os novos pretendentes ao domínio das massas já não estão alicerçados na
velha e boa militância partidária. Dessa forma, também conseguem chamar a
atenção de muitas pessoas avessas aos movimentos em que a ideologia aparece de
forma mais explícita, uma vez que as mobilizações surgem como apartidárias,
apolíticas e até como espontâneas.
Note-se que enquanto a greve é uma ameaça constante, a
manifestação tem todo o interesse em manter-se secreta até ao último momento,
para dar a ideia de que é um irromper espontâneo da vontade do povo, uma “primavera”
dos oprimidos. Penso que os velhos sindicalistas ainda não se aperceberam disto
e pensam nas manifestações como greves alargadas, e até têm mesmo o termo da “greve
geral”. Não existe qualquer efeito de surpresa e o recolher dos dividendos é
como se fosse um movimento num jogo de xadrez. Mas os novos organizadores de
manifestações não pretendem recolher dividendos publicamente, pelo menos por
enquanto, já que os seus objectivos passam por uma reorganização da sociedade e
da sua estrutura de poder, a ocorrer sem que alguém perceba. Este planeamento
silencioso passa pelo estudo de técnicas de manipulação usando a linguagem
pública, pelo treinamento de agentes destinados a criar um clima propício nos
meios de comunicação electrónica, pelo estudo de técnicas de guerrilha urbana e
desordem pública, pela coordenação com os meios de comunicação de massa, etc.
Tudo isto exige muito dinheiro, obviamente, e muitos jovens dispostos a um
trabalho cínico.