VIDA
E MORTE
Explicar o que é a vida humana é uma tarefa
titânica, mas largamente desnecessária, já que cada ser humano com o mínimo de
auto-consciência tem uma noção suficiente do que seja a sua vida, não como uma
série de factos mas essencialmente como um conjunto ilimitado de potências
latentes. A defesa da vida humana, pelo menos em relação àqueles que
consideramos dotados do mesmo princípio de humanidade que nós, torna-se
naturalmente na defesa de algo sagrado, como se cada ser humano fosse um ponto de
ligação para a transcendência. Quando alguém atenta conscientemente contra a
vida humana, então, ou está em profundo desequilíbrio existencial – no qual
reconhecemos o homicida frio ou o psicopata – ou então age em nome de outro
valor sagrado, nomeadamente quando estão em jogo outras vidas humanas.
Contudo, o mundo moderno criou um novo tipo de
pessoa – não apenas aparentemente normal mas correspondendo ao próprio modelo
de normalidade – que aceita, sem qualquer constrangimento, que seja posto um
término à vida humana sem estar em jogo qualquer outro valor comparável. Isto
acontece sobretudo no caso do aborto (interrupção voluntária da gravidez é a
puta que pariu) e na eutanásia de idosos (a de crianças também está a caminho),
que ocorre de forma encapotada em certos lares de terceira idade, que garantem
que “o serviço” é executado em poucas semanas. A normalidade com que certas
sociedades integram o assassinato também se pode incluir neste conjunto, mas a
sua análise requer alguns cuidados que nos podem desviar do essencial.
Antes de abordar o fenómeno em si, convém
esclarecer que ele é realmente novo, pelo menos dentro dos momentos em que
vigora algum tipo de ordem. Claro que o aborto não é um fenómeno recente, mas
só recentemente tivemos oportunidade de perceber através dos meios tecnológicos
que não existe realmente essa coisa de feto mas está ali um verdadeiro ser
humano, além de que a própria religião levou o seu tempo até considerar que a
alma humana existe desde o momento da concepção. Isto quer dizer que o aborto
passou a ser considerado com toda a naturalidade precisamente no momento em que
se tornou evidente que este acto não era mais do que um homicídio. O hábito de
Esparta testar as suas crianças, expondo-as a uma jornada potencialmente
mortal, ou de certas sociedades guerreiras de se livrarem dos idosos, também não
é comparável à eutanásia moderna. A sociedade guerreira vive num limiar de
sobrevivência, dependendo quase totalmente da sua eficiência “orgânica”, pelo
que não é por auto-recreação que se eliminam os mais fracos mas por consciência
de que está em risco toda a colectividade. A eutanásia no mundo moderno, com
todas as suas instituições sociais, não é justificável em termos de
sobrevivência do colectivo, mas de forma caricata nós achamos que os antigos é
que eram de uma barbárie inqualificável. Também não colhe o exemplo da guerra
existente “desde sempre”, porque esta não é uma forma de assassinato, sendo
ainda impreciso dizer que ela é a continuação da política por outros meios, já
que ela é um confronto entre modelos de ordem, consistindo na defesa de bens
supremos pelos quais o homem pode viver. O costume antigo de matar ou escravizar
os derrotados é também explicado pelo risco de vingança dos poucos
sobreviventes, já que não existiam os modernos tratados de paz que podem
resolver as coisas noutro nível. Mesmo o desprezo pela vida individual que o
Império do Meio tantas vezes mostrou era feito não num contexto niilista mas
dentro do modelo de ordem cósmica transcendente que pretendia servir a todos.
Isto quer dizer que a brutalidade dos
antigos, que pode nos chocar com razão, pode ser largamente explicada como um
conflito de valores, mas qual é o valor que justifica o campo de concentração
nazi, o gulag, o aborto ou a
eutanásia? Juntar todas estas coisas pode parecer uma demagogia sem par, mas
penso que é o oposto, e nem teria sentido separar aquilo que a ausência de Deus
uniu para sempre. Não é aqui lugar para analisar em detalhe se esta união é
válida ou não, e vou apenas salientar dois níveis em que o fenómeno ocorre. O
primeiro nível é o do dirigente, o do planeador social, que na modernidade já
não é o garante de uma ordem social imutável, mas é a mente que "sabe" o fim da
História e que assume o dever de moldar corpos e consciências para tornar mais
rápido o "curso inevitável do tempo". O segundo nível é o do cidadão comum, que
precisamente tem em comum com os restantes o facto de se ver num mundo
invertido, em que tudo é cenário irrelevante comparado com os seus desejos de
evasão em busca de forma.
O homem moderno sofre de uma doença de consciência: ele
deseja, logo dá existência ao mundo. Paradoxalmente, isto parece estar muito
próximo daquilo que define o ser humano: ser causa livre. A diferença é que o
homem com a consciência doente acha que ele mesmo é A Causa, ao passo que o
homem mentalmente saudável sabe que participa apenas do Acto Criador. Esta é verdadeiramente a
doença humana, da qual os outros animais não podem padecer, e por isso as
civilizações sempre vieram acompanhadas dos mitos onde os homens tentam
rivalizar com os deuses e, de alguma forma, são sempre colocados no seu lugar. O que distingue a modernidade é que o homem já não
pretende rivalizar com os deuses porque assume que já assumiu o lugar deles.
Pessoalmente, cada um sabe que não é o deus supremo, há outros homens que ele
venera como tal. Mas ao seu nível, ele assume-se como um deus face a um feto
irrelevante ou face a um idoso decrépito a seu cuidado, e por isso acha que pode
dispor das suas vidas a seu bel-prazer.
1 comentário:
Texto maravilhoso, denso como sempre.
A usurpação da esfera Divina pelo homem que retorna ao Pecado Original nesse ato mesmo parece uma busca constante de apagar o sacrifício de Cristo na cruz.
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