Quando avaliamos a posição da esquerda radical, dos sindicalistas e de muitos comentadores “moderados” deparamos com uma avaliação simplista, que diz que Portugal não fez nada de errado nos últimos anos – ou então foi obrigado a cometer erros por entidades externas – e, sendo assim, a crise nacional tem que ser resolvida com a solidariedade europeia. Então, acham estas pessoas, para tudo se resolver basta que a chanceler Merkel dê ordem de recolhimento à “austeridade” e a substitua por um pacote de estímulos. Pode parecer que estou a fazer uma descrição simplista, mas não tenho dúvidas que concepção que muitos opinadores têm sobre como funcionam estas coisas, quando despida da argumentação vazia usada apenas como arma psicológica, é até mais básica que isto. Veja-se, por exemplo:
Trata-se de
uma carta aberta à chanceler Merkel, escrita por gente de esquerda activista
mas não propriamente radical. Bruno Bettelhein, caso fosse vivo, teria aqui
material para uma nova edição da Psicanálise
dos Contos de Fadas, uma vez que não saímos do território da fantasia pueril.
Quando questionada sobre os protestos dos portugueses, Merkel teve resposta
fácil: o acordo de governação que está em vigor em Portugal não tem nada ver
com ela, foi assinado pelo governo português e pela troika. Ou seja, acusar a
Alemanha de forma simplista tem o risco desta ilibar-se também
simplisticamente.
Para
assacarmos as verdadeiras responsabilidades, necessitamos de um quadro mais
alargado, com uma escolha apropriada de eventos. Nos últimos 40 anos Portugal
tem sido governado por partidos sociais-democratas, cujas diferenças se esbatem
quando têm funções de governo. Todos acreditam no dirigismo económico e nas
virtudes dos défices acumulados como estímulo ao crescimento. Contudo, os
próprios ideólogos socialistas da construção europeia perceberam que a
unificação política podia estar em risco se o socialismo económico fosse longe
demais, e em 1992 o Tratado de Maastricht definiu para os países signatários um
limite da dívida pública de 60% do PIB. Curiosamente, este foi o tratado que
instituiu a União Europeia – um projecto declaradamente político – e abandonou o
projecto menos ambicioso da Comunidade Económica Europeia. Um dos elementos
fundamentais na união política era precisamente a união monetária, pelo que se
tornava importante, numa fase inicial, ter uma moeda estável, e daí as regras
para disciplinar as contas dos vários países.
Entre 1985
e 2004 a dívida portuguesa oscilou, aproximadamente, entre 50 a 60% do PIB, o
que constituiu um desempenho medíocre, mas muitos condenavam, ainda assim, a “ditadura
do défice”. A partir de 2004 a dívida portuguesa ultrapassou o limite dos 60%
do PIB, e daí em diante cresceu vertiginosamente, atingindo 71,6% em 2008, quando
rebentou a crise financeira internacional, chegando praticamente a 120% do PIB
em 2012. Esta constatação elementar serve para mostrar que o endividamento do
governo de José Sócrates começou bem antes da crise financeira, ao contrário do
que alguns ainda tentam argumentar. A crise financeira internacional serviu
apenas para agudizar um fenómeno que já era notório. Além disso, sabemos que se
tratou de um endividamento em despesas largamente irrelevantes, como em
dispendiosas auto-estradas em zonas onde não passa ninguém, quando não em
negociatas ruinosas feitas à medida de alguns amigos. Os culpados disto são
fáceis de identificar e mais tarde direi o que deveria ter sido feito com eles.
Contudo,
tudo fica mais interessante quando sabemos que Portugal não era caso único, até
porque a Grécia se nos adiantou, e todos sabiam que os países do sul da Europa
não estavam de boa saúde financeira. Os organismos europeus deixaram passar
impunemente os países, como Portugal e a Grécia, que ultrapassaram o limite da
dívida, e alguns dirigentes chegaram a confessar que todos sabiam que vários
países apresentavam contas falsas, pelo que a situação real ainda seria pior do
que o anunciado. Como se não bastasse, as próprias agências internacionais de rating fingiram que nada se passava e
continuaram a dar classificações elevadas às dívidas dos países, até o colapso
ser iminente. Os idiotas de serviço olham para tudo isto e exclam que se
tratava de uma crise fabricada, no que acertam, mas acham que foi fabricada apenas
no final de 2008, com a falência dos bancos americanos, e depois com a descida “injusta”
dos ratings das dívidas de vários países.
Mas é óbvio que a crise foi cozinhada durante muito tempo, num misto de expansão
do estado social juntamente com políticas ruinosas de recurso ao crédito, cuja
entrada do euro em circulação tornou fácil aos países do sul da Europa, para
além do problema estrutural internacional do abandono do padrão-ouro.
Chegamos
agora à fase de lançar algumas conjecturas. Todos sabem que uma dívida quando
atinge um certo valor não é só ela se torna impossível de pagar, os próprios
juros associados já são por si incomportáveis. Este foi, de resto, um
estratagema muito usado para criar situações de escravatura depois desta ter
sido oficialmente abolida. Esta situação insustentável estava claramente a
ocorrer com Portugal e noutros países. É crível que ninguém tenha percebido que
se estava a cozinhar uma crise europeia, para mais quando anos antes se tinha estabelecido
a importância de limitar a dívida dos vários países? Isto seria supor que os
detentores do poder ao nível europeu sabem menos que o cidadão comum, que não
ignora que as dívidas são perigosas, quando é notório que, pelo contrário, são
os poderosos que estão em posse de informações que nem sequer são concebíveis
para o homem do povo.
Se
recuarmos um pouco no tempo, vemos que em 2005 o projecto da Constituição
Europeia teve que ser abandonado devido aos referendos na França e na Holanda, e
sabemos que esta constituição constituiria um passo quase que definitivo para o
fim das nações e para o nascimento de um super-estado europeu fictício e de
carácter totalitário. Precisamente nessa altura começaram a ser trabalhadas
outras vias para chegar ao mesmo fim de forma mais discreta. Por um lado, começou
a ser preparado o Tratado de Lisboa, que aumentava a integração europeia (um
eufemismo para a perda de soberania por parte das nações) de uma forma
psicologicamente mais aceitável do que impingir uma constituição para toda a Europa.
Por outro lado, fecharam-se os olhos ao endividamento crescente dos países do
sul da Europa, sabendo que era apenas uma questão de tempo até estes começarem
a solicitar o resgate financeiro por parte do FMI, lançando assim uma sensação
de desnorte por toda a Europa (isto em sintonia com uma crise financeira internacional,
que servia também outros fins). Quando Portugal pediu o resgate ao FMI, vários
comentadores “isentos” falavam de algumas soluções naturais para a crise: criação
do cargo de ministro das finanças para toda a Europa; orçamentos nacionais
fiscalizados pelas cúpulas europeias e assim por diante. Ou seja, tentou forçar-se
o aprofundamento da união política apostando no desespero das pessoas.
Mas nem
tudo correu como estava previsto, e ao invés dos povos se virarem para a Europa,
viram-se para si mesmos, e as gentes do norte começaram a acusar as do sul e
vice-versa, pelo que ao invés do reforço da união temos o risco de implosão da
União Europeia. Contudo, o próprio espectro do fim da Europa há muito que é um
argumento recorrente para o avanço do projecto europeu, nem que seja para
dizer, como tantas vezes ouvi, que ou avançamos para uma Europa mais unida ou
vamos entrar todos em guerra outra vez. Por isso suspeito que os socialistas
fabianos que tentam construir de forma tecnocrática e sem dor uma Europa
uniforme, mais uma vez estarão a tentar aproveitar-se dos socialistas radicais
que promovem greves e manifestações violentas, porque tudo isso é um argumento
para aceitar a mão ordenadora da “Europa”, ainda que tudo me pareça uma
pretensão ingénua, já que é um caminho que apenas pode favorecer, no longo
prazo, os projectos do califado universal e do movimento eurasiano de russos e
chineses.
Nisto tudo onde entram os alemães? Em primeiro lugar, se alguém sabe dos perigos do desgoverno financeiro são eles, mas tudo lhes pareceu bem enquanto os países de sul endividaram-se para comprar os produtos da indústria alemã. É muito instrutivo andar pelas estradas de Portugal e ver a quantidade de carros de luxo alemães. Por outro lado, a crise europeia serviu para aumentar o poder político da Alemanha, porque no momento do aperto todos se viram para quem manda mais, e esse, por essa razão, passa a mandar ainda mais. Penso que as elites alemãs estão a fazer um jogo perigoso, porque se alguns políticos e alguns empresários estão a ganhar muito com tudo isto (não necessariamente dinheiro, mas sobretudo poder de influência), o contribuinte alemão apenas perde e não está disposto a pagar as dívidas dos países do sul. Por isso, a Alemanha tão facilmente estará a mandar na Europa como poderá no momento seguinte se fragmentar, porque também tem as suas Catalunhas.
1 comentário:
Mário,
Resumiste muito bem o que se passa. Eu não conseguiria fazer isso de maneira tão simples e elegante.
Infelizmente, a maioria do pessoal que escreve ainda faz análises baseadas em factores puramente económicos ou estudando o movimento dos vários governos sob o velho paradigma do interesse nacional, sem compreender as elites.
O esforço da divulgação desse material é tremendo e ingrato, mas você já compreendeu muito bem porque isso se trata de um dever nos dias de hoje.
Um abraço.
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