TRABALHO
E IRRELEVÂNCIA
Toda a discussão sobre o trabalho anda à
volta de abstracções sociológicas, económicas ou legais. Tudo isto é legítimo
se o próprio fenómeno em si já está bem descrito, caso contrário as discussões
irão se materializar em valores, leis e métodos de trabalho que irão alienar as
pessoas, sempre instigadas a melhorar a sua produtividade quando elas não
fazem, literalmente, a mínima ideia do que andam a fazer. Não é lugar aqui para
fazer uma descrição fenomenológica do «trabalho», e apenas pretendo salientar
alguns aspectos a seu respeito relacionados com a vivência de cada um de nós.
Do ponto de vista do trabalhador, tem sentido
falar em 3 fases distintas, não validando isto a teoria de Alvin Toffler das “três
ondas”, pela qual ele tenta explicar quase tudo o que acontece no mundo. O
simplismo de Toffler torna-o apto à mentalidade pragmatista americana, por lhe
ser apresentada uma explicação fácil por agregados da qual se podem derivar uma
série de normas e indicações práticas para o indivíduo. Algum acolhimento que
Toffler recebe na Europa penso que advém de um equívoco, já que o conceito das “ondas”
ainda produz ressonância no historicismo positivista ou marxista, ao mesmo
tempo que a simplificação do indivíduo, que o americano vê essencialmente como
um procedimento de efeitos práticos, adapta-se ao europeu na sua progressiva
dissolução da personalidade. Mas o ponto que quero salientar não visa o
abstracionismo/pragmatismo/historicismo e sim entender as implicações, em termos
de personalidade humana, que a evolução do trabalho provocou, sem ter a
pretensão de achar aqui uma chave explicativa única.
Há desde logo uma questão prévia, porque as
três formas de trabalho que irei abordar (agrícola, industrial e pós-industrial)
remetem todas para a existência da sociedade organizada. Antes disto, não
podemos propriamente falar em trabalho, pois existem apenas tarefas necessárias
à sobrevivência dos grupos – obtenção de alimentos, construção de habitações,
protecção do grupo, cura física e espiritual –, mas nada disto tem a forma de
um contrato nem pode conduzir a distinções de classe. Há um grau de
determinismo naquilo que o indivíduo vai ser neste contexto, e se nasceu homem
ou mulher, saudável ou doente, forte ou carismático, isso conduzirá a uma
função. E isto não é bom nem mau, é a única coisa concebível, pois para o
primitivo, de certa forma, só a sua tribo faz parte do domínio do ser. Na
realidade, aquilo que um indivíduo faz não é muito diferente do que faz qualquer
outro de faixa etária semelhante, e grande parte das actividades são grupais.
Para nós, a imagem da tribo primitiva tem algo de paradoxal, ao mesmo tempo vemos
ali uma liberdade da ausência de constrangimentos sociais mas, por outro lado, há
o determinismo tribal que limita o indivíduo a ser apenas uma coisa e nada mais
ele pode sequer conceber.
Então, quando a agricultura se estabelece,
significa isto a libertação do determinismo tribal, com a abertura para uma
miríade de possibilidades de acção e de concepção do mundo, ou é a inauguração
de uma era de servidão em que vivemos até hoje? Na verdade as duas coisas
ocorrem, mas para nós é hoje impossível voltar ao estado primitivo. Aqueles que
fogem das cidades e vão viver em condições rudimentares para o campo estão
apenas fingindo ser primitivos, porque a sua mentalidade é totalmente «civilizada»,
não tem a ingenuidade, as limitações nem a «pureza» daquela do primitivo. Até o
mais ignorante dos camponeses da aldeia mais isolada é cosmopolita comparado
com qualquer membro de uma tribo primitiva, porque ele sabe que o mundo não se
restringe à sua aldeia e que o seu trabalho, ainda que largamente de subsistência,
produz algo que pode ir parar a outras mãos, possivelmente até de pessoas que
ele desconhece.
Mas isto já é adiantar muito a história, já
que certamente que os primeiros agricultores ainda eram membros da tribo, mas
algo já tinha mudado. A agricultura, mais do que fixar as populações num certo
lugar, fez com que alguns homens entendessem que podiam manipular o curso do
mundo. Agora, o cenário de actuação não era apenas a natureza imprevisível,
onde o homem apenas podia tentar se adaptar da melhor forma possível. O homem passava
a poder introduzir a sua interferência e assim também ter um domínio maior o
seu próprio futuro. Contudo, nem todos os homens possuíam entendimento idêntico
sobre o processo, pelo que o domínio da natureza iria, mais tarde ou mais cedo,
traduzir-se num domínio de uns homens sobre outros homens. Quando hoje falamos
em sociedade do conhecimento, claramente não fazemos a mínima ideia do que
estamos a falar.
De certa forma, o início do trabalho
organizado é uma “perda da inocência” mas também a porta para o desenvolvimento
da consciência. O trabalhador agrícola, livre ou escravo, tem uma ligação muito
próxima com o produto. Este está bastante ligado ao meio ambiente, que é o
mesmo para todos e assim a agricultura era um elo comum a toda a sociedade. Até
ao advento da industrialização, toda a sociedade tinha um cunho agrícola, e
mesmo quem desempenhava outras funções tinha também um pedaço de terra cultivado,
além de que a própria industria artesanal dependia daquilo que a agricultura
podia suportar, e sabemos como foram dramáticos alguns maus anos agrícolas.
Muitas coisas alteram-se com a
industrialização, não surgindo apenas um trabalho fisicamente diferente, num
ambiente agora fechado e geralmente citadino. O trabalhador já não lida com o
produto final como um todo, ele corta umas placas de metal, opera uma determinada
tecedeira mecânica, pinta determinada peça e assim por diante, dentro das
exigências da divisão do trabalho. Na fábrica, ele está isolado do meio
ambiente, não tem geralmente contacto com o produto final acabado, se é que
alguma vez chega a vê-lo, e está mesmo isolado na sua função, cujo contributo
para o todo se torna cada vez mais difícil de vislumbrar. Durante horas
seguidas repete as mesmas tarefas mecânicas, o que não ajuda nada à sanidade
mental. Mas há outros factores que surgem com o trabalho industrial. Enquanto que
na agricultura o patrão trabalha frequentemente ao lado do empregado (e era
normal o escravo grego ou romano trabalhar ao lado do seu senhor) e mesmo
quando não o faz está igualmente dependente dos ditames do tempo, agora o dono
da fábrica vive num mundo à parte, que é infinitamente misterioso para o trabalhador.
Aqui os socialistas surgem para dar aos trabalhadores uma explicação sobre como
funciona a máquina social, que resulta ao menos como terapia contra a disrupção
mental provocada pela mecanização. Mas mesmo neste cenário, existe alguma noção
do que se anda a fazer, e todos sabem quantos carros, panelas ou frigoríficos a
fábrica produziu.
Quando chegamos à sociedade pós-industrial –
sociedade dos serviços, do trabalho intelectual, da informação, etc. –,
inicialmente parece que há uma subida de patamar, pois elimina-se o trabalho físico
repetitivo e aposta-se no desenvolvimento das faculdades cognitivas, exigindo-se
qualificações cada vez maiores. Contudo, algo nesta imagem parece não bater
certo com a realidade. O trabalho no escritório parece ser fisicamente
confortável, mas ao fim de poucos anos as pessoas mostram um envelhecimento
precoce, apresentam má postura, surgem lesões nos braços e mãos por uso do
computador, começam a dormir mal, aumentam os problemas respiratórios, começam
a ver cada vez pior devido à má iluminação e aos monitores dos computadores, e
assim por diante, considerando apenas os problemas derivados das condições
materiais. A promessa do trabalho intelectual também fica, em geral, por
cumprir, porque passada uma fase de aquisição de alguns conhecimentos, segue-se
uma rotina monótona e com poucas novidades, que podia ser desempenhada por
qualquer idiota. Pior que isso, cada vez menos as pessoas sabem para que serve
o seu trabalho. Uma empresa pode ter milhares de pessoas e o seu produto final ser
apenas um componente para outro produto e assim por diante, e há mesmo muitas companhias
que nem sequer produzem alguma coisa tangível. Internamente, as chefias dizem
ser importante fazer isto e aquilo, para uns meses depois darem o dito pelo não
dito e nem sequer ser dada qualquer explicação. Estimo que numa empresa com
alguns milhares de pessoas sejam elaborados centenas de relatórios mensais que
ninguém lê e feitas milhares de reuniões cujas conclusões todos irão esquecer.
E quando o trabalho se torna assim irrelevante, começa a sobrar tempo e engenho
para dedicar à sabotagem de colegas, à fuga às responsabilidades, à auto-promoção
à custa de terceiros e a todo o tipo de actividades paralelas. E afinal, quem
manda na empresa? As chefias multiplicam-se, mas a própria administração
depende dos accionistas, que podem ter atrás grupos de várias partes do mundo,
que a qualquer altura podem decidir ir para outras paragens.
Então, o trabalho moderno tornou-se numa estadia no
hospício (e estou a falar apenas nas situações “normais”, sem entrar em
dificuldades de toda a ordem que ainda se acrescentam na realidade)
precisamente quando o grande desígnio de vida para o homem moderno passou a ser
a realização profissional, substituindo a realização espiritual. Obviamente que
esta substituição é um embuste destinado a criar um novo tipo de homem dócil à
sociedade industrial e pós-industrial. Mas afinal, o que consiste essa tal de
realização profissional? Se é um objectivo de vida, então só pode estar
associada à melhoria significativa das condições de vida e não pode ser apenas consistir
em fazer bem o trabalho e receber umas pancadinhas nas costas. Claro que há
sempre aqueles que conseguem estar no centro da acção e subir vertiginosamente
na hierarquia, e que depois vão contar o seu percurso aos iludidos que acham
que aquilo está disponível para qualquer um que tenha vontade suficiente. Mas
basta pensar que os lugares de topo sempre serão reduzidos para concluir que o
objectivo da realização profissional produz apenas infelicidade ou apatia, no
caso dos cínicos, que é naquilo que quase todos inevitavelmente se irão
transformar.
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