O
PSICOPATA ILUSTRADO
A melhoria das condições materiais e morais
dos portugueses tem sido comummente associada à educação escolar, essa paixão
de um antigo primeiro-ministro e uma prostituta ao serviço de um sem número de “boas
intenções”. Segundo esta crença, quanto mais educação tiver uma pessoa mais
abastada ela será e também mais apta estará a uma conduta moral adequada. O
conhecimento é, sem dúvida, fundamental para a obtenção de riqueza, e já Tales
de Mileto teve fama de enriquecer à custa da sua sabedoria, apesar de a usar
fundamentalmente para investigar outras coisas. Também em relação à conduta
moral, o ignorante pode decorar uns mandamentos ou umas regras morais, mas se
não for devidamente instruído (ilustrado) não saberá aplicá-las às situações
concretas da vida.
Contudo, será legítimo associar a apreensão
de conhecimentos à educação formal e, em especial, à moderna educação de
massas? Estudos mostram que boa parte dos milionários nos EUA não possuem
diploma universitário (entre alguns exemplos temos Bill Gates, Steve Jobs,
Larry Ellison, Michael Dell e, noutras paragens, Li Ka-Shing, tido como o homem
mais rico da Ásia). Obviamente que estes milionários possuem muitos licenciados
e doutorados a trabalhar para eles, mas se as universidades fornecem
conhecimentos específicos úteis para desempenhar certas funções, elas não
oferecem o conhecimento necessário para ver o negócio como um todo, malgrado a
profusão de cursos de gestão. Em geral, o graduado que é extremamente competente
em termos profissionais tende a desenvolver uma mentalidade que é o oposto
daquilo que pode tornar um homem rico – a “preguiça” de deixar o dinheiro
trabalhar por si –, já que se torna um controlador de todos os aspectos do
negócio (ou contenta-se em ser um mero assalariado com fama de génio). O
negócio não pode assim se desenvolver por si, mesmo que tenha por base um
excelente produto em termos técnicos, porque é essencialmente o trabalho de uma
pessoa só e, logo, está preso às limitações do indivíduo humano isolado. Mas
se, ao invés de olharmos para o topo onde se encontram os milionários, nos
focarmos no que se passa num segundo nível, onde se encontra a elite dirigente
empresarial e política, veremos que este patamar é quase integralmente
preenchido, ao menos nos EUA onde isto já foi estudado, por aqueles que
frequentaram colégios privados que ministram a antiga educação liberal e
desprezam os modernos métodos e conteúdos de ensino.
Então para que serve a educação de massas que
temos, que criou a geração “mais qualificada de sempre” mas que apenas lhe
resta um país com uma das maiores crises da sua História? Se tentarmos traduzir
esta educação em resultados económicos não vamos ter muito sucesso. Existe uma
tendência, herdada tanto do marxismo como do liberalismo, de equacionar tudo em
termos económicos. Contudo, a economia é algo que não existe em si, é apenas um
resultado largamente impremeditado de um conjunto de forças em movimento nas
sociedades. Pretendo aqui apenas avaliar a nossa educação de massas a partir de
alguns efeitos que ela provocou e que qualquer um pode comprovar, usando como
termo de comparação o cidadão comum que não teve o privilégio de receber uma
educação superior.
O cidadão comum sabe que existe a verdade e a
mentira, mas o universitário ultrapassou este dualismo limitador, seja por achar que existem várias verdades,
seja por achar que a verdade é apenas uma convenção social ou, então, uma
imposição de uma classe dominante e, por isso, passa a ser um dever derrubá-la.
Na realidade, o ataque à verdade é apenas um estratagema para mentir
impunemente, seja por razões ideológicas ou por mera auto-recreação, já que o
adolescente quando começa a dominar a “arte do pensamento” fica fascinado com o
poder de manobrar outras pessoas e também com a possibilidade de criar e manter
todo o tipo de ilusões que o libertam das frustrações da vida real. Mas o homem
instruído não se limita a viver num relativismo absoluto. Apesar de não
acreditar em verdade e em mentira, também não abdica totalmente delas. De
facto, ele não hesita, quando em confronto com adversários honestos – os
idiotas que ainda acreditam em verdade e em mentira –, em acusá-los de
falsidade, para no final lhes atirar à cara uma “verdade” que lhe convém. É a
estratégia de usar as armas do inimigo, que irá ficar paralisado e confuso, e
que tentará depois defender a sua honra racionalmente, sem perceber que está a
ser vítima de um esquema de dominação mental. Não tem sentido argumentar
racionalmente com quem não acredita na existência da verdade, porque este nunca
dará crédito ao mais óbvio dos argumentos, ao mesmo tempo que irá atacar
impiedosamente tudo aquilo que seja menos claro na argumentação adversária,
mesmo que esteja em causa apenas uma dificuldade linguística. O relativista
pode simplesmente desconversar porque conta com a ingenuidade e polidez do seu
interlocutor. Então, o homem instruído vencerá o debate pelo cansaço, talvez
até fazendo o homem honesto duvidar da existência da verdade, ou então mostrar-se-á
enfastiado com a discussão, caso não consiga manobrar o seu adversário,
deixando claro que para ele nada foi provado e que aquilo são conversas de
pessoas limitadas que não conseguem ver mais além. Só tem sentido enfrentar um
adversário que não acredita na verdade se o objectivo for desmascarar a sua
tentativa de manipulação psicológica, caso contrário é pura perda de tempo. A
destruição da verdade não tem apenas influência ao nível das discussões
pessoais, já que isto fez escola em algumas “ciências” e é o fundamento do
jornalismo moderno. Não existindo verdade, resta o discurso, pelo que o único
objectivo válido é tentar que o nosso discurso se sobreponha ao do outro.
O homem comum acredita na existência do bem e
do mal, mas o homem com formação superior considera-se liberto desta prisão que
ele considera ser a moral antiquada nem
irá submeter-se a sentimentos de culpa. De certa forma, sem a crença na
existência da verdade, estão abertas todas as portas do inferno. Contudo, é
possível ser céptico sobre a existência da verdade e ainda assim manter
elevados padrões morais, ainda que não se consiga justificá-los. Então, a
relativização moral é um combate que se trava também de forma independente, e
não é raro que, depois da pessoa se ter corrompido, ela vá encontrar no dogma
da morte da verdade um alívio para a sua consciência. Tal como o ataque à
verdade é um pretexto para mentir com estilo, o ataque ao «bem» não é mais que
uma apologia encapotada do mal sem culpas. A moral tradicional é tanto um
caminho positivo (fazer o bem) como negativo (evitar o mal). O ataque ao bem
não é propriamente a eliminação da moral mas a criação de uma moral
alternativa, uma ersatz. Na nova
moral, a componente positiva “obriga” a fazer não o que é bom mas aquilo que
nos é útil ou que nos dá prazer. A componente negativa diz para evitar aquilo
que a lei proíbe (e que é efectivamente fiscalizado, já que não há aqui um
respeito pela lei mas apenas temor em relação a ela) e também prescreve que é
de bom-tom evitar o choque contra aquilo que o consenso grupal ditou. Por um
lado, deixamos de estar sob a mão benevolente de Deus – cujo perdão nos é
negado para o todo-sempre –, e passamos a estar sob alçada do Estado, que passa
a ter permissão para entrar em todos os domínios humanos e que não conhece o
conceito do perdão. Por outro lado, a nova moral permite níveis de devassidão,
corrupção e até de atentados contra a vida que seriam inconcebíveis no passado,
mas depois apresenta todo o tipo de limitações sem justificação e que podem
mudar de um momento para o outro, segundo a volatilidade da produção
legislativa ou da sabedoria da “ética
grupal”. O indivíduo fica imbecilizado porque «pode fazer tudo» sem que seja
recriminado mas parece que, ao mesmo tempo, «não pode fazer nada» sem que haja qualquer
justificação para isso. Os antigos moralistas que viviam acusando o próximo e
condenando-o ao inferno agora aparecem multiplicados em incontáveis fiscais da
nova moralidade (hoje está na moda ensinar até as criancinhas a fiscalizar a
conduta dos pais, naturalmente para criar um mundo melhor…), e se já não
condenam ninguém ao inferno, tentam que a vida do próximo se transforme num.
O indivíduo comum também acredita no belo e no
feio, mas o psicopata ilustrado não se deixa iludir por categorias estéticas
tão limitadas, no seu parecer. O presente culto da feiura pode ocorrer em três
casos distintos. No primeiro caso começa como uma legítima exploração dos
limites de compreensão estética que todos temos, havendo aqui um paralelo com o
percurso dos grandes criadores, que sempre chocaram os públicos dos seus tempos.
Quem não tem uma sensibilidade estética desenvolvida vai ficar apenas agradado
com aquelas coisas mais óbvias, ficando fechado a uma beleza mais profunda e
subtil. Contudo, a determinada altura esta abertura pode se transformar noutra
coisa: já não estaremos a identificar aquilo que a obra de arte tem de “oculto”
mas passamos a projectar nela qualidades inexistentes, ou seja, a experiência
deixa de ser estética e passa a ser uma perversão intelectual. Claro que é
legítimo intelectualizar sobre uma obra de arte, mas aqui a obra passa apenas a
ser mero pretexto para um jogo de enganos. A quase totalidade da arte moderna
consiste na produção de um objecto por um cretino que conta com a apreciação de
um bando de imbecis. Claro que o objecto em si não é totalmente indiferente,
pelo menos no início da arte moderna ele tinha de ter alguma ligação à
verdadeira arte, mas depois foi se afastando cada vez mais, até presentemente
ter apenas um resquício homeopático da verdadeira arte. Apenas interessa que o
objecto seja um símbolo do (e para o) próprio mecanismo mental, espelhando a
sua feiura estrutural. O segundo caso é o uso da feiura como objecto de
engenharia social, nomeadamente na arquitectura moderna e no design industrial, tratando-se de um
mecanismo conhecido de depressão da inteligência. Finalmente, existe a o culto
da feiura por simples incapacidade em suportar a beleza. Quando se renega o Bem
e a Verdade, o Belo, que completaria a trindade, torna-se ofensivo, como se
fosse um dedo acusador sinalizando uma personalidade deturpada. Então, o
grotesco, o hediondo harmoniza-se perfeitamente com as personalidades falsas e
más. O culto pelo cinema do psicopata genial, amante de música erudita, é
apenas uma sedução, pois aquela personagem não pertence ao nosso mundo, é
apenas um ideal mefistofélico.
Todas estas coisas naturalmente que se
alimentam umas às outras, criando uma quarta distinção entre o homem instruído
e indivíduo comum: apenas este último acredita ainda na existência de
realidade. Somente o homem altamente instruído pode viver num mundo criado
mentalmente, já que isso exige um esforço cognitivo formidável. O sábio de hoje
já não quer saber como as coisas são mas apenas naquilo que podem se
transformar, e quando o estudioso investiga o estado presente de coisas é
apenas em vista daquilo que estas podem vir a ser por via da acção humana.
Será plausível que a universidade se tenha transformado
numa máquina de criação de sujeitos alienados, falsos e maléficos? Alguns
cursos em ciências sociais visam de facto este objectivo e a sua disseminação
pela sociedade. Mas mesmo os frequentadores dos cursos clássicos parecem vir a
desenvolver o mesmo tipo de mentalidade. Não é necessário que as universidades
sejam máquinas de lavagem ao cérebro, basta fornecerem algumas ferramentas
mentais evoluídas junto a um corte obrigatório entre pensamento e realidade. Depois,
cada indivíduo vai se barbarizando pela simples contaminação de ideias
circulantes, eivadas de mentalidade revolucionária, trabalhadas a partir das deficiências
estruturais adquiridas na universidade. Isto já consigna um esforço enorme, e
por isso poucos vão querer abdicar dos frutos deste trabalho mesmo se lhes
mostrarem que ele consiste apenas num processo de emburrecimento elegante. E
quanto mais tempo o indivíduo estudou dentro da academia, mais ele fica
enredado nesta teia de cretinismo, pois agora já não é uma mera questão de
conhecimento, já envolve uma profissão, um estatuto social, um grupo de
amizades e assim por diante. Por isso, tantos ilustrados cheios de títulos
universitários aparecem nas tribunas apenas para proferir os disparates mais
bestializantes ou então limitam-se a explicar por frases rebuscadas aquilo que
qualquer taxista diria com meia palavra.
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