ENCENAÇÃO
DE DEMOCRACIA
É comum o desalento em relação à democracia,
não tanto considerada em abstracto mas sobre aquela que realmente temos. Então,
a democracia em si é vista como uma coisa boa, associada à liberdade, ao
progresso, à prosperidade, ao combate às injustiças e assim por diante. Se tudo
isto não se cumpre é porque a nossa democracia não é autêntica, e logo nos
apressamos a dar exemplos, a respeito de matérias avulsas, onde democracias
estrangeiras mostram os seus galões. Suspiramos e concluímos, um pouco
consternados mas também vaidosos por acharmos que descobrimos uma grande
verdade, que não temos uma verdadeira democracia, temos apenas uma encenação de
democracia.
Há algo de esquizofrénico nestas patéticas
lamentações. Os desiludidos com a democracia nunca param para questionar o que
a democracia é em si – e em seguida deveriam averiguar as possibilidades de
termos um funcionamento razoável de tal sistema –, limitam-se apenas a
identificar a democracia pelas qualidades que os seus apologistas
propagandeiam. O mesmo se passa com o socialismo, que nunca é avaliado por
aquilo que ele é – um processo de concentração do poder nas mãos de uma mesma
classe – mas pelas qualidades que lhe são atribuídas, criticadas por uns,
veneradas por outros. Ademais, como se tratam de qualidades e não da essência
do fenómeno, cada um pode escolher aquelas que melhor servem o seu propósito,
de prosélito ou de detrator, e assim o socialismo pode ser óptimo ou terrível
por abolir a propriedade privada ou por dar a cada um conforme as suas
necessidades e exigir a cada segundo as suas possibilidades, pode abolir as
classes sociais ou por fazer de um mero varredor de rua um Miguel Ângelo ou um
Aristóteles, por abolir o Estado ou por criar um Estado que tudo engloba, por
ser democrático ou por ser anti-democrático, por dar o poder ao povo ou por
tirar toda a liberdade ao povo, etc. Este mero elencar de qualidades mostra que
a discussão a respeito do socialismo não é séria e limita-se a um disputa
retórica.
Voltando à democracia, a sua essência é,
supostamente, a distribuição do poder por várias entidades independentes umas
das outras. Em geral isto é esquecido mas, como num processo neurótico, é uma
crença sempre presente. Em parte, creio que as acusações de que a democracia se
tornou numa farsa derivam de ser notório de que não há uma verdadeira separação
de poderes mas um bloco unitário que ocupa de forma tentacular as várias sedes
do poder. Contudo, a discussão transmutasse “alquimicamente” para as alegadas
qualidades da democracia, e começa uma cacofonia que mete crescimento
económico, desigualdades sociais, direitos e liberdades, subsídios e estímulos,
privatizações e regulamentações, e assim por diante. Não que cada um destes
itens não seja merecedor de discussão, mas cada um acha que a democracia é,
obviamente, um conjunto de qualidades que ele mesmo escolheu de forma aleatória
e doseadas conforme o gosto do momento, e acha inacreditável que se viva em
democracia e estas coisas não existam por magia.
Mas o que é tudo isto senão uma encenação?
Todo o exercício do poder organizado envolve algum tipo de encenação, por vezes
mesmo alguns rituais, mas na democracia isto não é um mero condimento estético.
Não é difícil imaginar a democracia grega no seu aspecto teatral – e creio que
está ainda por avaliar o quanto o teatro grego deu ao processo civilizacional
–, o que é uma exigência do modelo directo. Contudo, a criação e manutenção de
ilusões na Grécia Antiga era muito limitada, além de que o controlo dos
factores numa democracia directa ser muito precário. Quando a democracia se
tornou representativa, a encenação tornou-se, digo-o eu, numa sua característica
essencial, embora não reconhecida formalmente. É também uma época em que o
mundo é visto como um teatro, e como não iria isto invadir os parlamentos, que
se tornaram nos palcos por excelência?
Ora, quanto mais mediática se torna a
sociedade, menos as discussões parlamentares visam os interlocutores oficiais –
ou seja, os políticos já não falam realmente entre si –, mas encenam papéis
tendo em visto um espectador padrão. O jornalismo adoptou mesmo a figura do “idiota
padrão” para saber se o que publica tem eficácia comercial. Em geral, até mesmo
as discussões pessoais sobre assuntos públicos “democratizaram-se”, ou seja, a
comunicação verdadeiramente humana foi substituída por uma encenação a ser
aplaudida pelos idiotas do mundo.
Isto tem consequências absolutamente
notáveis. O debate democrático chegou com a promessa de fazer luz sobre as
questões, o que podemos traduzir como uma passagem de um mero discurso
retórico, ao nível da verosimilhança, para a probabilidade elevada do discurso
da dialéctica clássica. Creio ser possível demonstrar que esta passagem jamais
pode ocorrer como fenómeno colectivo mas apenas se dá na consciência
individual. Claro que o mesmo “insight” pode ocorrer a vários indivíduos quase
que simultaneamente, mas trata-se de um evento extremamente raro, que depende de
uma coincidência de certos factores: as várias pessoas envolvidas têm que ter níveis
idênticos de atenção, compreensão, conhecimento, inteligência, etc. Isto
acontece em discussões puramente técnicas, onde as pessoas envolvidas foram
treinadas precisamente para chegar a um estado cognitivo adequado a este tipo
de “insights”. Contudo, as questões públicas não podem ser delimitadas da mesma
forma que as questões técnicas, onde cada pessoa já conhece de antemão todas as
variáveis envolvidas. É tão provável duas pessoas perceberem as mesmas coisas
numa discussão pública como dois indivíduos terem o mesmo sonho com todos os
detalhes.
Mas como é possível ver tantos militantes
convictos seguindo um líder político se nenhum deles entende o mesmo que o
outro ao lado? Porque nenhum deles está apostando na clave do conhecimento, simplesmente
deixam-se ser seduzidos. E não existe fascínio tão grande como aquele que o
bebé sente pelos pais, e isto é uma pista que indica que, também em democracia,
os políticos representam as pessoas tal como os pais representam os filhos
menores. Em termos cognitivos, o debate democrático não é uma passagem da
retórica à dialéctica mas uma regressão da retórica à poesia e ao mito. Ou
seja, é uma exploração do meramente possível, onde tudo é permitido e para onde
todos os sonhos podem confluir. O fenómeno não tem que ser “puro”, já que o
militante que se deixa embalar no sonho do político pode, paralelamente, estar
elaborando complexas justificações, que depois o iludem de ter feito uma
escolha racional e não uma baseada em puras emoções infantis, como de facto
ocorreu. Da mesma forma, aqueles que procuram uma ascensão rumo à verdade, pela
dialéctica e pela lógica, podem e devem colorir esta pesquisa de retórica e
poesia, que são os garantes de inserção no mundo real via imaginação. Os quatro
discursos não são modalidades separadas mas fazem parte de uma potência única,
como demonstrou o filósofo Olavo de Carvalho, mas há que saber qual é o grau de
credibilidade que cada um possui.
Que implicações tem desta democracia
representativa encenada? Esta democracia veio junto a outras novidades no
pacote modernista iluminista, que assegurava que iria tirar as massas da
obscuridão e colocá-las no caminho da racionalidade. O desenvolvimento de
certas ciências e da tecnologia parecia confirmar isto, mas afinal tratam-se
apenas de habilidades largamente mecanizáveis e que nada ensinam sobre como
tomar opções num mundo com um número indefinido de variáveis. Para estas questões
está reservado o debate democrático, no qual o cidadão comum entra sem
perceber, achando que o grupo vai transportá-lo para um debate mais racional,
quando na realidade apenas o faz mergulhar num teatro de ilusões, em que a
verdade é confundida com algum tipo de emoção grupal. Ainda aqui continuam existindo
hipóteses em conflito, entenda-se, mas a opção por uma ou por outra não está
nos méritos próprios mas apenas na capacidade de adesão emocional que os seus
proponentes conseguem desencadear. Naturalmente que isto tem conduzido a todo o
tipo de decisões aberrantes e para evitá-las de nada serve desmontá-las
racionalmente, apenas é possível fazê-lo criando uma sensação de mal-estar em
seu redor.
A democracia como encenação trouxe ainda
outra consequência que não está apenas ao nível da discussão pública com vista
à tomada de decisões. A própria discussão privada foi mimetizando a discussão
pública, fazendo de cada pessoa um actor improvisado. Assim, todos se
transformaram em fiscais da democracia mesmo em meras conversas de café, onde
só é de bom-tom falar de certos temas e as maneiras apropriadas, sempre de
acordo com o padrão democrático veiculado pelos meios de comunicação social.
Estes simulam haver um poder e uma oposição, dando por isso a ilusão de que tudo
o que é razoável já estar representado, pelo que aqueles que se atrevem a sair
destas pautas caem numa espécie de não-ser merecedor do mais vívido desprezo e
a mais veemente censura. Isto quer dizer que a famosa liberdade de expressão se
tornou na obrigação de papaguear algo que algum idiota na televisão já disse,
ou então mostrar um silêncio complacente. Qualquer um pode testar isto e
afirmar junto aos “amigos” alguma ideia que não tenha ressonância em alguma
posição mediática, ainda que seja de algum grupo minoritário, e verá como o
olham com horror, com se lhe tivesse nascido um olho na testa.
Se a democracia representativa, tal como se
veio a consolidar, conduziu a um desprezo total por aquilo que de mais próprio
tem o ser humano – a faculdade de ser uma causa livre –, podemos ao menos dizer
que ela, em termos sociais, terminou com as oligarquias e deu o poder ao povo?
Até agora vimos que o único poder que o povo ganhou foi o de cada indivíduo
poder infernizar a vida do próximo, e isto não por maldade ou mesquinharia mas
em nome da própria democracia. Mas também não é difícil perceber que a
democracia representativa encenada conduz a um formidável aumento do poder dos
oligarcas, e o sufrágio universal não esconde o facto de que os cidadãos apenas
podem votar em soluções já trabalhadas de antemão. Numa democracia directa, um
único indivíduo pode ascender na hierarquia por mérito próprio, e um grupo de
pessoas relativamente modestas pode se associar adquirindo algum destaque, ao
mesmo tempo que nenhum grupo terá grandes meios de se impor pela força se não
tiver méritos reconhecidos pelos outros. Podem-se conjecturar muitas
possibilidades num regime primitivo assim, mas o mesmo não se passa com as
democracias modernas. Nestas, alguém que queira atingir o poder sabe que a
única solução é associar-se a um grupo que domine partidos, comunicação social,
maçonaria, etc. Um Zé Ninguém até pode chegar a Presidente da República, e nada
mais eloquente que o caso actual, mas não foi ele que subiu a hierarquia por
mérito próprio, simplesmente foi colocado lá por poderes infinitamente acima
dele. Só há duas formas de subir nesta democracia: ou pela sabujice, percebendo
em cada altura onde está o poder e fazer tudo o que ele pede; ou ser um idiota
completo que, por uma improvável sequência de acasos, se torne na figura ideal
para as necessidades do momento.
Claro que podemos admitir que tudo se passa
por evolução espontânea; que o advento da democracia diminuiu o instinto de
poder do ser humano; que os poderosos abdicaram do poder de manobra nos
bastidores e agora apenas querem jogar golfe e ter umas amantes de luxo. É esta
a imagem que se quer dar, que os partidos são caóticos, que os grandes
empresários e os banqueiros só querem saber dos seus lucros e não ligam para o
país, que os intelectuais vivem isolados nas suas torres de marfim. Por isso
tanto se fala de consenso, que é preciso ter uma ideia para o país, que temos
de planear o futuro a longo prazo e assim por diante. Parece má demais a ideia
de que o colapso de Portugal tenha sido planeado pelas suas elites – só quem
acredita em teorias da conspiração pode ter semelhantes ideias, avisa o idiota
que aprendeu ontem a limpar o rabo com papel higiénico –, tem que ser outra
coisa porque não é isso que dizem os jornais, não é sobre isso que falam os
comentadores, não é isso que escrevem os académicos. A alternativa é considerar
que os nossos homens mais sábios não passam de uns cretinos e que as elites são
compostas de psicopatas? Quem tente, mesmo que seja por cinco minutos, olhar
para a nossa era com os olhos de qualquer homem sensato de qualquer era passada
de qualquer lugar não deixará de confirmar esta última hipótese. A única coisa
que nos impede de reconhecermos isto é o provincianismo temporal, que leva a tomarmos
a nossa situação actual, seja qual for, como padrão de referência
inquestionável, e a partir dela podemos medir tudo o resto depreciativamente.
Dito isto, resta saber se a democracia moderna é algo
monstruoso por natureza. Não tenho ainda uma resposta para isto, mas pretendo
investigar até ter uma resposta satisfatória. Como a democracia convive com uma
série de outros factores, alguns antagónicos a ela, é difícil dizer onde está o
verdadeiro problema. Contudo, podemos fazer um enquadramento prévio. A
democracia moderna revelou-se fraco impedimento contra regimes totalitários,
como demonstra a eleição de Hitler, e mesmo mantendo a democracia formalmente,
ela mesma pode ser um regime totalitário, que é o caminho seguido por quase todas
as democracias modernas. Então, ou a democracia tem ela mesma um fundo totalitário
– e há algumas coisas que indiciam isto –, ou ela é irrelevante e deixa-se contaminar
por todas as tendências que nela se agitam, deixando de ser um teatro onde as
ideias mais conflituantes podem actuar para ser ela mesma uma personagem que renega
a sua natureza.
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