Nos últimos anos não deve haver palavra que
seja tão marcante na vida portuguesa como “austeridade”. Ouvimo-la em milhares
de notícias e em inúmeros debates, e poucos são os artigos escritos sobre a
actualidade onde ela não entre. Contudo, se perguntarmos a 100 pessoas sobre o
que entendem por austeridade vamos ouvir 100 respostas distintas, muitas
contraditórias entre si e a maioria apenas incidindo sobre uma interpretação
muito particular, que apenas faz sentido para o contexto em que aquela pessoa
vive. O intenso debate e a contínua informação não têm esclarecido as pessoas e é
estranho que ninguém pareça se dar conta disso.
Tornou-se crença geral que a vida política
é um jogo em que aquilo que se diz – seja para propor, condenar, apoiar ou até
apresentado como reflexão – é apenas uma fachada que esconde as verdadeiras
intenções. Em parte, isto é uma das consequências inevitáveis da democracia
representativa, onde há uma exigência de abertura, porque os políticos têm que
explicar as suas decisões e não devem agir em segredo, mas ao mesmo tempo o
sistema tem que ser fechado já que a maioria das pessoas não conseguiria
compreender todas as implicações de cada medida, por mais inócua que fosse, e isso iria paralisar o sistema.
Durante algumas décadas era razoável achar que a democracia moderna funcionaria
razoavelmente bem num sistema semi-aberto, onde a comunicação social e os
comentadores independentes serviriam de intermediário entre os políticos e o
povo, tendo o papel de fornecer a informação relevante e dando a conhecer as
consequências mais importantes de cada decisão assim como as de cada omissão grave, mas
poupando o público de detalhes irrelevantes. O que vimos foi precisamente o
oposto. Estes intermediários são antes um tampão entre o povo e os políticos,
não são independentes e ao invés de salientarem o que é importante limitam-se a
discutir irrelevâncias.
Com o progresso da guerra cultural, a abertura
na democracia tornou-se a brecha por onde entraram todos os demónios. Não foi
difícil aos planificadores sociais perceber que já não precisavam de regimes
abertamente totalitários para implementar os seus planos, ainda como que cobaias
longínquas, se soubessem usar os mecanismos de abertura e de ocultação das
modernas democracias. Hoje controlam a quase totalidade dos meios de
comunicação social e, mais importante, a linguagem corrente. Se analisarmos a
evolução do uso de palavras como “democracia” ou “liberdade” vemos que elas
foram esvaziadas de conteúdo ao ponto de serem usadas para fins opostos aos que
tinham há umas décadas atrás, funcionando apenas como catalisadores emocionais.
A “arte política” tornou-se, então, numa forma de usar certas palavras ou
expressões como pólos agregadores, onde vontades desavindas se juntam numa
emoção mais ou menos homogénea, que irá depois domar o pensamento para que este
entre num ciclo psicótico e, no final, aquele que pensa é apenas um veículo
inerme de ideias alheias.
Isto traz-nos de volta à questão da
austeridade. É loucura achar que se podem discutir seriamente questões como “deve
haver austeridade?” ou “mais ou menos austeridade?” sem termos antes avaliado
os próprios efeitos psicológicos que a palavra “austeridade” tem sobre nós.
Quando pensamos em austeridade, temos uma ideia clara sobre o que se trata
ou há em nós apenas uma confusão de ideias dispersas e contraditórias unificadas
por uma certa emoção? A questão não é tão fácil de responder como parece. O
segundo caso parece descrever um estado de indigência mental próprio dos
mentecaptos e poucos se reconhecerão nesta descrição. São estados próximos da
loucura, e esta assemelha-se a um sonho isolado, ao passo que a maior parte das
pessoas que se indigna com a austeridade sabe que não está isolada mas faz
parte da maioria. Contudo, este colectivo é apenas uma ilusão criada pelos
meios de comunicação de massas, dado que as pessoas estão mais que nunca isoladas nos
seus sonhos. Já ninguém toma por genuíno o que os seus olhos vêm mas aquilo que
o colectivo confirma, mesmo que este colectivo não seja real mas uma abstracção criada pelos jornais.
Mas que interesse têm os actores políticos
nesta alienação política e de que forma lhes convém que a “austeridade” apareça como algo difuso,
essencialmente ligado a uma emoção? No caso da oposição, é fácil perceber esta
vontade. Austeridade tem que ser algo imediatamente associado a sofrimento,
privação, injustiça social e assim por diante. Depois de feita esta colagem,
pode-se discutir a austeridade porque esta será sempre um símbolo para estas
coisas e não será vista como aquilo que é, e assim a oposição poderá fazer a sua apologia de gastos desenfreados sabendo que nunca será responsabilizada por nada. Da parte do governo poderia parecer
que havia um interesse em optar por um caminho inverso, onde se começaria por esclarecer,
da forma mais racional e objectiva, a situação do país, mostrar que vivemos
acima das nossas possibilidades, como estamos à beira da bancarrota e, logo,
que é imperativo uma contracção em vários sectores, a que podemos denominar por “austeridade”,
e daqui podia resultar uma associação emocional bem mais racional, ligada ao
orgulho de fazer o que é certo, à vontade, à coragem, etc. De início, o próprio
primeiro-ministro Passos Coelho deu a entender que queria optar por este
caminho, mas rapidamente mudou de rumo e optou por uma versão encantatória do
uso da “austeridade”. De um certo ponto de vista, isto parece um suicídio
político, porque se trata de fazer o jogo da oposição, ao mesmo tempo que se
demite das responsabilidades para com o país. Qual o interesse do governo
nisto?
A minha ideia é que se trata de um interesse
pragmático, que é também uma forma encapotada de abandonar todos os princípios.
Para entender isto temos que entrar um pouco dentro da própria governação. Não
é difícil de perceber o que deve ser essa tal de austeridade e por onde se deve
cortar. Contudo, o governo rapidamente chegou à conclusão que não podia cortar
onde devia, se é que alguma vez teve essa intenção, porque isso iria mexer com
gente poderosa e com uma constituição socialista. Então, só restava ir ao sítio
do costume e sobrecarregar a classe média de impostos. Mas isto não é austeridade,
é saque fiscal, para a qual aconselho a seguinte leitura que faz um enquadramento mais vasto:
Cinicamente, quando o governo desistiu da verdadeira
austeridade – calculo que tenha sido logo nas primeiras semanas de governação, bem
antes do primeiro (?) chumbo do Tribunal Constitucional – foi precisamente
quando aderiram à retórica da “austeridade”. Nada tem isto de contraditório,
porque a retórica da “austeridade” significa esvaziar a palavra de conteúdo para
poder usá-la em sentido inverso do que devia ter. Ou seja, a verdadeira
austeridade seriam cortes na função pública, nos institutos, nas PPP e assim
por diante, mas agora o governo pode esquecer tudo isto e aumentar impostos
dizendo que é em nome da austeridade. Trata-se de uma manobra de grande cinismo
e um embuste tão grande ou maior do que aquele que faz a oposição. Nada disto
me espanta nos políticos, mas ainda fico surpreendido por não ver ninguém a descrever
estas coisas.
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