É comum fazer-se o
elogio implícito à capacidade de rápida compreensão. Quando ela se dirige a
fins eminentemente práticos, diz-se que é uma questão de esperteza, e quando se
trata de problemas de cariz intelectual então é vista como inteligência ou
mesmo genialidade. Contudo, todos nós conhecemos “gente esperta”, que sempre
conseguiu se desenrascar, mas que chegam a uma certa idade e, de repente,
parecem ter sido ultrapassados por todos os outros, e continuam a aplicar
receitas estereotipadas que não resultam mais e só eles não percebem como se
tornaram patéticos. Sobre os “génios precoces” a coisa ainda é mais
catastrófica, não porque alguns não consigam ocupar postos de elevada competência
intelectual, mas porque quase todos são atacados de tantas fragilidades que, no
conjunto, mais parecem débeis mentais.
Os antigos já sabiam
que desenvolver muito a inteligência independentemente de outras capacidades
era o mesmo que o corpo ter um membro muito mais desenvolvido do que os outros,
o que só acabaria por atrapalhar e criar um ser monstruoso. Frank Abagnale – o
maior impostor da história, sem contar com os ocupantes de cargos políticos –
diz que a sua perdição de juventude era a enorme capacidade de observação que
tinha e que lhe permitia engendrar num instante os esquemas mais mirabolantes. Ele
tinha esta capacidade muito desenvolvida em relação ao conhecimento que tinha
do conjunto da sociedade e, especialmente, das complexidades do ser humano, que
só veio a adquirir mais tarde, tornando-se num cidadão respeitável. Em geral,
ser detentor de uma capacidade especial coloca logo dois problemas: por um
lado, a pessoa é detentora de um poder que dificilmente conseguirá dominar; mas
irá também chamar atenções e assim suscitar invejas, receios e a cobiça de quem
a queira usar para fins que ela nem suspeita.
Estas considerações
ganham uma especial relevância quando se trata da avaliação dos problemas que a
realidade apresenta e que transcendem o lado meramente prático, como acontece
com os problemas sociais, políticos, históricos, etc. Ainda continuamos a
valorizar o artista que mais
rapidamente ofereça a interpretação de qualquer acontecimento. Os canais de
notícias apresentam rotineiramente painéis de “experts” comentando eventos
quase em tempo real, e no facebook qualquer um pode simular essa capacidade. É
fácil perceber que, com este ritmo vertiginoso, já ultrapassamos o tempo em que
cada um tem opinião sobre tudo, porque já nem há tempo para engendrar essa opinião,
ainda que esta seja a mera recolha de ideias flutuantes no ambiente. O que
temos hoje é um tipo abastardado de militância, onde cada um repete o discurso
do seu grupo de referência, ainda que este seja mera criação mental. É
frequente um indivíduo frequentar um site de notícias apenas para repetir,
quase sem alterações, o mesmo comentário em vários locais, primeiro numa
notícia de política nacional, depois numa de futebol e por fim numa a respeito
do último produto tecnológico. E não faz isto como se fosse uma coisa paralela,
mas acredita que está mesmo em sintonia com as várias notícias.
O que é estranho é
que estes casos não são encarados como o que são – perturbações mentais – mas
apenas como a opinião legítima em liberdade democrática, que não é visto apenas
como o direito ao erro mas como o privilégio do erro ou o discurso aleatório
reclamarem para si o mesmo valor que aquele possuído pela verdade. Isto quer
dizer que aqueles que se esforçam por saber o melhor possível como as coisas
são não podem ter esperanças de obterem qualquer reconhecimento por isso. Muito
provavelmente, como vão dizer coisas que não batem certo como o «senso comum»,
serão acusados de proferir opiniões pouco reflectidas, quando será o oposto. As
massas estão imbecilizadas, pelo que agradá-las só é possível se representarmos
um ponto central dessa imbecilidade. Isto não quer dizer que não temos o dever
de fazer algo por essas massas, até porque não podemos ser ingénuos de achar
que a imbecilidade colectiva não nos afecta. Mas para fazermos algo de útil,
num contexto de caos, temos primeiro que nos recolher para reflectir e buscar a
companhia, ainda que imaginária, daqueles que fazem ou fizeram o mesmo. É aqui
que se torna importante considerar o fenómeno do entendimento e da compreensão.
O simples
entendimento de algo é uma pequena luz que se faz em nós. Contudo, nem toda a
luz é entendimento e menos ainda compreensão (esta exposição não tem a pretensão
de ter validade científica, nem há a preocupação de usar os vários termos de
forma técnica). Esta luz pode ter duas modalidades, que são dificilmente articuláveis.
Numa, ela deriva da nossa abertura para a realidade e assim as coisas “dizem” o
que são na medida das nossas capacidades e do nosso grau de abertura. Noutra
variante, o clarão é interno e tentamos depois derramá-lo sobre a realidade, ou
seja, ficamos deslumbrados por alguma teoria e tentamos encaixar os factos
nela. Aparentemente, a escolha entre os dois casos é fácil de fazer, porque no
primeiro caso estamos na senda da verdade e no segundo estamos na via da
ilusão. Contudo, estas duas modalidades de entendimento não existem à
disposição de forma pura e dependem em certa medida uma da outra. Basta ver que
não podemos nos iludir com teorias desde que nascemos porque nem sequer
possuímos uma linguagem que nos permita fazer isso no início. Por outro lado,
apenas aprendemos com a realidade fenómenos de ordem imediata, ainda que
complexos, e não mecanismos de ordem superior, como os relacionados com a
história, com a política ou com o conjunto da sociedade. Ou seja, a nossa
abertura para a realidade também é condicionada por instrumentos de criação humana,
como a linguagem e teorias explicativas, mesmo que erradas, pois mesmo estas
podem nos servir de alavanca para vermos algo que sem elas permaneceria oculto.
Palavras e ideias devem tornar-se, no intelectual sério, como que órgãos de
percepção, que nos permitem captar estruturas sociais, correntes históricas,
estratégias políticas de longo alcance e assim por diante. Então, a compreensão
precisa desesperadamente das palavras e da teoria, e ao mesmo tempo tem de transcende-las
numa abertura para a realidade, e isto de certa forma emula o próprio ideal
científico.
Existem dois riscos
óbvios neste processo. Quem apenas queira ficar com a abertura para a realidade
terá, no máximo, um conhecimento mudo e muito provavelmente irá, mais tarde ou
mais cedo, adoptar alguma teoria pueril para encaixar as sua «sabedoria»,
iludido de ter atingido algum tipo de iluminação. Por outro lado, os adeptos da
“teoria fechada” irão se tornar meros burocratas do intelecto ou, pior ainda,
iludir-se de que a realidade está contida na sua teoria e talvez que até tenha
sido criada por ela. Obviamente que ainda pode haver um terceiro tipo de risco,
que é o da articulação totalmente errada entre as duas formas de conhecimento,
como juntar práticas esotéricas de quinta categoria com teorias
pseudo-científicas. Pessoalmente, todos podemos correr qualquer um dos riscos,
mas o potencial de destruição social é maior no caso dos adeptos da “teoria fechada”,
até por estarem frequentemente ligados ao prestígio da ciência.
Existe um critério
prático para reconhecer se estamos em presença de alguém que está na ilusão da “teoria
fechada” e que serve para percebermos se nós mesmos estamos metidos nesse
labirinto. Se for o caso, então existe a compreensão rápida e frequentemente
impressionante, onde tudo aparece enquadrado sem falhas. O sujeito que, quase
em tempo real, dá uma explicação de um fenómeno complexo não compreendeu esse
fenómeno mas apenas mecanizou um processo de adaptação de uma teoria a uns
factos escolhidos à medida. A verdadeira compreensão é sempre lenta.
Pode partir até de alguma teoria mas temos que fazer uma intensa dialéctica
entre ela e a realidade dos factos até chegarmos a um entendimento em que as
duas coisas cheguem a algum tipo de acordo, onde fiquem salientados os pontos
de obscuridade e de ignorância. Quase 100% dos comentaristas de blogs e da
comunicação social ignoram a necessidade de fazer isto e acabam por ser meros
propagandistas voluntários ou involuntários.
Pode também acontecer que alguém mostre uma aparente
compreensão rápida mas que tenha feito esta dialéctica. Neste caso, há um
prolongado trabalho anterior – os propagandistas também são esforçados mas
fazem um trabalho de outra ordem – que lhes permite reconhecer que uma aparente
nova situação apenas repete algum padrão conhecido, ou então que aquilo que foi
identificado como o surgimento de um fenómeno é apenas uma manifestação tardia
de algo que passou despercebido às massas. Apenas conseguimos distinguir claramente
estas pessoas dos meros propagandistas se já tivermos feito um esforço prolongado
no mesmo sentido. Para o leigo é normal que o propagandista diga coisas com “mais
sentido”, precisamente porque este lhe faz um apelo emocional usando ideias
correntes nas quais o leigo já acredita sem perceber. O verdadeiro intelectual
ilumina de outra forma, as suas explicações parecem fazer mais sentido em certa
medida, mas também assustam porque exigem que o ouvinte saia do conforto das suas
ideias feitas e reconheça que o seu horizonte de compreensão é limitado. Mas
nem este critério é muito fácil de aplicar. A nossa ignorância em certas áreas
pode ser tão grande que se depararmos com uma “teoria fechada” muito tacanha
ainda assim podemos sentir aquilo como uma grande abertura, como um mar de
possibilidades e perplexidades, ou seja, que estamos na senda do caminho árduo
para a verdade, quando apenas demos o primeiro passo num caminho sem fim. Não
há outro caminho para a compreensão a não ser o de estarmos preparados para, a
qualquer momento, sermos atirados para o deserto.
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