No post anterior abordei dois tipos de
movimentos de massas – greves e manifestações –, começando por distinguir dois
planos – o dos participantes e o dos organizadores –, fazendo algumas
considerações sobre a ligação entre eles. Vou agora entrar dentro da óptica dos
participantes nestes movimentos, deixando para depois o plano da organização.
Novamente, é mais fácil começar pelo fenómeno
da greve, focando-me no caso português, do qual tenho mais evidências. Neste
caso, a participação, como tinha dito, revela-se pela ausência no local de
trabalho, não é preciso “dar a cara”; a pessoa pode aproveitar para ir à praia
ou evadir-se no centro comercial. Pelo contrário, furar a greve pode até exigir
uma boa dose de coragem devido a eventuais piquetes de greve. A adesão à greve
de pessoal militante e dos facilmente sugestionáveis não carece de grandes
explicações, mas acontece que hoje há, entre os grevistas, muitos indivíduos
habitualmente avessos a estes movimentos. É bastante redutor achar que se trata
apenas de uma reacção daqueles que se encontram acomodados à sombra dos direitos
adquiridos, agora em risco. Num país carregado de impostos, a dinâmica de
criação de emprego é muito reduzida e isso obviamente que cria em grande parte
da população uma necessidade de segurança acrescida. Além disso, nos tempos que
correm, não só a taxa de desemprego é elevadíssima como ninguém se atreve a
dizer que ela vai baixar significativamente num prazo reduzido. Diariamente
surgem notícias de estudantes que terminam os seus cursos superiores e
imediatamente vão para o estrangeiro, já que por cá não vão conseguir se
empregar num lugar conforme as suas expectativas mínimas. Face a isto, é
natural a apreensão de quem tem 40 ou 50 anos e se encontra endividado.
Compreendendo a angústia de muitos
portugueses, poderíamos perguntar, de seguida, para que servem greves e
manifestações. A greve só cumpre o seu fim se causar algum tipo de incómodo. Um
exemplo de uma situação natural de greve ocorre quando um grupo de operários se
recusa a trabalhar na fábrica – seja devido a baixos, excesso de horas de
trabalho ou falta de condições de segurança –, sendo as reinvindicações
comportáveis para a empresa e, a longo prazo, esta até pode vir a ter mais
lucro. Contudo, as greves actuais destinam-se a provocar um incómodo não apenas
localizado mas transversal a toda a sociedade – como acontece com as greves na
educação, portos e transportes –, e em que é muito duvidosa a justiça das
reinvindicações. São greves que não visam um progresso mas uma imobilização ou
mesmo a uma destruição.
Quando passamos para as manifestações, a
coisa ainda fica mais obtusa. É natural que as pessoas fiquem indignadas pelo
rumo que as coisas vão tomando e que desconfiem dos governantes. Mas destas
manifestações que têm ocorrido não pode sair qualquer alternativa viável (isso
não quer dizer que não existam alternativas viáveis, mas estas não são do
interesse dos organizadores das manifestações), porque ou se vai trocar estes
governantes por outros do mesmo calibre ou então cai-se numa deriva marxista
que pode lançar o país numa espiral de miséria e de terror sem fim.
Pode parecer que a motivação é apenas uma
voragem incontrolável pelo abismo. Mas para assim ser, tal implicaria que o
cidadão comum não apenas compreende a situação do país em profundidade como
entende quais são as verdadeiras consequências de greves e manifestações,
levadas aos seus fins últimos. Não só o cidadão comum está longe de perceber
isto como as elites também não estão em melhores condições, apenas disfarçam a
ignorância com uma verborreia insuportável. O ponto de partida é simples: o
indivíduo está apreensivo sobre o seu futuro por razões não só objectivas como
evidentes; e ele “sabe” que a solução está na mudança e no «futuro», acreditando
cegamente neste “valores” devido à contaminação da mentalidade revolucionária. Quem
dá voz a estes descontentes? Naturalmente aqueles que partem da emoção negativa
e tentam transmutá-la numa esperança de um futuro radioso. Quando os partidos
do “centrão” apostam nas técnicas de comunicação e falam de esperança, eles estão
tentando fazer algo assim, mas esta é uma ilusão que apenas resulta em tempos
de normalidade democrática. As pessoas sabem que o “centrão” pode oferecer: na
melhor das hipóteses, dele apenas podemos esperar algo mediano e certamente que
não tem competência para lidar com uma verdadeira crise. Quando esta chega, a
dimensão das esperanças tem que ser proporcional à amplitude do desespero, e
este é o terreno dos partidos radicais revolucionários que possuem a
infra-estrutura – material e intelectual – necessária. Portugal só não está em
bancarrota por intervenções artificiais, e não deu um único passo desde a assinatura
do memorando da troika para poder
sair desta situação. Os radicais oferecem uma solução que é objectivamente
suicida, mas psicologicamente é uma boa solução porque está colocada para além
do tempo. Trata-se realmente de manipulação mental, da colocação de um
interdito sobre a meditação das presentes condições dentro de um campo de
espaço e tempo realmente existente. Dito de forma mais simples, é fazer com que
o sonho esmague o raciocínio.
Em parte, a própria democracia torna isto
inevitável. Em teoria, o discurso retórico dos políticos daria elementos
suficientes para os cidadãos fazerem uma dialéctica e assim chegarem a um nível
de conhecimento muito mais razoável, mediante a confrontação das hipóteses em
cima da mesa, e desta forma o debate na sociedade civil iria obrigar políticos
e governantes a tomar decisões cada vez mais acertadas, excluindo das eleições
os piores políticos por mera selecção da natureza humana. Mas para isto se
verificar tinham que se reunir duas condições. Por um lado, o cidadão tinha que
ser treinado na arte da dialéctica, e se percebemos que são raros os juízes que
o são, ficamos conversados sobre este assunto. Por outro lado, os discursos dos
actores políticos tinham de ser verdadeiramente retóricos, ou seja, teriam quer
partir das verdadeiras crenças públicas e procurarem hipóteses razoáveis, sem
entrar em qualquer tipo de manipulação. O que vemos é que a maioria dos
discursos são erísticos – partem das crenças que se querem induzir no público e
não das que este realmente tem, como acontece quase sempre que alguém começa
por dizer “como você sabe” –, ou então são meras manipulações verbais e
emotivas.
Ou seja, a democracia abre o debate tal como
Pandora abriu a sua caixa, ficando todos os males à solta e restou apenas a
esperança, que é aqui metáfora para a crença revolucionária de um futuro
melhor. O debate público tornou-se tão caótico que a sociedade se torna hoje
para nós tão temível como era o cosmos para o homem primitivo. Tal como o
primitivo, entregamo-nos ao mito, ao discurso poético, mas não entendemos que
estamos no mero terreno das possibilidades – tentando encontrar um princípio de
ordem – e cremos que os nossos sonhos têm a força provante dos argumentos
lógicos. Daqui surge naturalmente a dúvida se a democracia é inviável em si ou
se precisa apenas de ser corrigida de alguma forma. Não tenho uma resposta
definitiva para isto, embora pretenda investigar o assunto, sem grandes ilusões
de poder ser totalmente bem-sucedido.
Acabei por não focar muito a perspectiva
realmente interna do participante numa manifestação, mesmo porque não estou
actualmente em condições de fazê-lo em profundidade. É também importante fazer
sempre uma contextualização do assunto, para não considerar o “manifestante em
si”, como se fosse o arquétipo. Para além dos elementos que referi, podemos
ainda juntar outros factores que suscitam maior “fervor contestatário”. Há,
entre muitas outras, duas questões de fundo que lançam descrédito sobre as
possibilidades de melhorar a situação por vias normais (a manifestação é uma exibição
de força que visa, em última análise, uma alteração política a ocorrer por vias
não convencionais).
Por um lado, existe a bem conhecida armadilha
da maioria que é capturada pelos próprios benefícios insustentáveis que
alcançou: não é possível a situação continuar como está por muito mais tempo,
mas os sacrifícios isolados também não resolvem nada. O problema apenas pode ser
resolvido mediante uma alteração colectiva e sem apelo, que a própria
democracia torna praticamente inviável, e por isso está sempre latente o desejo
de um regime mais duro. Daqui resulta também uma ambiguidade ou dualidade na
alternativa radical revolucionária. Se parece que o seu foco é o sonho fora do
tempo, não passa despercebido a muitos que, na prática, os revolucionários no
poder vão começar por impor políticas de verdadeira austeridade, ou então
criarão um caos tal que tornarão inevitável um pronunciamento militar que
restitua a ordem.
A
outra questão é mais subtil e tem a ver com um certo desencanto em relação ao
estilo de vida moderno, nomeadamente a profusão de mitos como o da “realização profissional”.
O trabalho já não é visto como um dever moral mas como a substituição da
própria espiritualidade (em conjunto com outros mitos modernos, como o cultivo
do individualismo e do colectivismo), o que deixará infelizes 99,99% dos
funcionários que não cheguem a ter um posto em algum conselho de administração.
Isto pode parecer uma questão puramente sociológica, mas a própria democracia
tem tendência a tudo politizar, pelo que se cria a crença e até a necessidade –
ou mesmo a urgência – de resolver todos os problemas, inclusive os da
intimidade, por via política e legislativa.
Face a esta contextualização mínima, vou
intentar um esboço rudimentar sobre o que é uma manifestação política. Convém logo
por fazer uma distinção, que não é tão irrelevante quanto parece, entre uma
manifestação e um ajuntamento de pessoas para ver um concerto ou para
participar em algum tipo de celebração pública. Nestes casos, embora exista um
efeito grupal, ele é sempre mediado e até delimitado pelo objecto do evento,
seja o espectáculo em si ou a comemoração de uma efeméride. Podemos incluir neste
género algumas manifestações religiosas que tenham um objecto concreto e
inequívoco para todos, como certas procissões. Contudo, outras manifestações
religiosas apelam ao transcendente, a algo que não pode ser captado
inteiramente por ninguém e, segundo alguns, para algo que não está
efectivamente presente mas é fruto de projecção mental de cada um e “confirmado”
pelo reforço grupal. As manifestações políticas parecem entrar neste enquadramento,
e esta será uma das razões para alguns considerarem as ideologias como
religiões políticas, porque elas se materializam frequentemente na forma de
manifestações políticas que, mesmo tendo um pretexto alegado, insistem na
fórmula “é muito mais do que isso”, o que remete de novo para o sonho atemporal.
A analogia entre religião e ideologia é muito
sugestiva para alguns, sobretudo para aqueles que odeiam tanto uma como outra,
mas acaba por ser muito limitada. A função da religião é elevar a pessoa em
termos, espirituais e até intelectuais, e sabemos que se de uma manifestação
religiosa saírem actos terroristas é porque algo correu no sentido oposto do
que devia, e os indivíduos ao invés de se engradecerem ficaram dissolvidos num
colectivo que abdicou da transcendência mas fala em nome dela para perseguir
fins puramente imanentes. Contudo, a manifestação política visa apenas este
fim, ela não sobrevive um instante se cada indivíduo tentar seguir um
verdadeiro caminho, e usa o sonho atemporal como símbolo da transcendência, usada
em sentido psicológico, já que tem que repugna-la oficialmente. Tanto a
manifestação política como a manifestação religiosa deturpada iludem os
indivíduos de se agigantarem ao “receberem” temporariamente a força do
colectivo, já que naquele momento sentem, pelo menos, toda a potência
destrutiva do grupo. Obviamente que se tratam de formas de alienação que podem
ter efeitos irreversíveis.
Segundo esta descrição, terei que distinguir
a manifestação política – que não tem um objectivo realizável no tempo – de
outro tipo de ajuntamentos que podem ter fins políticos, como certas passeatas
ou marchas de protesto ou mesmo celebrações de datas de importância nacional.
Nestes casos, o objectivo é concreto, não existe a ilusão de transcendência e o
efeito grupal é orgânico, situa melhor a pessoa no seu contexto e não a atira
para um limbo atemporal. Numa sociedade saudável, as manifestações deste tipo
serão praticamente as únicas existentes, ao passo que numa sociedade alienada
grassam as manifestações políticas, embora nem sempre seja fácil distinguir as
primeiras das segundas. As primeiras manifestações não ocorrem tanto por
necessidade mas mais por dever, por honra e até por orgulho. Porque são tão
apelativas as manifestações políticas aos indivíduos perdidos na vida? Porque
estes têm muitas necessidades por satisfazer e têm carência que alguém lhes dê
um contexto coerente, mesmo se totalmente falso, além de estarem sempre à
míngua de aprovação grupal. A manifestação política oferece tudo isto e o sonho
atemporal é um recipiente em que se podem projectar todas as vontades, que ali
nunca parecerão desavindas. Mas enquanto que uma ditadura pode criar um aparato
que convoca, pela demonstração de força, as pessoas a aderirem a uma manifestação
política, em democracia opera o fenómeno da criação de necessidades e da
concomitante crença de que estas, sejam de que género forem, são naturalmente supridas
por via política.
Este esboço não visa, obviamente, tentar explicar o
fenómeno na sua dimensão total. São apenas considerações que podem ser feitas
pela mera interpretação dos factos à disposição de qualquer um. Sem fazer algum
tipo de reflexão deste género, penso que de pouco servirá a leitura das obras a
respeito, desde os elementos dados por Heródoto até passar pelas obras
clássicas de Gustave le Bon.
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