Se o
post anterior está correcto, isso implica que capitalistas e socialistas têm
forçosamente de cooperar em alguma parte do trajecto. Está amplamente
comprovado o financiamento de movimentos socialistas por capitalistas, mas aquilo
de que estou a tratar no momento diz respeito às motivações que, de parte a
parte, levam a esse casamento. Naturalmente que os movimentos socialistas, e
mesmo comunistas, não são apenas financiados directamente por capitalistas. O
apoio financeiro também pode vir da militância de base, de algum tipo de
subsidiação estatal interna, de países socialistas e comunistas amigos da
causa, e até de Estados liberais que, por algum motivo, achem que lhes será proveitoso,
naquela conjectura, fomentar algum tipo de socialismo num determinado ponto do
planeta. Quem não percebe a relevância da questão do financiamento do
socialismo é porque ainda não parou para pensar na quantidade astronómica de
dinheiro necessária para pagar a intelectuais e artistas, para realizar
congressos internacionais, para fazer constantes acções de propaganda e mesmo
para preparar grupos armados e de “desobediência civil”. Em Portugal, ninguém
ainda se preocupou em descobrir quem financia o Bloco de Esquerda, que sem ter
a incansável militância comunista, apareceu em cena com uma estrondosa força
mediática e gastando rios de dinheiros em “outdoors” por todo o país. Não sendo
um partido destinado a ocupar posições de governação mas apenas a criar
rupturas sociais, certamente que não é financiado por empresários expectantes
fazer negócios com o Estado mas com outras pretensões.
Em certa
medida, as ambições do socialista seguem o percurso inverso da evolução dos
objectivos do capitalista, tal como a delineei anteriormente. O objectivo final
do capitalista – quando já é meta-capitalista – aponta para algum tipo de
transcendência, no mínimo para a criação ou manutenção de uma dinastia familiar
que englobe a sua vida e vá muito além dela, mas em geral os objectivos são bem
mais ambiciosos e apontam para algum tipo de influência sobre a totalidade da
sociedade e dos seus destinos. O socialista parte precisamente de um objectivo
transcendente, embora ele finja repudiar tudo o que não seja materialismo. Mas
o que podemos dizer do varredor de rua que também pode ser um Aristóteles ou um
Miguel Ângelo, que os marxistas acreditam ser uma inevitabilidade, da qual eles
são agentes? Nunca religião alguma prometeu uma transfiguração tão grande da
natureza humana a ser operada num mundo imanente. Isto é próprio na mentalidade
revolucionária, que coloca a transcendência dentro do próprio devir histórico,
o que se consubstancia na inversão do tempo. Esta inversão significa que o revolucionário,
ao invés de considerar a história como um percurso de um passado mais ou menos
conhecido para um futuro largamente incerto, considera que o fim da história já
é conhecido por ele e esse fim dá um sentido retroactivo ao acontecer
histórico, inclusive fornecendo uma justificação plena das suas acções
transformadoras, quer estas sejam suaves e graduais, quer sejam brutais e
sangrentas.
Depois
de desmoralizado o socialismo utópico – que descrevia a sociedade ideal mas não
investigou a fundo meios de transformação social – o
socialismo “científico” impôs-se, seguindo um caminho inverso baseado nas
técnicas de transformação social, permanecendo os fins últimos como uma
inspiração tanto vaga como poderosa. Então, num segundo nível, surge um
objectivo mais concreto e que diz a cada socialista o que deve ele fazer para
modificar a sociedade em que se encontra, por forma a acelerar o movimento rumo
à sociedade perfeita. Contudo, como o objectivo é tido como absolutamente
inevitável, deixa de ter sentido averiguar se está ocorrendo alguma aproximação
ou afastamento em relação a ele. A única coisa relevante é se existe uma transformação
social no sentido do afastamento das suas bases históricas. Daí vem a ideia de
movimento, de algo que nunca para, de um Avante! Isto quer dizer que, se uma
acção socialista transformadora perde o seu vigor, ela deve ser eliminada por
outra corrente socialista que tome o seu lugar. Nesta fase, então, o objectivo
passa por provocar tanta instabilidade social quanto possível, mesmo que seja
necessário sacrificar antigos companheiros de luta, usando todos os meios à
disposição. Se isto conduzir a matanças indiscriminadas, à miséria, a campos de
concentração, tanto melhor, pois apenas mostra o poder da própria causa, que assim
se mostra infinitamente acima da presente condição humana.
Contudo, este abismo socialista,
apesar de maravilhar tantos, pode levantar dois tipos de objecção. Desde logo,
a história mostra que as gloriosas revoluções sangrentas não se limitam a
eliminar os “elementos alienados” e rapidamente enviam para a fornalha os
próprios socialistas mais convictos, só sobrevivendo os mais hábeis e brutais.
Sim, o comunista pode ter frequentes orgasmos imaginando que está empunhando a
metralhadora e eliminando a «reacção», mas ele não ignora que, caso a revolução
sangrenta avançasse, muito provavelmente chegaria o momento dele ter que se ajoelhar
para receber na nuca o projéctil disparado por algum colega em missão divina.
Por outro lado, também é de questionar se a revolução violenta, que Lenine
inaugurou, seguia os passos que Marx e Engels delinearam, de um objectivo a ser
alcançado de forma progressiva apenas ao fim de muitas gerações. Então, autores
como Georg Luckás, António Gramsci, Max Horkheimer ou Herbert Marcuse começaram
a estudar formas de implementar a revolução de forma menos brutal mas mais eficaz.
Afastavam-se assim dos ditos marxistas estritos, mas apenas cumpriam o seu
papel revolucionário ao criar correntes transformadoras que pudessem dar
continuidade ao movimento. Juntando estes dois pontos, obtemos um terceiro
objectivo do socialista: ele anseia viver numa sociedade capitalista, conservadora
até, já que é essa a sociedade que lhe dá toda a protecção, segurança, meios de
expressão, de movimentação e associação, bem como lhe oferece o material (instituições,
religiões, rituais, sacramentos, linguagem, etc.) que ele irá subvertendo aos
poucos, como a criança pérfida que se compraz em ir arrancando cada um dos
membros do gafanhoto que capturou.
Enquanto que o capitalista, de
certa forma, só pode se comprometer com um novo objectivo quando renega os
anteriores, o socialista nunca precisa de abdicar do seu primeiro objectivo
transcendente, ou seja, ele pode abraçar ao mesmo tempo a utopia a realizar nos
fins dos tempos, a revolução sangrenta e o conforto burguês, porque ele começou
logo por aceitar um objectivo que também é um princípio de ordem, por mais
aberrante que seja. Isto quer dizer que o socialista terá sempre uma vantagem
estratégica em relação ao capitalista, já que, ao contrário deste, ele nunca
abdica de nada e não se irá desviar do caminho, porque também ele sabe que não
há caminhos, há que caminhar.
Posto isto, não é muito difícil
perceber como podem cooperar socialistas e capitalistas. Os meta-capitalistas
são os herdeiros dos socialistas fabianos do século XIX, que na altura não viam
necessidade de uma luta de classes ou de uma revolução violenta. Como a “nova”
estratégia revolucionária também se suavizou, os dois movimentos encontram-se
naturalmente, embora também não deixem de ter um certo grau de oposição. Cada
um dos movimentos não é propriamente dirigido por uma elite compacta e bem conhecedora
da situação, mas é composta por indivíduos imbuídos de uma certa mentalidade e
com uma visão limitada dos acontecimentos. Por exemplo, um meta-capitalista irá
financiar uma série de grupos socialistas não porque esteja pensar no movimento
socialista como um todo mas porque aqueles grupos que ele suporta desenvolvem
acções que favorecem, pelo menos aparentemente, a sua agenda. Já os socialistas
recebem o financiamento de bom grado, pois mais que ninguém eles valorizam os
meios materiais, e vêem aqui a realização da profecia de Lenine, que dizia que
os capitalistas teciam a corda que os iria enforcar. Note-se que Lenine é uma
figura complexa, que não só foi um dos artífices da revolução violenta como deu
vários elementos para a implementação da “revolução lenta”, como “dar um passo atrás
para dar dois à frentes, “a estratégia das tesouras”, “o capitalismo como
electricidade” ou o “capitalismo de Estado”.
Podemos
dizer que a ideia genérica dos meta-capitalistas em financiar os socialistas
passa pela criação de uma tal instabilidade – social, moral, anímica,
psicológica – para que depois apareça uma elite, composta por banqueiros,
farmacêuticas, pelas grandes famílias, por intelectuais comprometidos, engendrando
uma solução global para os “problemas no mundo”. Naturalmente que a ideia dos
socialistas é serem eles “a solução” e depois irão morder a mão que os
alimentou. Se pensarmos que os socialistas são predadores, que vivem
naturalmente na instabilidade e que, pelo contrário, os capitalistas dependem do
domínio dos instrumentos financeiros e da própria coesão social para obterem a
sua segurança e poder, não é difícil imaginar que quando a instabilidade chegar
a um determinado patamar sejam os capitalistas os primeiros a ser executados, e
com toda a justiça. Obviamente que o quadro real é bem mais complexo que isto. Os
artífices do Califado universal assim como russos e chineses não só tentarão
aproveitar esta instabilidade como têm contribuído para ela. Não falo
propriamente no bloco eurasiano, que é uma realidade presente, porque no futuro
nada garante que a Rússia e a China não sigam caminhos divergentes.
Sem comentários:
Enviar um comentário