19.
Extinção da República e restauração da Monarquia – Este último ponto
pode dar a entender que, no fundo, todo o programa é apenas uma defesa da
restauração da monarquia. Caso assim fosse, estaria a prestar um mau serviço à
causa monárquica dado que não me debrucei o suficiente sobre o assunto, pelo
que deixo a tarefa aos que estão capacitados para tal. Faço aqui a defesa da
monarquia à luz deste programa ideal de governação, sem com isto pretender
esgotar o assunto ou achar que estou mostrando os melhores argumentos que
existem em defesa da causa real. Contudo, penso que algumas das observações que
aqui deixo podem ser úteis aos próprios monárquicos.
Confesso que inicialmente a minha proposta
seria a de dar a escolher entre a monarquia e república, mas depois percebi que
o programa se tornava inviável em república. A república em Portugal não apenas
começou de forma deplorável como teve sempre um funcionamento caótico, tendo
tido apenas alguma estabilidade durante o período do Estado Novo, a que os
republicanos não se querem associar, mas foi o melhor que conseguiram. Sendo este
republicanos revolucionários, nunca irão querer estar plenamente associados a
algum regime que tenha existido mas apenas a um movimento em direcção ao
futuro, onde podem colocar todas as esperanças. Se analisarmos todos os
argumentos de republicanos, socialistas ou liberais percebemos sempre este
fundo latente, de quem nunca assume responsabilidades por falhas passadas mas
coloca esperanças desmedidas no futuro que justificam quaisquer monstruosidades
de percurso. Dessa forma, é fácil a um republicano, por exemplo, comparar o seu
modelo ideal de república com uma imagem concreta da monarquia escolhida a
dedo, nomeadamente de um período de decadência desta.
Assina-lo também que a questão da escolha
entre monarquia e república está viciada dado basear-se numa comparação entre
alternativas que não se colocam no mesmo plano a não ser de um ponto de vista
estritamente formal. A república aparentemente baseia-se na liberdade de
escolha, dado que o chefe de Estado pode ser qualquer um em teoria, mas na
verdade não admite alternativa a si mesma, tendo-se imposto pela força sangrenta.
Ela nunca se coloca a si mesma como uma alternativa entre várias outras mas
antes assume-se como uma inevitabilidade histórica e, por isso, indiscutível. A
monarquia parece, por outro lado, não dar poder de escolha (falando em termos
de monarquias mais usuais), já que o rei é deliberado por via hereditária, mas
na prática baseia-se num escrutínio diário da relação de confiança entre o
soberano e os súbditos. Isto significa que a monarquia se coloca a si mesma em
escolha e em risco de forma permanente. Ao invés da diferença essencial entre
monarquia e república estar centrada na forma de escolha do chefe máximo do
Estado, ela centra-se realmente na forma como os cidadãos acedem ao soberano
simbolicamente e até materialmente.
A própria noção de soberano em república é
mera figura de linguagem, já que se ele fosse mesmo soberano não tinha
necessidade de se fazer eleger. Para se eleger tem que se corromper perante o
público, prometer o que não vai cumprir, tanto que, logo que eleito, se afasta
desse mesmo público para não ter que lhe prestar contas, voltando a ele apenas
em encenações mediáticas que o isolam verdadeiramente das pessoas de carne e
osso. Em parte, isto tenta emular a figura pública do rei, mas o fenómeno é bem
diferente. O rei não simula distância e altivez para se livrar do escrutínio
público, pelo contrário, ele coloca-se em escrutínio evidenciando a solidão do
cargo que tem e das responsabilidades a que não se pode furtar. Ele não tem que
se rebaixar para conseguir votos, antes é o exemplo supremo que inspira todos
os que estão à sua volta. O que torna o rei uma peça fundamental neste programa
é precisamente este movimento ascensional e de congregação que ele provoca,
necessário para a confluência de energias e para ligar uma série de medidas
que, de outra forma, teriam paternidades múltiplas e iriam anular-se umas às
outras na tentativa individual de concretização.
Mas o conceito de primus inter pares não diz respeito apenas às possíveis origens da
monarquia, mostra também a necessidade do rei ter próximo de si uma elite muito
capaz, ao ponto até de, no caso de fim de uma dinastia, poder fazer surgir um
novo rei de outra linhagem. Eric Voegelin não acreditava que a crise ocidental
se pudesse restaurar fazendo uma reforma das instituições políticas e sociais,
dado que a crise da modernidade é uma crise espiritual – um afastamento da
fonte divina da ordem. Também não acreditava que a maioria teria forças para
lutar contra a pressão desordenadora da sociedade moderna, apenas uma elite o
poderia fazer. Para ele, o restauro da ordem seria uma tarefa de carácter
filosófico, embora ele não desligasse isso da própria restauração do
cristianismo. Serve isto para dizer que um rei precisa de um exército a seu
comando, que terá evidentemente uma vertente militar, mas também uma componente
espiritual e outra intelectual.
Efectivamente, para cumprir este programa que
aqui delineei é necessário um exército apto a combater em diversas frentes. Há
muita gente que simplesmente deve ser corrida a pontapés dada a sua nulidade, muitos
outros terão que ir para a cadeia pagar pelos seus crimes. Mas se a sociedade
não for purificada, logo surgirão outros para tomar lugar destes e nada de importante
será alterado. A figura do rei é fundamental porque ele já é o símbolo daquilo
para onde o país deve caminhar, e sem isto ou caímos no niilismo ou na vertigem
revolucionária. Só de forma muito esquemática este exército real emula a antiga
corte do rei. As funções essenciais têm que se manter sempre de alguma forma,
mas isso não implica uma tentativa de copiar exactamente os modelos que
existiram historicamente. Por exemplo, o clero da antiga corte era ao mesmo
tempo um poder intelectual e espiritual (em termos sociais, estes poderes são
realmente apenas um, que tem como finalidade primordial a delineação do campo
de actuação das pessoas, grupos e instituições). A separação das funções não
deve ser um dogma, mas existem tarefas específicas que cabem a cada parte, e a própria
elaboração deste programa cai dentro do âmbito mais estritamente intelectual.
Por outro lado, o restauro de uma classe guerreira, e não apenas de um exército
regular, é uma necessidade mas algo que não é fácil de obter, mas acredito que
temos em nós ainda o germe necessário para tal. O povo nunca será um problema
desde que deixe de ser tratado como populaça e lhe sejam dados os meios de
puder viver no seio de verdadeiras famílias.
A burguesia pode ser um problema. Ela teve um
movimento de ascenção obtido à custa de um declínio de quase todos os outros
“pares” do reino. Há que dar um lugar ao capital que corresponda à sua
verdadeira importância para o funcionamento da sociedade Os comunistas sempre
souberam que os capitalistas partidários do movimento deviam se submeter aos
intelectuais. Os capitalistas que se queiram juntar ao exército real têm que
perceber que os seus milhões não lhes dão o direito a ter uma opinião que mereça
ser ouvida, antes estão lá para seguir o rei e a sua elite espiritual e
intelectual. Mas hoje qualquer ricaço acha-se um iluminado e começa a agir como
se fosse um reizinho, o que inevitavelmente atrai uma corte de oportunistas que
o irão manobrar.
O último post, onde se defendia o fim dos
partidos e do sistema parlamentar, ficou incompleto porque necessitava deste
aporte da restauração da monarquia. Se o parlamento é o órgão máximo de
soberania, e se este tem como base as clivagens entre partidos, logo torna-se
num elemento desordenador da sociedade (em grande parte, isso acontece pela produção
incontrolada de legislação). A monarquia parlamentar obviamente que não pode
resolver o problema, porque o rei já não é aí soberano e o seu papel de
mediação não só é ineficaz como fará com que as falhas do parlamentarismo sejam
imputadas à própria monarquia. Então, a monarquia deve rejeitar o
parlamentarismo, sem achar que isso é cair no “antigo regime” absolutista. O
absolutismo não é de todo parte da antiguidade, é antes um dos pontos cardeais
da modernidade revolucionária. Portugal nunca conheceu verdadeiramente este
regime e é significativo que o único “monarca” absoluto não tenha sido
verdadeiramente um rei, estando obviamente a referir-me ao marquês de Pombal.
A reformulação do sistema político é aqui vista como um
bloco, englobando o fim do parlamentarismo e da república – num quadro também
delimitado pelas outras medidas do programa –, colocando no seu lugar uma
monarquia com novos pares do reino, que podem ser eleitos, advindos por
inerência ou designados pelo rei. Cabe ao próprio rei, auxiliado pela sua
elite, designar a exacta configuração do Estado e como ela deverá evoluir no
tempo. No seio de amplas transformações, como aqui preconizo, inúmeros factores
novos iriam surgir e que agora são imponderáveis, pelo que tem pouco sentido tentar
prescrever um programa demasiado minucioso, o que por si só também consistiria
numa tentativa de diminuir a soberania real.
Sem comentários:
Enviar um comentário