sexta-feira, 21 de junho de 2013

O movimento das massas (1)

Nos últimos tempos temos assistido, em Portugal e no estrangeiro, nomeadamente no Brasil, a uma série de movimentos colectivos, sobretudo greves e manifestações, onde os comentadores ora demonstram uma grande confusão sobre coisas simples, ora se mostram assertivos sobre realidades confusas em si mesmas. O que há de simples para compreender é a estrutura organizacional de base, a mobilização, a propaganda, a conivência mediática. Bastaria perguntar: quem organizou, como o fez e porquê? Não que seja sempre fácil descobrir estes elementos de causalidade próxima, porque os verdadeiros actores podem se esconder através de organizações de fachada, mas mesmo essa dúvida aparece com naturalidade quando não perdemos o foco nas perguntas essenciais.

Contudo, a contaminação do pensamento sociológico leva-nos a abandonar este “chão duro da realidade” e a enveredamos por uma busca de causas remotas, supostamente mais profundas. Então, olhamos para as massas e, por debaixo de tudo o que elas dizem ou fazem, tentamos dar uma explicação única para a mobilização geral, mesmo que os mobilizados em si não a percebam. Em exemplo disso é explicar as manifestações por uma saturação da corrupção e por a democracia não estar a representar as pessoas. Mas é exactamente aqui que as coisas são confusas em si, especialmente quando cada vez mais as greves e manifestações não são apenas preenchidas por simpatizantes de algum tipo de socialismo mas têm muitos adeptos liberais e conservadores. Quando chegamos a este ponto, torna-se patente que não podemos encontrar uma justificação dos protestos ao nível de uma reivindicação única, porque os vários pretextos alegados ou sub-entendidos anulam-se entre si. Por outro lado, também não convence uma explicação sociológica unificada, não só pela heterogeneidade dos participantes mas pela dificuldade nela de se transformar em acção concreta coordenada. De certa forma, podemos dizer que as pessoas não se manifestam por algo concreto mas pelo próprio retorno que a participação na manifestação oferece.  

Temos, então, o fenómeno repartido em dois planos, que naturalmente são obrigados a comunicar entre si, mas que podemos investigar separadamente até certo ponto. Por um lado, não há protesto colectivo sem um núcleo organizador, que em última análise será quem irá retirar os dividendos. Só podem existir movimentos de massas espontâneos quando estamos na presença de símbolos estabelecidos há muito, por todos conhecidos e que de certa forma a todos dizem respeito, como o dia do aniversário do rei, o dia de independência de um país e assim por diante. Naturalmente que a melhor organização pode não conseguir despoletar um movimento de massas, e em geral há várias tentativas até a coisa pegar, ou seja, para que uma vontade oculta de um grupo restrito se traduza num colectivo alheado.

A ligação entre os dois planos – daquele que planeia e daquele que oferece a sua participação – é relativamente fácil de ocorrer no caso das greves, onde os sindicatos bem colocados no terreno podem pressentir um desconforto geral, que depois tentam canalizar para um slogan único, que de antemão vai sendo divulgado de forma a que os vários incómodos convirjam para um ponto, não raro bastante afastado das preocupações originais. Os sindicatos podem desmarcar as greves quando pressentem que não conseguiram ser suficientemente eficazes nesta acção de convergência de descontentamentos. Naturalmente que existem situações em que ocorre um verdadeiro descontentamento por um motivo objectivo – como uma alteração drástica em alguma condição de trabalho –, mas aí são os sindicatos que têm de “correr atrás do prejuízo”, ou algo mais espontâneo pode começar a formar-se e surjam representantes alternativos dos trabalhadores. Este tipo de ocorrência, onde há um verdadeiro descontentamento partilhado por um grupo, é aquele onde os sindicatos conseguem ter menos eficácia, porque eles só tiveram tempo de se colar a algo que já estava em ebulição, e não conseguiram criar uma camada de abstracção que torna os protestantes meros utensílios dos organizadores, embora possa sempre surgir um líder sindicalista que consiga, num golpe de génio, tomar conta do movimento. Mas isto já é fruto dos seus méritos pessoais e não do processo habitual de manipulação de massas.  

 A ligação entre os dois planos torna-se mais complicada no caso de manifestações. No caso de uma greve, em geral a reivindicação é precisa, fácil de entender (embora as pessoas não percebam que já foram manipuladas para se juntarem a uma causa que pode já não corresponder em nada às suas preocupações originais), e o protesto limita-se a uma ausência das habituais funções. No caso da manifestação já é bem mais que isso, dado que é necessário que as pessoas tenham uma acção real, que se reúnam num certo local e, depois, a manifestação tem que ganhar corpo, tem que “engrossar” tanto em números como em emoção. Então, para fazer greves é necessário um conjunto de militantes relativamente discretos mas que estejam colocados em permanência no terreno, enquanto que a manifestação implica um núcleo agitador disposto à acção rápida no cenário.

Em termos de planeamento há também diferenças. A greve está sempre latente, os sindicatos procuram a cada momento um pretexto e, encontrado um, automaticamente põem em acção o mecanismo de convergência de vontades, bastando seguir umas simples directrizes do “comitê central”, que são transmitidas a um público maior pelo sindicalista em algum encontro onde apareçam as câmaras de televisão. Até há não muito tempo atrás as manifestações eram também organizadas essencialmente por sindicatos e partidos com elevada militância (isto não é válido para alguns países anglo-saxónicos onde existe ainda um elevado grau de mobilização civil). Contudo, hoje vemos que as maiores manifestações são organizadas por outras instâncias e através de meios como o facebook, havendo até uma certa hostilidade dos manifestantes em relação a partidos e sindicatos. Claramente existe uma disputa de terreno, em que os novos pretendentes ao domínio das massas já não estão alicerçados na velha e boa militância partidária. Dessa forma, também conseguem chamar a atenção de muitas pessoas avessas aos movimentos em que a ideologia aparece de forma mais explícita, uma vez que as mobilizações surgem como apartidárias, apolíticas e até como espontâneas.

Note-se que enquanto a greve é uma ameaça constante, a manifestação tem todo o interesse em manter-se secreta até ao último momento, para dar a ideia de que é um irromper espontâneo da vontade do povo, uma “primavera” dos oprimidos. Penso que os velhos sindicalistas ainda não se aperceberam disto e pensam nas manifestações como greves alargadas, e até têm mesmo o termo da “greve geral”. Não existe qualquer efeito de surpresa e o recolher dos dividendos é como se fosse um movimento num jogo de xadrez. Mas os novos organizadores de manifestações não pretendem recolher dividendos publicamente, pelo menos por enquanto, já que os seus objectivos passam por uma reorganização da sociedade e da sua estrutura de poder, a ocorrer sem que alguém perceba. Este planeamento silencioso passa pelo estudo de técnicas de manipulação usando a linguagem pública, pelo treinamento de agentes destinados a criar um clima propício nos meios de comunicação electrónica, pelo estudo de técnicas de guerrilha urbana e desordem pública, pela coordenação com os meios de comunicação de massa, etc. Tudo isto exige muito dinheiro, obviamente, e muitos jovens dispostos a um trabalho cínico.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Relatos do Inferno (7)

VIDA E MORTE

Explicar o que é a vida humana é uma tarefa titânica, mas largamente desnecessária, já que cada ser humano com o mínimo de auto-consciência tem uma noção suficiente do que seja a sua vida, não como uma série de factos mas essencialmente como um conjunto ilimitado de potências latentes. A defesa da vida humana, pelo menos em relação àqueles que consideramos dotados do mesmo princípio de humanidade que nós, torna-se naturalmente na defesa de algo sagrado, como se cada ser humano fosse um ponto de ligação para a transcendência. Quando alguém atenta conscientemente contra a vida humana, então, ou está em profundo desequilíbrio existencial – no qual reconhecemos o homicida frio ou o psicopata – ou então age em nome de outro valor sagrado, nomeadamente quando estão em jogo outras vidas humanas.

Contudo, o mundo moderno criou um novo tipo de pessoa – não apenas aparentemente normal mas correspondendo ao próprio modelo de normalidade – que aceita, sem qualquer constrangimento, que seja posto um término à vida humana sem estar em jogo qualquer outro valor comparável. Isto acontece sobretudo no caso do aborto (interrupção voluntária da gravidez é a puta que pariu) e na eutanásia de idosos (a de crianças também está a caminho), que ocorre de forma encapotada em certos lares de terceira idade, que garantem que “o serviço” é executado em poucas semanas. A normalidade com que certas sociedades integram o assassinato também se pode incluir neste conjunto, mas a sua análise requer alguns cuidados que nos podem desviar do essencial.

Antes de abordar o fenómeno em si, convém esclarecer que ele é realmente novo, pelo menos dentro dos momentos em que vigora algum tipo de ordem. Claro que o aborto não é um fenómeno recente, mas só recentemente tivemos oportunidade de perceber através dos meios tecnológicos que não existe realmente essa coisa de feto mas está ali um verdadeiro ser humano, além de que a própria religião levou o seu tempo até considerar que a alma humana existe desde o momento da concepção. Isto quer dizer que o aborto passou a ser considerado com toda a naturalidade precisamente no momento em que se tornou evidente que este acto não era mais do que um homicídio. O hábito de Esparta testar as suas crianças, expondo-as a uma jornada potencialmente mortal, ou de certas sociedades guerreiras de se livrarem dos idosos, também não é comparável à eutanásia moderna. A sociedade guerreira vive num limiar de sobrevivência, dependendo quase totalmente da sua eficiência “orgânica”, pelo que não é por auto-recreação que se eliminam os mais fracos mas por consciência de que está em risco toda a colectividade. A eutanásia no mundo moderno, com todas as suas instituições sociais, não é justificável em termos de sobrevivência do colectivo, mas de forma caricata nós achamos que os antigos é que eram de uma barbárie inqualificável. Também não colhe o exemplo da guerra existente “desde sempre”, porque esta não é uma forma de assassinato, sendo ainda impreciso dizer que ela é a continuação da política por outros meios, já que ela é um confronto entre modelos de ordem, consistindo na defesa de bens supremos pelos quais o homem pode viver. O costume antigo de matar ou escravizar os derrotados é também explicado pelo risco de vingança dos poucos sobreviventes, já que não existiam os modernos tratados de paz que podem resolver as coisas noutro nível. Mesmo o desprezo pela vida individual que o Império do Meio tantas vezes mostrou era feito não num contexto niilista mas dentro do modelo de ordem cósmica transcendente que pretendia servir a todos.

Isto quer dizer que a brutalidade dos antigos, que pode nos chocar com razão, pode ser largamente explicada como um conflito de valores, mas qual é o valor que justifica o campo de concentração nazi, o gulag, o aborto ou a eutanásia? Juntar todas estas coisas pode parecer uma demagogia sem par, mas penso que é o oposto, e nem teria sentido separar aquilo que a ausência de Deus uniu para sempre. Não é aqui lugar para analisar em detalhe se esta união é válida ou não, e vou apenas salientar dois níveis em que o fenómeno ocorre. O primeiro nível é o do dirigente, o do planeador social, que na modernidade já não é o garante de uma ordem social imutável, mas é a mente que "sabe" o fim da História e que assume o dever de moldar corpos e consciências para tornar mais rápido o "curso inevitável do tempo". O segundo nível é o do cidadão comum, que precisamente tem em comum com os restantes o facto de se ver num mundo invertido, em que tudo é cenário irrelevante comparado com os seus desejos de evasão em busca de forma.

O homem moderno sofre de uma doença de consciência: ele deseja, logo dá existência ao mundo. Paradoxalmente, isto parece estar muito próximo daquilo que define o ser humano: ser causa livre. A diferença é que o homem com a consciência doente acha que ele mesmo é A Causa, ao passo que o homem mentalmente saudável sabe que participa apenas do Acto Criador. Esta é verdadeiramente a doença humana, da qual os outros animais não podem padecer, e por isso as civilizações sempre vieram acompanhadas dos mitos onde os homens tentam rivalizar com os deuses e, de alguma forma, são sempre colocados no seu lugar. O que distingue a modernidade é que o homem já não pretende rivalizar com os deuses porque assume que já assumiu o lugar deles. Pessoalmente, cada um sabe que não é o deus supremo, há outros homens que ele venera como tal. Mas ao seu nível, ele assume-se como um deus face a um feto irrelevante ou face a um idoso decrépito a seu cuidado, e por isso acha que pode dispor das suas vidas a seu bel-prazer.