quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Acção ou reflexão?

A acção é uma dupla escravidão, mas também uma dupla libertação. A acção começa por nos escravizar o corpo, por vezes até nos tomando a vida, e cada homem sente isto porque nele há sempre um desejo latente de viver na terra de Cocanha. Mas a acção também escraviza porque nos pode tomar a alma, que ficar retida ou suspensa pelos fins limitados, e assim coloca-nos abaixo dos animais, já que para estes a pura acção não está em oposição à natureza que os possui. Ou seja, o homem tem a capacidade de ser apenas animal, mas assim nem chega a ser homem, torna-se numa besta mitológica.

Também a reflexão é uma dupla escravidão e uma dupla libertação. Ela pode libertar-nos da escravidão da acção. Por um lado, ela pode libertar o corpo, encontrando melhores formas de o usar ou dando-lhe ferramentas que o aliviam. E a reflexão também libertará a alma presa à acção, dando um contexto e um sentido a cada tarefa.

Contudo, a reflexão também escraviza o corpo, inundando-o desejo. Podemos achar que o desejo é mero instinto e imaginação, mas ele apenas se torna avassalador com a ajuda da reflexão, que trabalha cada inclinação e imagem para formar uma bola de neve incontrolável. A acção servirá, então, de elemento de alívio, que libertará energia e tensões. E a reflexão também consegue escravizar a alma, prendendo-a a concepções irrealistas, a teorias fantasiosas, que no limite podem levar à loucura. A libertação pode vir pela acção, que começa logo por nos prender às condições de espaço e tempo, dando-nos assim de forma implícita um princípio de orientação.

O ser humano está assim colocado numa cruz (e este simbolismo aplica-se a muito mais situações), em que um eixo é a alma e outro o corpo. Em cada eixo existem as forças actuantes da  acção e reflexão. O homem está numa situação de permanente instabilidade, sendo puxado nas várias direcções e frequentemente esquece que pode decidir como quer usar os elementos à sua disposição, ainda que tal não lhe dê de imediato o controlo sobre os mesmos. Podemos ser treinados para agir e para reflectir, mas seremos como que meras máquinas defeituosas enquanto não soubermos como e quando combinar estes dois momentos.





Nota: Este post e este aqui partiram exactamente da mesma experiência de base – uma simples mudança de habitação – e exemplificam as diferentes posturas que tenho em cada um dos blogues. 

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Olvido de Cassandra

Cassandra é uma personagem peculiar na mitologia e no teatro grego. Ela é a famosa profetisa, filha do rei Príamo de Tróia, em quem ninguém acredita e assim não consegue evitar a queda da sua cidade. Ésquilo utilizará depois a personagem, agora como consorte de Agamémnon, e novamente Cassandra vai profetizar desesperançadamente, sabendo que nada evitará o seu destino trágico. Ao lermos as obras antigas, a presença de Cassandra parece-nos apenas um efeito cénico, que visa dar algum colorido à história mas que realmente nada de substancial lhe acrescenta, estando o verdadeiro drama centrado noutras personagens. Isso ainda parece mais óbvio quando inúmeros autores desde então têm copiado este efeito cénico de alguma forma, e parecendo-nos um procedimento ingénuo comparado com outros que surgiram no desenvolvimento da narrativa. Cassandra serviria apenas como um símbolo da impotência do conhecimento, quiçá convidando à resignação. Contudo, os autores antigos – pelo menos os mais distintos que nos chegaram – não eram ainda profissionais no enchimento de chouriços, e a experiência mostra que aquilo que neles nos parece irrelevante exemplifica apenas a nossa incompreensão. Vou tentar salientar dois aspectos, que provém de interpretação minha, sem os quais não acredito que seja possível compreender o mito de Cassandra.

Em primeiro lugar, Cassandra é dada como louca quando profetiza sem ser acreditada, mas a nós, espectadores distantes e sabedores do fim da história, parece-nos quase o oposto, que loucos eram aqueles que não lhe queriam dar ouvidos. A minha interpretação é que Cassandra realmente fica louca porque não consegue suportar que terríveis verdades que lhe são tão evidentes não possam ser partilhadas com a comunidade. Esta é a terrível sina do conhecimento, o isolamento que ele provoca entre o portador do conhecimento e os outros homens. Por mais óbvia que uma coisa nos pareça, nada garante que conseguiremos convencer mais alguém a ver a situação da mesma forma. E se toda a nossa cosmovisão se torna incompreensível aos restantes, viveremos numa espécie de realidade paralela, e acabamos por sair da comunidade dos homens, algo que poucos conseguirão suportar. Em desespero, podemos “cortar a nossa cabeça” para voltarmos a estar à mesma altura do vulgo, mas também isso é uma ilusão de reintegração social, porque uma coisa é o homem que não quer ou não consegue ver, outra é aquele que viu e decidiu esquecer para não mais voltar a ver, e assim amputa uma parte de si mesmo, ficando condenado a viver num deserto sem fim, sempre atormentado pelo fantasma da sua renúncia.

A consciência da problematicidade da posse do conhecimento, que acredito já estar contida no destino de Cassandra, foi se tornando mais aguda. Heráclito dizia que as pessoas não conseguiriam compreender o que ele dizia, por mais óbvias que fossem. As primeiras escolas de pensamento, como a dos pitagóricos ou a dos eleatas, tinham um carácter esotérico, porque havia a necessidade de criar uma comunidade própria isolada da vida mundana, onde o conhecimento pudesse ser aceite por cada um. Ainda assim, as escolas eram frequentemente perseguidas por serem vistas como perigos. Os próprios profetas hebraicos também corriam enormes riscos, tanto sendo adorados como vistos como uma presença intolerável. Sócrates se tivesse sido um mero retórico não teria sido levado a tribunal, mas ele mostrava saber algo a mais do que os outros e a todos instava, como um moscardo, a seguir a mesma busca. Pôncio Pilatos pergunta diante de Cristo: «O que é a verdade?» Ele não apenas sabe que Cristo está inocente como finge não saber que Ele é o próprio Logos encarnado, mas decide lavar as suas mãos e seguir a multidão. Neste episódio fica expresso todo o ódio ao conhecimento do homem moderno, que ficou preso a alguma experiência traumática de posse do conhecimento que o tenha afastado do seu grupo de referência, e daí para a frente ele empenha-se a não compreender mais nada. Na realidade, ele nem precisa ter essa experiência pessoalmente, basta-lhe ter visto acontecer a outros.  

O outro aspecto que pretendo ressaltar na história de Cassandra, e que está relacionado com o anterior, tem a ver com a maldição que lhe foi imposta. Apolo, despeitado por não conseguir consumar uma relação carnal com ela, dita que ela será uma vidente sem qualquer poder de persuasão. Podemos logo começar por questionar se Apolo desejava assim tanto Cassandra, porque Ájax na mesma situação não hesitou em violá-la, mesmo em pleno templo de Atena. É evidente que não podemos exigir uma total coerência lógica de um relato mito-poético, mas neste caso talvez isto tenha algum relevo, como veremos mais adiante. É fácil de constatar que a maldição que Apolo lança sobre Cassandra na verdade atinge toda a comunidade, ou seja, cada ser humano ficou amaldiçoado porque deixou de ser sensível às verdades mais óbvias. No mundo grego, a loucura era frequentemente vista como uma manifestação da posse divina, pelo que Cassandra não era ignorada pelo seu estado mas pela perda de faculdades dos seus ouvintes.

Há aqui uma queda ontológica, análoga ao Pecado Original mas que não tem nem o mesmo alcance, nem o mesmo nível de auto-consciência e nem o mesmo sentido último. No relato do Génesis, apesar da expulsão de Adão do paraíso representar uma queda não só do homem mas de toda a criação, o mundo continua a ser, apesar de todas as suas contradições, algo bom. A vida, paixão e morte de Cristo ainda vieram garantir que apenas vai para o Hades quem assim escolher. A perspectiva gnóstica só torna-se dominante na modernidade com a perda de força do cristianismo, mas não era esta a visão no mundo grego. Na peça Agamémnon, Ésquilo mostra-nos que não era apenas Cassandra a estar amaldiçoada mas todos os restantes, e o próprio rei de Micenas parece desejar o abismo quando concede caminhar sobre as tapeçarias púrpuras, aliciado por Clitemnestra, sua esposa adúltera, sabendo que aquele privilégio estava reservado aos deuses, incorrendo assim em hybris. Felizmente, possuímos o restante desta trilogia, a Oresteia, o que nos permite tirar mais algumas conclusões.

Tal como Tróia tinha caído por não escutar Cassandra, também Agamémnon não é sensível aos vaticínios dela e tem o mesmo destino, caindo às mãos de Clitemnestra e Egisto, que irão depois tombar no ferro de Orestes. O julgamento torna-se necessário, porque Orestes, por um lado, tinha sido um agente da justiça instigado por Apolo mas, por outro lado, também tinha assassinado a própria mãe. A casa dos atridas já vinha sendo fustigada há algumas gerações por uma série de vinganças sangrentas, que eram ao mesmo tempo reparadoras mas também iniciadoras de novos ciclos de injustiça a ser reparados. O julgamento de Orestes representa um questionar deste mesmo processo, que parece não ter fim. O próprio Apolo entra como testemunha no julgamento defendendo Orestes, e questionado sobre a ignomínia da morte de uma mãe, ele confessa que é apenas um veículo do seu pai Zeus. Aqui podemos questionar se a maldição de Apolo sobre Cassadra, logo sobre toda a humanidade, não teria sido igualmente ditada por Zeus.

Isto é particularmente significativo porque, quase no início da trilogia, Ésquilo tinha, no chamado “Hino a Zeus”, esboçado uma espécie de monoteísmo, onde o deus supremo do Olimpo já era quase que uma espécie de princípio metafísico. Já não se trata de uma intervenção caprichosa de algum deus mas da estrutura profunda da realidade, tal como os gregos a viam, que assim se mostra ser trágica para eles. O arranjo final da peça parece-nos estranho: Orestes é salvo à tangente não por intervenção divina soberana mas por um arranjo mais ou menos burocrático entre homens e deuses, e um difícil apaziguamento das Erínias. Isto é necessariamente assim devido a contradições na concepção originária que os gregos tinham da estrutura da realidade, onde não existe um verdadeiro princípio que não entre em contradição consigo mesmo se aplicado a todas as situações. Isto começou a ser resolvido por Platão e Aristóteles, mas só se tornou ultrapassado com o advento de Jesus Cristo.

Contudo, não é uma conquista ganha para sempre, tendo, pelo contrário, que ser reconquistada de geração em geração, ou então cairemos numa cosmovisão trágica e gnóstica. Começa logo por redescobrir o sentido profundo dos mitos como o de Cassandra, que só é efectivado quando reconhecemos as Cassandras do nosso tempo e a nossa tendência para o esquecimento e para a cegueira. Depois, não podemos ver a filosofia grega como uma relíquia histórica, definitivamente ultrapassada por Kant, Russel ou Derrida, que não passavam de pobres coitados empenhados em não entender nada. Por fim, temos que perceber aquilo que Cristo trouxe de novo e de alguma forma alberga-Lo em nós.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Da crença

Os jovens ateus, supondo não serem possuidores de fé, acham-se frequentemente acima dos crentes. Olham para a idosa do povo que acende uma vela a alguma instância sagrada, pedindo que o filho se cure, e sentem-se superiores, como se vivessem num patamar distinto da realidade, onde não há necessidade de recorrer a expedientes divinos para resolver os problemas pessoais. Acham também que podem dispensar o mistério, porque é sempre possível recorrer ao oráculo da ciência para obter uma explicação – ao mesmo tempo definitiva e não aberta a contestação mas também provisória e prenhe de reavaliação – sobre o que quer que seja. Na realidade, esta descrição aplica-se a muitos crentes modernos, que relegam a religião para um domínio íntimo totalmente irrelevante, como se rezar fosse tão vergonhoso como o hábito de ir sorrateiramente à dispensa comer bolachas. Os ditos crentes recusam reconhecer qualquer intervenção divina na realidade, para além da infusão de uma vaga inspiração, e consideram que se deve dar à ciência o que lhe é devido, segundo os cânones da modernidade, isto é, que seja ela a única fonte de conhecimento legítimo e ainda a única autoridade que possa ditar o que pode ou não pode ser conhecido e de que formas. Esta postura amorfa e “recolhida” do crente de hoje, ao invés de provocar uma tolerância para com o religioso, pelo contrário, incita o desprezo e mesmo o ódio em relação ao crente e à religião: o homem detesta o fraco e receia o forte.


Contudo, se recuarmos para períodos de fervor religioso mais autêntico, as coisas não eram assim. Antes de se espalhar a ideia kantiana da fé como crença em algo que não pode ser fundamentado, a fé era naturalmente a fidelidade a algo: a uma experiência em que o transcendente se tinha revelado à pessoa, importando que essa experiência não caia no esquecimento que a dissolução do cotidiano providencia, ou a simples experiência na confiança numa pessoa como Cristo. Isto em si é naturalmente problemático, e mais ainda quando se liga à aceitação de uma doutrina que levou séculos a ser desenvolvida. Percebemos que algo está errado quando um religioso mostra uma fé inabalável, monolítica, e vocifera mecanicamente palavras da doutrina religiosa, e o chamamos de radical, fanático, fundamentalista. O homem religioso sempre teve que lutar contra o esquecimento, daí na antiguidade ser tão fácil a multiplicação de deuses, que serviam para revigorar a crença, e o próprio Cristo foi continuamente providenciando o aparecimento de santos para trazer as pessoas para mais perto de si.


Pelo contrário, o ateu (ou melhor, o ateísta, porque o verdadeiro ateu é sobretudo aquele que não se interessa pela questão de Deus), muitas vezes sem perceber, opta pelo caminho fácil da crença inabalável. Ele já resolveu, de uma vez por todas, uma série de problemas: não existe Deus, nem transcendência, nem milagres, e toda a experiência religiosa é uma sequência prodigiosa de auto-enganos, ilusão de massas, demências mentais, mentiras, falsificações, etc. É também notória a sua crença inabalável sobre os ditames da ciência e, mais subtilmente, pelo poder criador da sua própria palavra. Ou seja, o ateísta não acredita no poder criador da palavra divina mas crê que tudo aquilo que ele é capaz de verbalizar sem ironia é verdade, o que remete para uma espécie de auto-divinização.


A crença ateísta apresenta fortes sintomas neuróticos, não só por ser crença esquecida mas por partir do princípio de que a matéria é uma ditadora de leis absolutas num universo sem qualquer inteligência permeando-o. Resta ao ateísta passar o resto da vida procurando contradições lógicas nas palavras dos santos, não percebendo o desnível ontológico que o separa deles, fazer interpretações retorcidas das palavras Bíblia, apregoar as falsificações históricas contra a religião tantas vezes já desmascaradas, e achar que quanto mais confinado estiver na sua torre de papel, mais protegido estará contra o obscurantismo, contra a crença cega, contra a ilusão. São figuras patéticas que têm orgasmos quando escrevem “deus não é grande”, acusando-O ao mesmo tempo de todos os males, especialmente do pecado de Ele não existir.


Contudo, quando nos apercebemos da dimensão patológica do ateísmo, isso não nos coloca de imediato numa via espiritual autêntica. Se entrarmos para uma comunidade religiosa, pensando que ela é uma porta de entrada para a verdadeira religião, o mais provável é cairmos numa situação dominada por aspectos tão profanos como aconteceria em qualquer outro grupo. Rapidamente nos desiludimos e apenas vemos ali “consumidores de ópio”. Resta-nos ir ao encontro do divino onde ele se encontra: visitamos as catedrais, ouvimos música sacra, contemplamos a vida de santos como o padre Pio, estudamos os milagres reconhecidos pela Igreja, etc. Mas nem isto pode nos bastar. Então ficamos sós, sem saída, sem recursos para ir mais além e questionamos se tudo é verdade ou mera ilusão: Deus existe? Cristo ressuscitou? Moisés dividiu as águas do Mar Vermelho? O arcanjo Gabriel ditou o Corão? Buda realmente despertou? Se tudo isto for mera curiosidade intelectual, não encontraremos uma verdadeira resposta, já que argumentos de um lado e de outro podem sempre ser lançados. Só podemos obter uma resposta se as questões se tornarem mortalmente sérias para nós, e aí sabemos que somos totalmente impotentes para lhes darmos resposta, mas ainda assim queremos saber. É realmente verdade? Uma resposta definitiva não pode vir de nenhuma pessoa nem de um grupo, qualquer que ele seja. Só pode vir de uma fonte absoluta e, mesmo sem percebermos, a nossa dúvida, quando é absolutamente sincera, já é uma forma de falarmos com Deus e, mesmo que seja para nega-Lo verbalmente, já começamos a aceitá-Lo em nós.



Este post foi também publicado, simbolicamente e excepcionalmente, no blogue Prometheo Liberto, onde iniciei recentemente a minha colaboração.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O movimento das massas (3)

Ninguém defende que uma manifestação possa ser puramente espontânea, no sentido de ser um resultado de movimentos individuais aleatórios, já que isso anularia o próprio sentido da coisa e daí não poderia daí advir qualquer vantagem política. Os organizadores de um protesto não negam a sua convocação mas falam em espontaneidade das reacções, em dinâmica social, para dizer que não actuaram como manipuladores de massas mas como intérpretes de uma vontade patente mas ainda não expressa. E em geral isto é verdade, porque os organizadores materiais de uma manifestação estão demasiado ocupados para poderem fazer o trabalho subterrâneo e de longa duração de gestão das consciências alheias, mas desenganem-se aqueles que acham que a divisão do trabalho é uma invenção liberal, pois ela existe desde que os primeiros mamíferos começaram a caçar ou a organizar a vigilância em conjunto. Contudo, o mito da espontaneidade persiste, tanto no cidadão comum como no letrado, porque nenhum deles tem coragem suficiente para reconhecer o quanto é manipulado desde fora.
Reconheçamos o quão anémicos são os actuais caminhos da dialéctica, quando alguém, que pretende contestar uma opinião que é dada como certa por todos, sente-se na obrigação de afirmar que “uma coisa é a opinião pública, outra é a opinião publicada”. Claro que a maioria dos cidadãos não partilha da opinião “publicada” (leia-se impressa, radiodifundida, teledifundida, blogoesparramada), que é abortista, gayzista, pederasta, hedonista, cocaínama, globalista, ultra-individualista, etc. Aqui está algo a ser aproveitado por conservadores e tradicionalistas, mas apenas no caso de serem totalmente alteradas as relações entre o indivíduo e a coisa pública. Uma opinião pode ser partilhada por 98% das pessoas mas, se estas não tiverem canais de expressão, vai pesar menos do que a opinião dos restantes 2% que esteja bem articulada e veiculada pelos canais mediáticos. Isto quer dizer que, em termos políticos, só existe opinião publicada e tudo o resto é um imenso resíduo com um peso insignificante, tal como a famosa matéria negra, que talvez constitua a esmagadora percentagem da matéria do universo físico mas nem sequer sabemos se ela existe.
É impossível não ver algo de estranho no facto das massas, cuja opinião em geral não conta rigorosamente para nada, de repente, quando convocadas para um protesto, serem tidas como a força preponderante na sociedade. Obviamente que as massas só ganham tal estatuto quando repetem cegamente alguma opinião decretada pela pequena minoria de iluminados que domina a opinião publicada. Na verdade, trata-se de algo necessário para ambas as partes. Por um lado, as elites ocultas procuram algum tipo de legitimação popular, que tanto pode ocorrer em actos eleitorais como em manifestações ou outros actos públicos informais: assim a democracia dá um leve indício de funcionar conforme o que era suposto. Por outro lado, a populaça precisa de ser ouvida para aliviar as suas tensões, e no fundo sabe que apenas participa numa encenação grotesca, mas um pacto de silêncio atira para o fundo da consciência esta constatação. 
Os actos que supostamente legitimam a democracia são precisamente aqueles que a consolidam como uma oligarquia impenetrável. Era suposto as eleições servirem para o povo eleger para seu governo aqueles que considera os seus melhores representantes, levando à formação de uma elite pelo mérito ou então à responsabilização colectiva pela escolha de medíocres. Ora, nem isto aconteceu na antiga democracia directa grega e menos ainda ocorre na moderna democracia representativa, e o alargamento do sufrágio ao invés de corrigir isto apenas parece ter agravado a situação. Se na democracia directa qualquer um com algum talento natural para a palavra pode ser um candidato natural, na democracia representativa o candidato já pressupõe atrás de si uma máquina capaz de chegar aos possíveis representados por meios não democráticos, ou seja, só é possível ser eleito através de um poder já consolidado e não eleito, que por vezes se chama de “partido” mas que quase sempre é um aglomerado de interesses que o transcende largamente, podendo mesmo envolver grupos internacionais. O cidadão quando vota apenas está legitimando este sistema oligárquico – que está encoberto mas é relativamente fácil de identificar, pelo menos até certos limites –, que lhes dá a escolher uma série de candidatos, todos muito idênticos e medíocres, com algumas aberrações misturadas para os primeiros parecerem mais razoáveis. No fim, podemos dizer que a sentença “cada povo tem os políticos que merece” se torna numa profecia auto-realizável, dado que o processo envolve uma corrupção moral de parte a parte.
Muitos acham que isto se corrige com uma coisa estranha chamada “democracia participativa”, onde presumivelmente se incluem todos os actos não oficiais onde se discute a coisa pública. Só que aqui estamos novamente limitados pela linguagem pública e pela selecção de temas ditadas por uma ínfima minoria e que já determinam de antemão todo um leque de opções, pelo que o processo é sobretudo uma dominação mental indolor, funcionando até como uma espécie de terapia, onde os sofrimentos e as ideias individuais vão se acomodando progressivamente a um modelo pré-definido de discurso, o único que possibilita a obtenção de algum eco, e no final tudo se transforma na única coisa que poderia ser desde o primeiro momento. Não é coincidência que a ideia de autonomia pessoal e a presunção de pensar pela própria cabeça tenham se difundido precisamente na altura em que se tornaram mais irreais que nunca, porque isto coincidiu com a aplicação generalizada da estratégia de revolução lenta, isto é, quando se trocou a proposta explícita de criar um mundo socialista por uma miríade de pequenas alterações, aparentemente independentes umas das outras e cada uma com os seus métodos próprios de consecução. Tudo isto parece simplesmente «o mundo em mudança», e querer se opor ao conjunto parece um esforço tão inglório como querer parar as vagas do oceano com as próprias mãos. Não é ao nível do discurso que percebemos alguma unidade entre todas as propostas parciais mas reconhecendo uma mentalidade de base que permeia todas: está sempre implícito o imperativo de abolir o passado em nome de um projecto de futuro. A nível material podemos também encontrar uma certa unidade nas fontes de financiamento de todos os movimentos de ruptura e de “avanço civilizacional”, mas isto não implica que exista um grande controlo sobre o rumo das coisas somente que o indivíduo está impotente contra uma rede incessante de pressões alienantes.