Cassandra é uma
personagem peculiar na mitologia e no teatro grego. Ela é a famosa profetisa,
filha do rei Príamo de Tróia, em quem ninguém acredita e assim não consegue
evitar a queda da sua cidade. Ésquilo utilizará depois a personagem, agora como
consorte de Agamémnon, e novamente Cassandra vai profetizar desesperançadamente, sabendo que nada
evitará o seu destino trágico. Ao lermos as obras antigas, a presença de
Cassandra parece-nos apenas um efeito cénico, que visa dar algum colorido à
história mas que realmente nada de substancial lhe acrescenta, estando o
verdadeiro drama centrado noutras personagens. Isso ainda parece mais óbvio quando
inúmeros autores desde então têm copiado este efeito cénico de alguma forma, e
parecendo-nos um procedimento ingénuo comparado com outros que surgiram no desenvolvimento
da narrativa. Cassandra serviria apenas como um símbolo da impotência do conhecimento,
quiçá convidando à resignação. Contudo, os autores antigos – pelo menos os mais
distintos que nos chegaram – não eram ainda profissionais no enchimento de
chouriços, e a experiência mostra que aquilo que neles nos parece irrelevante
exemplifica apenas a nossa incompreensão. Vou tentar salientar dois aspectos,
que provém de interpretação minha, sem os quais não acredito que seja possível
compreender o mito de Cassandra.
Em primeiro lugar,
Cassandra é dada como louca quando profetiza sem ser acreditada, mas a nós,
espectadores distantes e sabedores do fim da história, parece-nos quase o
oposto, que loucos eram aqueles que não lhe queriam dar ouvidos. A minha
interpretação é que Cassandra realmente fica louca porque não consegue suportar
que terríveis verdades que lhe são tão evidentes não possam ser partilhadas com
a comunidade. Esta é a terrível sina do conhecimento, o isolamento que ele provoca
entre o portador do conhecimento e os outros homens. Por mais óbvia que uma
coisa nos pareça, nada garante que conseguiremos convencer mais alguém a ver a
situação da mesma forma. E se toda a nossa cosmovisão se torna incompreensível
aos restantes, viveremos numa espécie de realidade paralela, e acabamos por
sair da comunidade dos homens, algo que poucos conseguirão suportar. Em
desespero, podemos “cortar a nossa cabeça” para voltarmos a estar à mesma
altura do vulgo, mas também isso é uma ilusão de reintegração social, porque uma coisa é o homem que não quer ou não
consegue ver, outra é aquele que viu e decidiu esquecer para não mais voltar a
ver, e assim amputa uma parte de si mesmo, ficando condenado a viver num
deserto sem fim, sempre atormentado pelo fantasma da sua renúncia.
A consciência da
problematicidade da posse do conhecimento, que acredito já estar contida no
destino de Cassandra, foi se tornando mais aguda. Heráclito dizia que as
pessoas não conseguiriam compreender o que ele dizia, por mais óbvias que
fossem. As primeiras escolas de pensamento, como a dos pitagóricos ou a dos
eleatas, tinham um carácter esotérico, porque havia a necessidade de criar uma
comunidade própria isolada da vida mundana, onde o conhecimento pudesse ser
aceite por cada um. Ainda assim, as escolas eram frequentemente perseguidas por
serem vistas como perigos. Os próprios profetas hebraicos também corriam
enormes riscos, tanto sendo adorados como vistos como uma presença intolerável.
Sócrates se tivesse sido um mero retórico não teria sido levado a tribunal, mas
ele mostrava saber algo a mais do que os outros e a todos instava, como um
moscardo, a seguir a mesma busca. Pôncio Pilatos pergunta diante de Cristo: «O
que é a verdade?» Ele não apenas sabe que Cristo está inocente como finge não
saber que Ele é o próprio Logos encarnado, mas decide lavar as suas mãos e seguir
a multidão. Neste episódio fica expresso todo o ódio ao conhecimento do homem
moderno, que ficou preso a alguma experiência traumática de posse do
conhecimento que o tenha afastado do seu grupo de referência, e daí para a
frente ele empenha-se a não compreender mais nada. Na realidade, ele nem
precisa ter essa experiência pessoalmente, basta-lhe ter visto acontecer a outros.
O outro aspecto que
pretendo ressaltar na história de Cassandra, e que está relacionado com o
anterior, tem a ver com a maldição que lhe foi imposta. Apolo, despeitado por
não conseguir consumar uma relação carnal com ela, dita que ela será uma
vidente sem qualquer poder de persuasão. Podemos logo começar por questionar se
Apolo desejava assim tanto Cassandra, porque Ájax na mesma situação não hesitou
em violá-la, mesmo em pleno templo de Atena. É evidente que não podemos exigir
uma total coerência lógica de um relato mito-poético, mas neste caso talvez
isto tenha algum relevo, como veremos mais adiante. É fácil de constatar que a
maldição que Apolo lança sobre Cassandra na verdade atinge toda a comunidade,
ou seja, cada ser humano ficou amaldiçoado porque deixou de ser sensível às
verdades mais óbvias. No mundo grego, a loucura era frequentemente vista como
uma manifestação da posse divina, pelo que Cassandra não era ignorada pelo seu
estado mas pela perda de faculdades dos seus ouvintes.
Há aqui uma queda
ontológica, análoga ao Pecado Original mas que não tem nem o mesmo alcance, nem
o mesmo nível de auto-consciência e nem o mesmo sentido último. No relato do Génesis,
apesar da expulsão de Adão do paraíso representar uma queda não só do homem mas
de toda a criação, o mundo continua a ser, apesar de todas as suas
contradições, algo bom. A vida, paixão e morte de Cristo ainda vieram garantir
que apenas vai para o Hades quem assim escolher. A perspectiva gnóstica só
torna-se dominante na modernidade com a perda de força do cristianismo, mas não
era esta a visão no mundo grego. Na peça Agamémnon,
Ésquilo mostra-nos que não era apenas Cassandra a estar amaldiçoada mas todos
os restantes, e o próprio rei de Micenas parece desejar o abismo quando concede
caminhar sobre as tapeçarias púrpuras, aliciado por Clitemnestra, sua esposa
adúltera, sabendo que aquele privilégio estava reservado aos deuses, incorrendo
assim em hybris. Felizmente,
possuímos o restante desta trilogia, a Oresteia,
o que nos permite tirar mais algumas conclusões.
Tal como Tróia tinha
caído por não escutar Cassandra, também Agamémnon não é sensível aos vaticínios
dela e tem o mesmo destino, caindo às mãos de Clitemnestra e Egisto, que irão
depois tombar no ferro de Orestes. O julgamento torna-se necessário, porque
Orestes, por um lado, tinha sido um agente da justiça instigado por Apolo mas,
por outro lado, também tinha assassinado a própria mãe. A casa dos atridas já
vinha sendo fustigada há algumas gerações por uma série de vinganças
sangrentas, que eram ao mesmo tempo reparadoras mas também iniciadoras de novos
ciclos de injustiça a ser reparados. O julgamento de Orestes representa um
questionar deste mesmo processo, que parece não ter fim. O próprio Apolo entra
como testemunha no julgamento defendendo Orestes, e questionado sobre a
ignomínia da morte de uma mãe, ele confessa que é apenas um veículo do seu pai
Zeus. Aqui podemos questionar se a maldição de Apolo sobre Cassadra, logo sobre
toda a humanidade, não teria sido igualmente ditada por Zeus.
Isto é
particularmente significativo porque, quase no início da trilogia, Ésquilo
tinha, no chamado “Hino a Zeus”, esboçado uma espécie de monoteísmo, onde o
deus supremo do Olimpo já era quase que uma espécie de princípio metafísico. Já
não se trata de uma intervenção caprichosa de algum deus mas da estrutura
profunda da realidade, tal como os gregos a viam, que assim se mostra ser trágica
para eles. O arranjo final da peça parece-nos estranho: Orestes é salvo à
tangente não por intervenção divina soberana mas por um arranjo mais ou menos
burocrático entre homens e deuses, e um difícil apaziguamento das Erínias. Isto
é necessariamente assim devido a contradições na concepção originária que os
gregos tinham da estrutura da realidade, onde não existe um verdadeiro
princípio que não entre em contradição consigo mesmo se aplicado a todas as
situações. Isto começou a ser resolvido por Platão e Aristóteles, mas só se
tornou ultrapassado com o advento de Jesus Cristo.
Contudo, não é uma conquista ganha para sempre, tendo,
pelo contrário, que ser reconquistada de geração em geração, ou então cairemos
numa cosmovisão trágica e gnóstica. Começa logo por redescobrir o sentido
profundo dos mitos como o de Cassandra, que só é efectivado quando reconhecemos
as Cassandras do nosso tempo e a nossa tendência para o esquecimento e para a cegueira. Depois, não podemos ver a filosofia
grega como uma relíquia histórica, definitivamente ultrapassada por Kant,
Russel ou Derrida, que não passavam de pobres coitados empenhados em não
entender nada. Por fim, temos que perceber aquilo que Cristo trouxe de novo e
de alguma forma alberga-Lo em nós.