quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Programa ideal de governação (1)



Depois dos prolegómenos anteriores, passo de imediato à descrição do essencial de um programa ideal de governação, que supõe que estamos no cenário das últimas eleições, com José Sócrates terminando o seu mandato. Não farei uma apresentação estruturada, sectorial, mas pedagógica num total de 19 medidas, que permita depois lançar uma reflexão mais aprofundada.

1. Criação de um tribunal especial que julgue todos os membros do governo cessante, assim como os principais dirigentes do Partido Socialista. Acusação: crime de alta traição. A pena será sempre superior a qualquer uma existente no actual código penal. Acresce ainda o confisco de todos os bens destes acusados, quer estejam ou não em nome dos próprios.

2. Anulação do resgate financeiro nos modelos acordados pela troika. Negociação da saída do Euro e da União Europeia, com um plano de pagamento de todas as dívidas a longo prazo, em consonância com algumas medidas expostas abaixo. A aplicação da primeira medida é a maior prova da credibilidade desta segunda.

3. Anulação imediata de todos os contratos celebrados pelos anteriores governos com entidades privadas. Estas mesmas entidades não têm o direito a recorrer aos tribunais e, nos casos evidentes de dolo, serão alvo de processos sumários que visam a restituição aos contribuintes, com juros, dos fundos que lhes foram “sugados”. No caso de empresas estrangeiras, proibição definitiva de actividade em Portugal e proibição perpétua de entrada no país de qualquer administrador envolvido. Naturalmente que a proibição de actividade se estende a outras empresas que venham ser constituídas mas que tenham a mesma base de suporte económica.

4. Abolição da actual constituição portuguesa e elaboração de uma nova, mais simplificada e expurgada de socialismo assim como de qualquer viés dirigista. Princípios da nova constituição: integridade do território nacional e da língua portuguesa; proibição de cedências de soberania (como acontece em relação à União Europeia ou em relação a um futuro Estado Mundial); proibição de interferência estatal na vida íntima das pessoas; proibição de concentração de poder em sectores chave, como a comunicação social; garantia que os cidadãos se possam defender, inclusive em relação ao próprio Estado. Extinção do actual tribunal constitucional.

5. Revogação imediata de toda a legislação com origem na União Europeia ou criada sob inspiração de organismos internacionais como a ONU. Elaboração de todo um novo edifício legislativo, simplificado, que equilibre as garantidas dos acusados com a rapidez dos julgamentos. Criação de tribunais especiais para resolver todos os processos em atraso num prazo de 5 anos. Redimensionamento do corpo de juízes, assim como dos procedimentos de julgamento, para que nenhum caso seja julgado, em definitivo, em mais de 1 ano. Criminalização de todas as técnicas psicológicas de manipulação de massas. Criminalização de todas as tentativas de criar monopólios, por origem privada ou estatal.

6. Extinção da ASAE, da ERC e de todas as instituições regulatórias. Extinção de todos os institutos públicos, observatórios, e demais “esquemas” do género. Fim de todos os apoios a fundações e revisão dos benefícios fiscais às mesmas. Os serviços de verdadeira utilidade pública desempenhados por algumas fundações, que não consigam ser prestados sem ajuda estatal, passam a constar directamente do orçamento de Estado, aprovado pelo parlamento (enquanto este existir).

7. Fim das autonomias regionais (Madeira e Açores) e proibição da regionalização do território, assim como da existência de movimentos separatistas, que devem ser tratados como actos terroristas. Proibição dos municípios se financiarem por actividades de construção. Atribuição aos municípios de competências ao nível da cobrança de impostos, gestão de escolas, serviços de saúde, etc. Estabelecimentos de limites ao endividamento municipal, com perda automática de mandatos em caso de incumprimento.

8. Restruturação completa da Concertação Social: extinção das centrais sindicais, das confederações de patrões, das associações de comércio, agricultores, etc. Substituição por verdadeiros representantes das várias “corporações” que compõem o país. Contudo, acresce ainda a nova figura dos representantes dos contribuintes, que o Estado por si não tem competência de representar.

9. Redução progressiva do número de funcionários públicos, até cerca de 50% dos números actuais, começando pela dispensa de 100 mil trabalhadores. Redução faseada de impostos, para que o peso do Estado na economia não ultrapasse 20% do PIB (incluindo os impostos sobre impostos e as despesas não orçamentadas). Estas medidas necessitam, obviamente, de um prazo de pagamento da dívida prolongado (entre 20 a 40 anos), mas com resultados claramente visíveis ao fim de 3 ou 4 anos, com superavits consistentes.

10. Proibição de défices superiores a 0% do PIB, excepto em casos excepcionais (calamidades naturais, guerra, etc.). Créditos fiscais aos contribuintes em caso de superavits.

11. Fim o ministério da cultura (ou da secretaria da cultura), e criação de um ministério do património e da ordenação do território. O objectivo é recuperar, num prazo de 20 anos, todo o património histórico e corrigir todos os crimes urbanísticos que foram feitos nas últimas décadas. Implica repovoar os centros das cidades, despovoar os dormitórios, eliminar os guetos (uma concepção racista inconcebível dentro da cultura portuguesa), e “arejar” todas as zonas com potencial turístico. Grande parte da transferência dos funcionários públicos seria feita para estas actividades, inicialmente por iniciativa estatal.

12. Restruturação das polícias numa força única, dotada de poder para combater eficazmente aqueles que hoje se sentem impunes: os criminosos de colarinho branco e os terroristas dos gangues.

13. Encerramentos dos canais privados de televisão aberta e ordem de prisão para os seus administradores e directores de programa por crimes de traição. As licenças podem voltar a ser concedidas a privados, que teriam de cumprir uma legislação “anti-estupidificação” do cidadão comum. A RTP será reduzida e vocacionada para a promoção da cultura portuguesa. Encerramento de todos os jornais “sérios” e prisão de todos os seus directores de redacção (actuais e passados) assim como dos administradores dos grupos económicos que os suportam. Esta corja foi a principal responsável pela criação do Estado orwelliano em que vivemos e não merece qualquer tolerância. Liberdade de manipulação não é liberdade de informação.

14. Encerramento do ministério da educação. As escolas passam a ser dirigidas pelas autarquias. Criação de uma comissão de vigilância com a competência de averiguar a existência de manipulação ideológica no ensino: promoção do aquecimento global, do gayzismo, das fraudes históricas, etc. Prémios anuais (viagens culturais, bolsas de estudo) para os melhores alunos. Uma administração pública de elite deve captar esses alunos. Promoção de um ensino de elite baseado na educação liberal e no ensino mediado. Reformulação do ensino universitário.

15. Fiscalização dos “lobos vestidos com pele de cordeiros”: ONG, maçonaria, etc. A confirmação do tráfico de influências e de associação criminosa deve levar a um julgamento sumário por traição.

16. Promoção de uma política de defesa activa (para que os desenvolvimentos militares sejam também um motor tecnológico), com restabelecimento do serviço do serviço militar obrigatório, e tentativa de criar um espaço geopolítico em conjunto com os países lusófonos, com vista a criar uma zona de influência estratégica, económica e cultural. 

17. Pulverização da segurança social, distribuindo as suas características positivas por municípios, misericórdias e associações ligadas à Igreja. Proibição de solidariedade com fundos estatais a instituições sem respalde histórico, porque todas as instituições modernas têm uma mentalidade corrompida.

18. Fim do sistema parlamentar e extinção de todos os partidos. Existência de eleições para: presidentes de câmaras municipais e de juntas de freguesias; juízes e chefes de polícia; representantes de classes profissionais e outras coorporações. As ordens profissionais, apesar de já se enquadrarem dentro deste cenário, necessitam de ser totalmente reformuladas e deixar de serem redes de protecção contra incompetentes.

19. Extinção da República e restauração da Monarquia. O executivo é dirigido pelo rei que consulta os “pares do reino”, que podem ser alguns eleitos (como os representantes das corporações), nomeados pelo rei ou por inerência.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Elaboração de um programa de governação


Todo o português é um governante em potência, pois não há um que não se imagine um génio político que conseguiria resolver instantaneamente todos os problemas do país, bastando para isso que “fosse ele a mandar”. Apenas os próprios políticos quando ascendem aos cargos de ministros e secretários de Estado parecem perder esta sabedoria, adoptando rapidamente posturas erráticas, como se não tivessem previsto, de todo, as dificuldades em aplicar os programas que delinearam ou, mesmo ultrapassadas essas dificuldades, espantam-se pelos resultados não serem os esperados.

Os governantes “modernos”, como José Sócrates, perceberam que podia ser mais eficaz não ter qualquer problema real mas apenas uma estratégia de embuste, aproveitando o tempo de governação para fazer umas negociatas para os amigos, deixando a factura para outros pagarem. Utilizando uma estratégia de acusação e vitimização, o antigo primeiro-ministro completou o serviço com eficácia dado que contava com uma comunicação social subserviente e, caso isso não bastasse, tinha ainda à sua disposição uma série de mercenários políticos contratados para lançarem campanhas terroristas em fóruns de jornais, blogs e em outros instrumentos afins, visando lançar o descrédito contra qualquer possível voz discordante. Depois de ter arruinado o país, José Sócrates foi viver para Paris de forma principesca, apesar de não ter rendimentos declarados que possibilitem tal estilo de vida. Mas os poucos que se indignaram com tal conduta foram largamente superados por aqueles que, numa recente sondagem promovida pelo Diário Económico já depois da sua saída do governo com o país sob resgate, o elegeram como o melhor primeiro-ministro de sempre:


A vida política tornou-se numa piada grotesca, pelo que caberá questionar se vale a pena conceber um programa de governação. Afinal, planos já há muitos, cada português tem o seu, naquela ingenuidade de quem não percebe que o despiste aguarda apenas a chegada à primeira curva. Existem também os planos dos oportunistas políticos, cujas verdadeiras intenções são quase sempre o inverso daquilo que propagandeiam. E existem ainda os planos dos sábios naïfs, que acabam muitas vezes por servir de fachada para os planos dos oportunistas.

No post seguinte delinearei um programa de governação que chamo de ideal não em sentido utópico, de tentar construir um país perfeito, mas porque junta, de forma concertada, aquele que me parece o conjunto das medidas mais acertadas e urgentes a tomar. Muitas delas que foram discutidas isoladamente em vários espaços físicos e virtuais, mas perdem dessa forma toda a sua validade por serem vistas atomisticamente e não articuladas numa visão mais alargada. Tenho noção que algumas destas medidas e o conjunto em si podem parecer extremamente radicais. Ainda para mais, concedo de imediato que todas as medidas são de aplicação prática quase impossível. Sendo assim, faz ainda algum sentido perder tempo com este tipo de especulações?

A resposta é afirmativa, no meu entender, principalmente por duas razões. A primeira relaciona-se com uma tentativa de identificação dos verdadeiros inimigos de Portugal. Quando digo que as medidas são de aplicação prática impossível, tal não se deve ao facto de serem auto-contraditórias em si ou de serem muito utópicas e desligadas da realidade. Pelo contrário, são medidas relativamente fáceis de aplicar se houvesse “vontade política”. Esta “vontade política” é, na realidade, um chavão que se generalizou há alguns anos, que esconde a ignorância daqueles que não chegam a compreender aquilo que eles mesmos propõem. Uso aqui, portanto, a noção de “vontade política” em sentido irónico, porque os verdadeiros entraves são pessoas reais, geralmente associadas entre si de alguma forma, e que constituem os verdadeiros inimigos de Portugal, que pretendo identificar quando abordar posteriormente cada uma das medidas em detalhe.

A segunda razão prende-se com uma questão ainda mais profunda. O ambiente de crise potencia um ambiente de desespero gnóstico, para o qual surgem “naturalmente” uma série de alternativas, todas desastrosas, como a adesão a algum socialismo messiânico ou a um modo de vida niilista, seja passivo ou hedonista. Em qualquer dos casos, há sempre uma desistência deste mundo, a crença de que ele é intrinsecamente mau. Assim, as massas sem qualquer perspectiva de futuro são conduzidas pelas elites especialistas em construções de futuros utópicos ou então dominadas por oportunistas que apenas se preocupam com o curto prazo. A minha intenção é, pelo contrário, recentrar a análise na realidade, partindo do princípio que o nosso mundo é essencialmente bom, apesar de ter falhas monstruosas. Para isso há que abandonar tanto os planos utópicos de um futuro que nunca irá chegar, assim como os planos de curto prazo, pragmáticos, ditos realistas e ponderados.

Então, apesar de ser um programa irrealizável no momento, acredito que é o único que realmente pode endireitar o país. Que estas reflexões algum dia cheguem a influir na governação do país é possibilidade remota, mas tudo o que a “civilização” criou de bom também surgiu de uma fantasia ociosa e não, ao contrário do que diz o mito hegeliano, do movimento imparável das forças históricas impessoais. O desprezo pelos planos de curto prazo não implica que estes não sejam necessários, antes quer dizer que o seu valor apenas pode ser medido numa escala mais alargada. O imediato não tem sentido, é o átomo que se desfaz a si mesmo. A conciliação do ideal (não utópico) com as circunstâncias particulares é precisamente, em termos sociais, a arte política. É essencial saber viver esta tensão, sem cair em nenhum dos extremos. Tal não é acessível a pessoas de carácter vulgar e, menos ainda, aos infames, que constituem a quase totalidade dos actores políticos. 

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Lista de blogs


Coloquei ao lado uma lista de blogs. O número é reduzido porque o objectivo não é distribuir “palmadinhas nas costas” esperando receber algumas de volta mas apenas indicar aqueles blogs que são minhas leituras habituais e de ondo posso aprender alguma coisa. Desnecessário será dizer que não sou obrigado a concordar com tudo o que seja publicado nestes blogs. Aqueles cuja principal actividade mental é concordar ou discordar de outros não passam de imaturos que procuram algum conforto grupal, incapazes de são de suportar a solidão de uma vida intelectual.

Portugal, a Alemanha e a Crise

Em férias pela região do Douro, perguntava-me um turista canadiano se, afinal, os portugueses manifestavam-se porque achavam que não tinham de pagar o dinheiro que tinham pedido emprestado. Disse que isso era verdade para certas pessoas mas não para outras. Não me era possível, numa conversa de circunstância, explicar toda a situação, como tentarei fazer aqui. Outra pergunta que se pode colar a esta é a seguinte: o que querem os portugueses da Alemanha? Será que nós, portugueses, deixamos de ser um povo honrado e passamos a ser um bando de adolescentes mimados, achando que temos o direito a tudo o que quisermos sem termos de prestar qualquer satisfação a quem quer que seja? Quem assiste aos noticiários pensará que é efectivamente essa a situação, porque diariamente surgem peças jornalísticas mostrando grupos reivindicando algum tipo de benefício para si sem mostrar qualquer preocupação por aqueles que seriam obrigados a pagar a despesa concomitante. São também constantes as notícias de greves gerais ou de algum sector específico, que são um conhecido estratagema revolucionário de destruição da economia. Mas sabemos num estudo recente que 80% dos portugueses nunca fez greve e no dia-a-dia percebemos que as pessoas vão aprendendo a viver com menos posses sem estarem sempre a queixar-se por isso, sem que isto signifique algum tipo de aprovação do desempenho da classe política. Então, se queremos perceber o que se passa, temos que ir para além das cortinas de fumo lançadas pelos jornalistas e optar por métodos mais básicos, tais como olhar em voltar e descrever o que vemos, relacionando isso com algumas informações elementares e facilmente comprováveis por qualquer um.

Quando avaliamos a posição da esquerda radical, dos sindicalistas e de muitos comentadores “moderados” deparamos com uma avaliação simplista, que diz que Portugal não fez nada de errado nos últimos anos – ou então foi obrigado a cometer erros por entidades externas – e, sendo assim, a crise nacional tem que ser resolvida com a solidariedade europeia. Então, acham estas pessoas, para tudo se resolver basta que a chanceler Merkel dê ordem de recolhimento à “austeridade” e a substitua por um pacote de estímulos. Pode parecer que estou a fazer uma descrição simplista, mas não tenho dúvidas que concepção que muitos opinadores têm sobre como funcionam estas coisas, quando despida da argumentação vazia usada apenas como arma psicológica, é até mais básica que isto. Veja-se, por exemplo:


Trata-se de uma carta aberta à chanceler Merkel, escrita por gente de esquerda activista mas não propriamente radical. Bruno Bettelhein, caso fosse vivo, teria aqui material para uma nova edição da Psicanálise dos Contos de Fadas, uma vez que não saímos do território da fantasia pueril. Quando questionada sobre os protestos dos portugueses, Merkel teve resposta fácil: o acordo de governação que está em vigor em Portugal não tem nada ver com ela, foi assinado pelo governo português e pela troika. Ou seja, acusar a Alemanha de forma simplista tem o risco desta ilibar-se também simplisticamente.

Para assacarmos as verdadeiras responsabilidades, necessitamos de um quadro mais alargado, com uma escolha apropriada de eventos. Nos últimos 40 anos Portugal tem sido governado por partidos sociais-democratas, cujas diferenças se esbatem quando têm funções de governo. Todos acreditam no dirigismo económico e nas virtudes dos défices acumulados como estímulo ao crescimento. Contudo, os próprios ideólogos socialistas da construção europeia perceberam que a unificação política podia estar em risco se o socialismo económico fosse longe demais, e em 1992 o Tratado de Maastricht definiu para os países signatários um limite da dívida pública de 60% do PIB. Curiosamente, este foi o tratado que instituiu a União Europeia – um projecto declaradamente político – e abandonou o projecto menos ambicioso da Comunidade Económica Europeia. Um dos elementos fundamentais na união política era precisamente a união monetária, pelo que se tornava importante, numa fase inicial, ter uma moeda estável, e daí as regras para disciplinar as contas dos vários países.

Entre 1985 e 2004 a dívida portuguesa oscilou, aproximadamente, entre 50 a 60% do PIB, o que constituiu um desempenho medíocre, mas muitos condenavam, ainda assim, a “ditadura do défice”. A partir de 2004 a dívida portuguesa ultrapassou o limite dos 60% do PIB, e daí em diante cresceu vertiginosamente, atingindo 71,6% em 2008, quando rebentou a crise financeira internacional, chegando praticamente a 120% do PIB em 2012. Esta constatação elementar serve para mostrar que o endividamento do governo de José Sócrates começou bem antes da crise financeira, ao contrário do que alguns ainda tentam argumentar. A crise financeira internacional serviu apenas para agudizar um fenómeno que já era notório. Além disso, sabemos que se tratou de um endividamento em despesas largamente irrelevantes, como em dispendiosas auto-estradas em zonas onde não passa ninguém, quando não em negociatas ruinosas feitas à medida de alguns amigos. Os culpados disto são fáceis de identificar e mais tarde direi o que deveria ter sido feito com eles.

Contudo, tudo fica mais interessante quando sabemos que Portugal não era caso único, até porque a Grécia se nos adiantou, e todos sabiam que os países do sul da Europa não estavam de boa saúde financeira. Os organismos europeus deixaram passar impunemente os países, como Portugal e a Grécia, que ultrapassaram o limite da dívida, e alguns dirigentes chegaram a confessar que todos sabiam que vários países apresentavam contas falsas, pelo que a situação real ainda seria pior do que o anunciado. Como se não bastasse, as próprias agências internacionais de rating fingiram que nada se passava e continuaram a dar classificações elevadas às dívidas dos países, até o colapso ser iminente. Os idiotas de serviço olham para tudo isto e exclam que se tratava de uma crise fabricada, no que acertam, mas acham que foi fabricada apenas no final de 2008, com a falência dos bancos americanos, e depois com a descida “injusta” dos ratings das dívidas de vários países. Mas é óbvio que a crise foi cozinhada durante muito tempo, num misto de expansão do estado social juntamente com políticas ruinosas de recurso ao crédito, cuja entrada do euro em circulação tornou fácil aos países do sul da Europa, para além do problema estrutural internacional do abandono do padrão-ouro.

Chegamos agora à fase de lançar algumas conjecturas. Todos sabem que uma dívida quando atinge um certo valor não é só ela se torna impossível de pagar, os próprios juros associados já são por si incomportáveis. Este foi, de resto, um estratagema muito usado para criar situações de escravatura depois desta ter sido oficialmente abolida. Esta situação insustentável estava claramente a ocorrer com Portugal e noutros países. É crível que ninguém tenha percebido que se estava a cozinhar uma crise europeia, para mais quando anos antes se tinha estabelecido a importância de limitar a dívida dos vários países? Isto seria supor que os detentores do poder ao nível europeu sabem menos que o cidadão comum, que não ignora que as dívidas são perigosas, quando é notório que, pelo contrário, são os poderosos que estão em posse de informações que nem sequer são concebíveis para o homem do povo.

Se recuarmos um pouco no tempo, vemos que em 2005 o projecto da Constituição Europeia teve que ser abandonado devido aos referendos na França e na Holanda, e sabemos que esta constituição constituiria um passo quase que definitivo para o fim das nações e para o nascimento de um super-estado europeu fictício e de carácter totalitário. Precisamente nessa altura começaram a ser trabalhadas outras vias para chegar ao mesmo fim de forma mais discreta. Por um lado, começou a ser preparado o Tratado de Lisboa, que aumentava a integração europeia (um eufemismo para a perda de soberania por parte das nações) de uma forma psicologicamente mais aceitável do que impingir uma constituição para toda a Europa. Por outro lado, fecharam-se os olhos ao endividamento crescente dos países do sul da Europa, sabendo que era apenas uma questão de tempo até estes começarem a solicitar o resgate financeiro por parte do FMI, lançando assim uma sensação de desnorte por toda a Europa (isto em sintonia com uma crise financeira internacional, que servia também outros fins). Quando Portugal pediu o resgate ao FMI, vários comentadores “isentos” falavam de algumas soluções naturais para a crise: criação do cargo de ministro das finanças para toda a Europa; orçamentos nacionais fiscalizados pelas cúpulas europeias e assim por diante. Ou seja, tentou forçar-se o aprofundamento da união política apostando no desespero das pessoas.

Mas nem tudo correu como estava previsto, e ao invés dos povos se virarem para a Europa, viram-se para si mesmos, e as gentes do norte começaram a acusar as do sul e vice-versa, pelo que ao invés do reforço da união temos o risco de implosão da União Europeia. Contudo, o próprio espectro do fim da Europa há muito que é um argumento recorrente para o avanço do projecto europeu, nem que seja para dizer, como tantas vezes ouvi, que ou avançamos para uma Europa mais unida ou vamos entrar todos em guerra outra vez. Por isso suspeito que os socialistas fabianos que tentam construir de forma tecnocrática e sem dor uma Europa uniforme, mais uma vez estarão a tentar aproveitar-se dos socialistas radicais que promovem greves e manifestações violentas, porque tudo isso é um argumento para aceitar a mão ordenadora da “Europa”, ainda que tudo me pareça uma pretensão ingénua, já que é um caminho que apenas pode favorecer, no longo prazo, os projectos do califado universal e do movimento eurasiano de russos e chineses.

Nisto tudo onde entram os alemães? Em primeiro lugar, se alguém sabe dos perigos do desgoverno financeiro são eles, mas tudo lhes pareceu bem enquanto os países de sul endividaram-se para comprar os produtos da indústria alemã. É muito instrutivo andar pelas estradas de Portugal e ver a quantidade de carros de luxo alemães. Por outro lado, a crise europeia serviu para aumentar o poder político da Alemanha, porque no momento do aperto todos se viram para quem manda mais, e esse, por essa razão, passa a mandar ainda mais. Penso que as elites alemãs estão a fazer um jogo perigoso, porque se alguns políticos e alguns empresários estão a ganhar muito com tudo isto (não necessariamente dinheiro, mas sobretudo poder de influência), o contribuinte alemão apenas perde e não está disposto a pagar as dívidas dos países do sul. Por isso, a Alemanha tão facilmente estará a mandar na Europa como poderá no momento seguinte se fragmentar, porque também tem as suas Catalunhas.


segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A viabilidade de um país

Na série anterior de posts, tomei como base um evento recente e, analisando o comportamento dos vários actores em cena, tentei evidenciar o clima de morte “eminente” que o país vive. Pode parecer muito dramático, mas falar em fim de ciclo ou fim de regime não me parece suficiente.

Agora vou tomar um ponto de vista diferente e, por assim dizer, mais estrutural. Nos últimos anos não deve ter havido um único noticiário que não tenha referido a duvidosa viabilidade económica e financeira de Portugal. A questão está, obviamente, mal colocada. Economia e finanças não tornam um país viável, antes têm o poder de o tornar inviável. Os elementos que estruturam uma nação estão colocadas noutro plano, mas também por aqui não estamos bem servidos. Elenco de seguida algumas das nossas verdadeiras carências estruturais.

Em Portugal não existe um único grande escritor vivo. Isto quer dizer que não existe ninguém a transfigurar a realidade em símbolos verbais eficientes, pelo que a sociedade deixa de ter instrumentos para reflectir sobre si mesma. Em fraca compensação, a linguagem é enxertada de todo o tipo de gírias adaptadas de disciplinas técnicas ou de outras línguas, que usamos para descrever a nossa realidade por analogia, sem perceber que podemos ir parar bem longe do nosso verdadeiro contexto e estarmos assim a entrar numa ilusão completa. Note-se que ainda há muita gente a escrever em bom português, mas sem grande literatura, é apenas uma questão de tempo para toda a gente estar a escrever mal.

Portugal não tem um único grande intelectual. Existem bons académicos, cujos trabalhos não devem ser desprezados, mas nenhum deles dá mostras de possuir qualquer sabedoria fora das suas áreas de especialidade. Isto quer dizer que não há ninguém capacitado para reflectir sobre os grandes problemas, que não se podem confinar a uma única área de estudo, . Paradigmático sobre esta incapacidade foi a entrevista que José Gil deu à RTP. Para dizer algo acertado, limita-se a repetir a argumentação de qualquer taxista. Quando desafiado a dar uma ideia para Portugal, demite-se dessa responsabilidade e diz que isso é função dos políticos. Nada mais errado: os políticos são figuras essencialmente práticas, que se especializam em relações humanas tendo em vista o acesso aos postos de poder, pelo que não é o tipo de pessoa a que naturalmente se pedem reflexões aprofundadas. Essas reflexões são da responsabilidade dos filósofos em primeiro lugar, que não têm sequer de as tornar produto acessível ao grande público, ficando isso a cargo dos polemistas e dos intelectuais de segundo plano, que, por sua vez, poderão alimentar jornalistas, ficcionistas, políticos, etc.

Não havendo grandes intelectuais, é natural que também não existam grandes comunicadores a servir de veículo de transmissão entre as grandes ideias e o público geral. Neste momento, Portugal tem apenas um grande comunicador: o professor Marcelo Rebelo de Sousa. Contudo, a sua oratória é tão perfeita quanto a sua falta de sinceridade. Todos os problemas são abordados por ele segundo uma bitola estética ou mediante uma ética de conveniência. É o tipo de pessoa habituada a estar rodeada por medíocres e por isso não percebe que podem existir pessoas com um horizonte de consciência infinitamente superior ao seu. Todos os outros comentadores são figuras vendidas a interesses particulares ou ideológicos, ou figuras vendidas à sua própria alienação e preguiça, como é o caso de Miguel Sousa Tavares. A única excepção é Medina Carreira, cujo mérito é fazer umas contas de merceeiro ao Estado do país e alertar que, a continuar assim, a “mercearia” será obrigada a fechar.

Em Portugal não há nenhuma figura espiritual de grande nível, com a possível excepção do bispo do Porto, D. Manuel Clemente. Povo e elites privados de verdadeira vida religiosa tendem a absolutizar o imediato e a desconsiderar passado e futuro. No limite, caem numa vida animalesca, puramente baseada em necessidades fisiológicas, e aqueles cuja angústia de existir não se conforma com isto são facilmente presas de ideologias totalitárias.

Não existe qualquer criação cultural de primeiro plano em Portugal. Simbólico deste aspecto é o caso do cinema, em que Manoel de Oliveira foi o primeiro grande vulto nacional e agora, com 103 anos, continua a ser o maior expoente. Boa parte da classe artística acha que tem um direito divino a ser subsidiada. Certamente que há produção cultural séria e competente, mas nada que vá deixar marca para futuro.

Quando nos chocamos com o tipo de música que o povo consome, ou com os programas execráveis de televisão a que assiste, esquecemos que estas coisas têm origem e/ou são promovidas por gente que não é do povo mas está colocada próximo das elites e segue muitas das ideias que estas discutem em círculos restritos. As discussões públicas, que apenas seguem linhas simplistas – normalmente segundo pares de opostos, como mercado versus planeamento estatal – não permitem ir às razões profundas . No mundo moderno, há um abismo entre a cultura superior e a maioria da população. As elites têm uma cultura para consumo interno mas criam também uma cultura para estupidificação das massas. O quadro é complexo e não é possível descrevê-lo em poucas linhas.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O dia em que Portugal morreu (5)

Uma palavra final sobre os actores políticos não executivos envolvidos no cenário que tenho vindo a comentar. Os partidos estiveram ao nível que nos habituaram, com a sua usual indigência criminosa. Aceitar comentar as suas acções pontuais, caso não seja precisamente para exemplificar a sua execrabilidade, é já a reconhecer-lhes uma dignidade que não possuem. Mas não devemos diabolizar muitos os partidos, uma vez que eles têm por trás instâncias mais poderosas e perigosas. Os jornalistas também continuaram eficazmente a focar-se nas margens da realidade, secundados pelos comentadores residentes e por vários especialistas convidados, que tentam dar um ar de seriedade a discussões que nunca seriam admissíveis num país que queira sobreviver mais 10 anos. 

Mas o mais relevante foi o comportamento da blogosfera, que parece ainda ter pretensões de se assumir como o último reduto da dignidade intelectual e moral. Não só não anteciparam que o governo ia ser “obrigado” a lançar novos impostos sobre a classe média (era fácil antecipar isto com anos de antecedência), como reagiram a isto com um espanto infinito. Debateram hipóteses num clima de escolhas impossíveis sem perceber que só vendo as coisas num quadro infinitamente mais amplo é possível ultrapassar os problemas derivados de décadas, ou séculos, de gestão danosa. 

 Sobre a actuação do governo, mais tarde direi algumas coisas quando esboçar um programa ideal de governação, para que o enquadramento possa ser o adequado.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O dia em que Portugal morreu (4)

O que despoletou, em termos formais, a manifestação e o desapontamento geral com o governo foi o anúncio da alteração na TSU, em que uma subida desta contribuição social por parte dos trabalhadores seria compensada por uma descida da parte das empresas. Povo e comentadores reagiram como se estivessem a ver claramente todas as hipóteses em cima da mesa e os efeitos a curto e longo prazo. Começo por supor que assim é.

Se a mexida da TSU é inviável, então é porque há uma alternativa totalmente distinta. Mas essa alternativa só pode situar-se fora do quadro definido pelo actual resgate financeiro – que não dá qualquer margem para alterações de fundo e não é com cortes nas “gorduras” do Estado que a situação se irá alterar significativamente. Se defendemos a manutenção da situação actual, então estamos a querer dizer que algum tipo de subida de impostos é inevitável, provavelmente ainda mais gravosa que a alteração na TSU, como de resto veio a acontecer com a anunciada alteração dos níveis do IRS e “aumento enorme de impostos” (com a ressalva de que isto ainda deveria ocorrer caso as alterações à TSU tivessem avançado). O PS diz que esta troca é um logro político, pelo que deve ter toda a razão, uma vez que se trata de um partido especialista em tais manobras.

Ao menos neste aspecto, devemos saudar os organizadores da manifestação, já que pediram explicitamente que a troika se retirasse do país. Claro que eles não exigem isto tendo em vista a implementação de um plano estruturado de reconstrução do país. Eles querem o fim do resgate financeiro para que se instale a bancarrota e a situação se torne anárquica, dando-lhes uma abertura para a tomada do poder e iniciar, assim, um período revolucionário que possa fazer de Portugal uma nova Cuba, uma Albânia ou até mesmo, se não é sonhar muito, uma Coreia do Norte. E tivemos gente de “direita”, liberais e conservadores a participar na manifestação sem perceberem o que estava em causa. Parecem acreditar que “ o inimigo do meu inimigo meu amigo é”, quando São Tomás de Aquino (e antes dele, Aristóteles) assinalou que a amizade não é apenas rejeitar as mesmas coisas mas também querer as mesmas coisas.

Aqueles que se querem assumir como formadores de opinião tinham a obrigação de avaliar a alteração à TSU num quadro amplo, começando por descrever a verdadeira situação do país e quais as medidas que podem realmente trazer mudanças de fundo. Mas preferiram reagir na base do imediatismo, dizendo aquilo que lhes sossega o espírito e possa ecoar nos públicos que têm como referência. Alegram-se por fazer oposição a uma má medida sem perceberem que em troca vão ter apenas uma medida igual ou pior.

Era também uma oportunidade para discutir a própria existência da TSU e da segurança social nos actuais moldes, o que vi apenas ser feito de maneira tímida por muito poucos. A segurança social, devido à fraca capitalização e ao favorecimento dos que já estão “instalados” (e alguns estão bem mais “instalados” do que outros), é uma fraude financeira do género do ponzi scheme. Este é um tipo de investimento fraudulento bem conhecido, com semelhanças ao esquema de pirâmide, mas com maior robustez enquanto continuarem a entrar novos investidores. No caso da segurança social, os novos investidores são os actuais contribuintes e os futuros. Contudo, o esquema de funcionamento da actual segurança social é ainda mais tenebroso do que o ponzi scheme. Todos somos obrigados a contribuir para a segurança social mas a entrada no ponzi scheme é opcional (mas apesar disso este esquema é punido criminalmente e muito justificadamente). Pior ainda, sendo um esquema que depende da entrada de novos contribuintes, a segurança social entra em choque contra uma série de políticas activas de destruição da natalidade: abortismo, casamento gay, e todo o género de “pequenas” dificuldades criadas para quem quer ter filhos e que leva a muitos casais a adiar ou abdicar da paternidade. As massas vão aceitando tudo isto porque lhes dizem que é a inevitabilidade do progresso, que são as conquistas da liberdade, quando nunca as pessoas foram tão prisioneiras da situação e o único progresso que se assiste é o da conduta simiesca.

Não é por acaso que se aconselhava a praticar a caridade de forma discreta e, de preferência, até anonimamente. Quando os políticos falam em solidariedade feita à custa de dinheiro alheio devemos desconfiar das suas verdadeiras intenções. Hitler usou esta “solidariedade” para comprar os votos do povo, e é raro o político que não ceda a esta tentação. Nos Estados Unidos, o New Deal foi a porta de entrada para o Estado social, cujo verdadeiro objectivo foi o enfraquecimento da alma dos indivíduos, tornando-os apáticos e medrosos, por forma a aumentar o poder daqueles que mandam no Estado sobre as populações. Esta concentração de poder foi adoptada no mundo inteiro, por vezes mais ferozmente em países ditos capitalistas do que nos socialistas. Actualmente estamos numa fase bem mais avançada, dado que a segurança social não se limita a comprar os votos povo e a enfraquecer a vontade dos indivíduos. Ela tornou-se agora numa estratégia de longo prazo tendo em vista a destruição das nações, que ficam obrigadas a prover a uma série de “direitos adquiridos” até se atingir um ponto de ruptura. A este respeito, ver, por exemplo, a estratégia Cloward-Piven:


A discussão pública fragmentou-se numa miríade de questões subatómicas, cada uma delas totalmente irrelevante e baseada em abstracções que nada dizem. Mas quem se viciou neste tipo de questiúnculas, pensa ter encontrado nestes infinitésimos o solo duro da realidade. Qualquer tentativa mais ampla de avaliar as situações parece-lhes teoria da conspiração, ainda que lhes mostrem as evidências que estão diante dos seus olhos. 

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

O dia em que Portugal morreu (3)

O que uniu aquelas pessoas que se manifestaram no dia 15 de Setembro? Formalmente tratou-se de uma manifestação contra o governo e contra a troika. Mas ninguém acredita que todas aquelas pessoas queriam prescindir do resgate que o país vive e iniciar um caminho totalmente diferente, se bem que isso tivesse algumas vantagens. As pessoas estavam obviamente unidas por um sentimento de insatisfação, mas se perscrutarmos as causas dessa insatisfação descobrimos algumas coisas curiosas. Enquanto muitos protestavam contra a anunciada redução efectiva de salários no sector privado, via ajustamento da TSU, outros queixavam-se da degradação da situação dos funcionários públicos. Obviamente que as duas pretensões implícitas são contraditórias no quadro actual. Uma jovem de ar confuso reclamava que era cada vez mais difícil arranjar estágios profissionais porque estavam sempre a sair novos alunos das universidades a fazer-lhe concorrência, mostrando pouca solidariedade para com muitos dos seus colegas de protesto que anseiam por uma primeira oportunidade profissional. Se pensarmos em termos de pretensões mais conceptuais, havia quem queria claramente mais socialismo e quem queria menos Estado, assim como quem queria mais solidariedade europeia e aqueles que queriam desligar-se da Europa e do Euro.

Isto quer dizer que, se aquelas pessoas estivessem devidamente organizadas pelas suas pretensões, assumindo um discurso em conformidade e fazendo as exigências em consonância – ou seja, exigindo que outros assumam uma série de deveres correspondentes aos direitos que elas reivindicam –, então, não haveria ali qualquer união mas uma série facções degladiando-se. Na realidade, é exactamente isso que acontece mas cada indivíduo não tem disso uma consciência clara (porque a paga entre direitos e deveres não é directa), apenas uma desconfiança difusa em relação a todos, que se materializa em certas circunstâncias contra um bode expiatório. Em geral, são os próprios governantes que usam esta estratégia para concentração de poder, através da variante “dividir para reinar”. Ou seja, é mais fácil reinar quando o grupo está dividido em várias facções, cada uma delas com pouca consciência do estado geral de coisas, pelo que acabam por ceder ao poder mais focado e consciente de si mesmo e da situação geral.

Mas quando os governos são pouco hábeis politicamente, a mesma estratégia pode ser usada por forças com pouca expressão eleitoral, que desta forma tentam representar uma pretensa consciência unitária do grupo. Para isso, é necessário domínio das modernas técnicas de propaganda e apoio da comunicação social, dois requisitos cumpridos pela extrema-esquerda, em especial pelo BE. Uma carrinha de caixa aberta distribuía aleatoriamente cartazes aos manifestantes, que os aceitavam acefalamente, recebendo assim uma consciência emprestada. O cenário orweliano está montado e quem entrou nele sem pestanejar pode ter sofrido danos irreversíveis para a sua inteligência.

Passaram uns dias e o governo recuou na alteração à TSU, para aumentar o IRS, e o resultado global para a economia pode ainda ser pior. Mas todos reclamaram vitória e fingem que se está a debater algo de relevante. O cidadão comum saltou do tacho para a frigideira, deverá estar um pouco confuso. Valerá a pena entrar em nova manifestação e correr o risco de ser colocado no micro-ondas?

domingo, 30 de setembro de 2012

O dia em que Portugal morreu (2)

O que supostamente despoletou a manifestação de 15 de Setembro foi a redistribuição da TSU (que será abordada noutra ocasião), diminuindo a contribuição das empresas e aumentando a dos trabalhadores. Na linguagem do Partido Comunista, isto seria roubar aos trabalhadores para enriquecer o grande capital. Curiosamente, os "grandes" capitalistas e os "representantes" do patronato concordaram com isto e recusaram logo esta redução dos custos do trabalho, que tão insistentemente tinham vindo a pedir. Mais significativo ainda foi não terem apresentado, de forma coerente, qualquer proposta alternativa, como se o ideal para as empresas fosse manter tudo como está. Os "representantes" do patronato, com a sua reacção imediata, não tiveram tempo para averiguar entre os seus representados se a medida podia ajudar alguma coisa, nomeadamente entre aquelas empresas que estão no limite entre fechar ou continuar em actividade, pelo que convinha saber quem eles representam realmente. Note-se que em nada disto suponho a justiça ou eficiência da medida anunciada pelo governo, mas precisamente assinalo que ninguém se interessa em saber o que está em causa.

Afinal, que tipo de empresários temos nós? As exportações portuguesas tiveram um aumento notável nos últimos anos. Os mercados externos não se abriram de repente, sempre estiveram disponíveis, mas antes qualquer empresário preferia colar-se ao Estado, de forma mais ou menos directa, mas a teta estatal ameaçou secar abruptamente. Então, aqueles empresários mais capazes e perspicazes fizeram o que tinham a fazer, mas os outros entraram em pânico. António Borges chamou-os de ignorantes, mas eles não são nem sábios nem ignorantes, são apenas uns espertos que viveram à conta de um socialismo que agora se mostra inviável. Toda e qualquer contestação ao governo da parte do "grande capital" é apenas mero pretexto para forçar o governo – este ou outro que lhe suceda – a se tornar mais dócil e a conceder benesses de forma encoberta, os famosos "estímulos à economia". Mas os empresários beneficiados serão sempre aqueles com maior poder de influência, pelo que todos os outros estão a ser burlados por aqueles que supostamente os representam.

A isto há que juntar as pressões dos detentores de fundações, que não se contentam com as isenções de impostos e reclamam sempre mais e mais subsídios para elaborar tarefas tantas vezes de duvidosa utilidade, vide Mário Soares alarmado com os cortes que se anunciavam.Sem esquecer ainda que a anunciada privatização da RTP criou mais uma série de inimigos na poderosa industria mediática devido à escassez do mercado publicitário.

Longe ainda deste quadro completar a fenomenologia do poder em Portugal, percebe-se facilmente que as classes poderosas não se interessam minimamente pelos destinos do país mas anseiam por um governo ao estilo de José Sócrates, que continue a empurrar com a barriga uma situação insustentável, enquanto concebe benesses por baixo da mesa a estes mesmos poderosos. Quem paga, como sempre, é uma classe média, que hoje já vive como se fosse uma classe pobre. Sobre estes dedicarei o próximo post.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O dia em que Portugal morreu (1)

Tal como as árvores, os países podem morrer sem que alguém dê por isso durante muitos anos. Para efeitos de raciocínio, entendo aqui a morte de um país ou de uma nação ­– as precisões ficam para mais tarde – como aquele ponto de não retorno em que não é possível mais indireitar o estado de coisas sem que haja uma refundação nacional, talvez só possível em diáspora. Obviamente que não se trata aqui de fazer algum tipo de previsão científica mas de deambular por um campo simbólico que nos permita vislumbrar as razões mais profundas, sem entrar por uma busca de causas remotas, que nos levaram até aqui.

Portugal morreu no dia 15 de Setembro de 2012, data da manifestação contra a troika e contra o governo, devido ao corte de ordenados que a subida da TSU implicava. Como todas as manifestações, foi organizada pela extrema-esquerda e apoiada de forma natural por toda a comunicação social. A convocação pelo facebook precipitou uma adesão maciça, e todo o país se mobilizou, ricos e pobres, incultos e sábios, socialistas e liberais. A unanimidade contra as últimas medidas do governo, assim como contra o resgate da troika, seria uma coisa positiva se acreditássemos na remota hipótese de todos terem percebido o que se passa: ou seja, todos perceberam os erros cometidos; todos compreenderam a gravidade da situação e o longo caminho que nos espera; todos sabem quais os caminhos de saída e as formas de os trilhar, incluindo a maneira de superar os obstáculos e os imprevistos.

Mas se nos recusarmos a crer nesta espécie de omnisciência colectiva, somos forçados a encarar esta unanimidade de forma mais sombria, e a desconfiar se não estamos em presença de um tipo de estupidez colectiva de consequências irreversíveis. Não me refiro propriamente à estupidez dos manifestantes, muitos deles reagindo de forma compreensível a mais uma espoliação, mas à estupidez da generalidade dos comentadores, que tanto mais falaram quanto menos raciocinaram. Passados alguns dias, disse para mim mesmo que esta tinha sido a mais socialistas das manifestações que alguma vez existiram em Portugal. Mas nem tudo estaria perdido se assim fosse, dado que seguir de forma consciente um caminho, ainda que errado, permitiria mais tarde corrigir a trajectória, precisamente pelos escrúpulos que à consciência se ligam. Mas depois percebi que era muito mais grave, que as pessoas tanto querem – seguindo a desorientação reinante nas classes pensantes – um Estado omnipresente como um Estado mínimo, querem ser totalmente livres desde que severamente agrilhoados, querem voltar para uma Idade do Ouro ao mesmo tempo que abominam tais fantasias, querem o fim da crise assim como a sua eternização... A lista podia prosseguir indefinidamente. Não se tratam de desejos contraditórios, tão característicos do ser humano. Trata-se de uma marcha deliberada para o abismo, surgida da coragem emprestada pelo colectivo.

Mais tarde tratarei de concretizar estas imagens, que por ora parecerão apenas toscas pinceladas poéticas a retratar um certo espanto.