terça-feira, 21 de maio de 2013

Relatos do Inferno (6)

OVELHAS COM PELE DE LOBO

Tanto a mão invisível do capitalismo como a sociedade fraterna do socialismo prometeram terminar com o estado animalesco em que supostamente a humanidade vivia, onde vigoraria a lei do mais forte e a batuta sinistra da religião. A democracia, tanto a liberal como a socialista, seria a formalização do regime em que todos são iguais perante a lei ou, no caso socialista, o regime em que, através da lei, todos os homens se tornam iguais. Nas modernas sociedades, onde a luta ideológica se dá essencialmente entre liberalismo e socialismo, é natural que os dois conceitos de igualdade, negativo e positivo, acabem por se confundir. Os estrategas de ambas as partes acham que esta ambiguidade lhes pode trazer vantagens, porque vão tentar se apropriar de quaisquer associações positivas que o termo «igualdade» desperte no público, mesmo aquelas que contrariem o sentido restrito que eles usam quando debatem entre os do grémio.  

Contudo, tanto liberalismo como socialismo são ideologias de movimento, que apenas podem ser aplicadas num contexto onde se conserve um fundo estável. De certa forma, os elementos constitutivos das doutrinas liberal e socialista já existiam nesse fundo estável (mas não imóvel), porém os ideólogos descobriram que podiam montar sistemas teóricos apenas com determinadas partes, fazendo abstração das restantes. Bibliotecas inteiras podem ser lotadas com os livros que já foram escritos à volta destas construções mentais, mas ainda assim não é possível aplicá-las na prática sem mais. Pior que isso, a sua própria aplicação requer que seja eliminado aquele fundo estável que permite a sua própria sobrevivência no tecido da realidade.

Obviamente que uma certa dose de capitalismo faz parte deste fundo estável, tal como a própria construção do socialismo necessita da «electricidade» capitalista. Mas quando os liberais fazem abstracção das condições que deram origem ao capitalismo, e tentam fazer da liberdade (ou da propriedade) princípios de onde tudo se pode derivar, eles estão a cavar a sua própria sepultura, já que estão a tentar apoiar-se no vazio. Apesar de existirem algumas vertentes tradicionalistas no liberalismo, estas dão à tradição um propósito utilitarista, logo, esta perderá todo o seu sentido e, no longo prazo, a própria utilidade. Por outro lado, não podemos confundir o comunismo primitivo – que realmente é algo que existe mas apenas como fenómeno grupal, talvez não entre os verdadeiros primitivos – com o comunismo/socialismo enquanto teoria política, baseada na concentração do poder, e que apenas pode existir como movimento em direcção a si mesmo. Os intelectuais socialistas perceberam que a tradição também podia ser usada como meio revolucionário, usando o “apego” que o povo lhe tem mas ao mesmo tempo esvaziando a palavra do seu conteúdo original para a preencher dos fins socialistas.

Em suma, tanto socialismo como liberalismo são parasitas do conservadorismo (obviamente que isto não dei prova disto, apenas fiz alusão a alguns pontos que terão de ser descompactos por quem queira entender o que escrevi), apostados em matar o hospedeiro do qual retiram a sua existência, dado que acreditam que as suas abstracções são possíveis de se materializarem na realidade ou que elas mesmas possam ser geradoras de uma realidade autónoma. Então, quanto melhor sucedidas forem estas ideologias – isoladamente ou em conjunto, como se verifica actualmente – mais elas se aproximam do seu próprio fim, conduzindo a igual destino as sociedades que lhes servem de cenário. Não pretendo tirar daqui uma teoria que explique estas ideologias cientificamente (no sentido de episteme), mas apenas apresentar um enfoque específico que ressalte alguns aspectos. Ora, o facto de liberalismo e socialismo serem ideologias de movimento, no sentido de se basearem num destacar de certos elementos e fazerem tudo girar à sua volta (e assim descentram a civilização ao criar novos centros que não têm a potência para tal), vai ter profundas implicações psicológicas. Essas implicações estão em grande parte ocultas nos regimes abertamente totalitários, que se baseiam num capitalismo de Estado e num controle policial da sociedade, pelo que ovelhas e lobos estão bem identificados, e a relação entre presa e predador consiste num levar ao paroxismo algo que existe desde sempre – o abuso da força por quem a possui –, embora o fenómeno em si tenha algumas coisas inéditas em relação ao passado. Nas sociedades democráticas, o facto de haver ovelhas e predadores é considerado uma anomalia a extirpar pela lei, seja preventivamente ou correctivamente. Resta questionar quem vai garantir a igualdade em democracia, quem vai garantir que não sejam cometidos abusos de força.

Numa sociedade tradicional, há uma divisão em dois planos: num deles, o terreno, a lei existe para punir os crimes mais graves e que ponham em causa a própria estabilidade social; depois há uma moralidade de inspiração religiosa, que ficava largamente a cargo de cada um desenvolver por conta própria ou com ajuda de algum sacerdote. Esta distinção vai desaparecer no mundo moderno, onde tudo se torna imanente, e aquela parte que era um movimento na alma humana passa apenas a ter uma manifestação mundana, representada pelas aspirações a que procuram responder as ideologias de movimento. Isto quer dizer que a pretensão de igualdade rapidamente se multiplica na busca de todo o tipo de perfeições que se transferiram do plano da perfeição religiosa – que todos sabiam que eram impossíveis de cumprir – para o plano mundano. Tudo isto aparece ainda muito embrulhado no mundo burguês, mas depois a ciência ergue-se como juiz daquilo que o homem deve ser, e aí torna-se um imperativo moral todos contribuírem para tal. Entretanto, as ideologias adaptaram-se a estes desenvolvimentos, largamente provocados por elas, e apesar de proporem soluções aparentemente opostas, tanto socialismo como liberalismo estão juntos no propósito de afastar o homem da transcendência, implicando isto a perda da medida de todas as coisas. Não por acaso, as ideologias surgem como um misto de ciência e seita religiosa propícia ao apostolado.

Neste quadro, torna-se evidente que não basta procurar respostas naquilo que a democracia constitui formalmente. Supostamente, o Estado tem o monopólio da força, mas o seu exercício é fiscalizado por órgãos independentes, alguns que são fruto da representação popular. Não só o Estado já ultrapassou há muito às suas funções mínimas como o fez não por ter alterado a sua natureza (entenda-se que me refiro ao Estado moderno) mas sobretudo através da expansão “natural” das suas funções nucleares, que os próprios liberais tradicionais aceitam. Então, é largamente irrelevante saber quem vai ocupar os lugares formais no poder, não só porque é mais importante o controlo do acesso a esses lugares mas, sobretudo, porque o fundamental é o controlo daquilo que é pensável e pode surgir como opção.

Neste contexto, o predador é aquele que domina psicologicamente os outros, não tanto em termos de poder pessoal mas sobretudo na forma como pode determinar a cosmovisão alheia. O predador vai ser aquele que conseguir encarnar melhor a ideologia dominante no ambiente em que se encontra, e essa ideologia pode perfeitamente ser uma mistura de liberalismo com socialismo, e ainda ter algo de conservadorismo cristão. Vão surgir dois grupos: um composto por aqueles que realmente têm poder de influência sobre os outros; e outro onde estão aqueles que, à força de não conseguirem resistir ou sequer perceber a dominação mental a que estão sujeitos, se tornam paladinos do opressor. Os primeiros são lobos com pele de cordeiro, são os redentores da humanidade, os revolucionários que querem controlar tudo para criar um mundo melhor, nem que para atingir esse objectivo tenham que exterminar a espécie humana. O segundo grupo é composto pelas ovelhas com pele de lobo: são aqueles “amigos” que se escandalizam se acharmos que algo não vai bem neste mundo, aqueles que nos vendem a sua afeição a troco do esquecimento e da homenagem aos ídolos do momento, aqueles que nos censuram se não seguirmos o politicamente. Se no regime totalitário explícito o lobo é a polícia política, o serviço secreto ou até o denunciante anónimo, em democracia o lobo vai actuar em primeiro lugar agindo sobre o grupo de ovelhas mais próximas de nós. Os verdadeiros lobos aprenderam que era mais simples convencerem as ovelhas a policiarem-se umas às outras do que serem eles a fazer esse trabalho.

Na verdade, as modernas democracias totalitárias encaminham-se para ser regimes ainda mais compressivos do que as ditaduras comunistas. Qualquer ditadura preocupa-se sobretudo em manter um círculo de protecção à volta do núcleo do poder, e para isso tenta controlar as movimentações militares e políticas, tendo ainda alguma propaganda que só é acreditada pelos idiotas que vivem fora e são fãs do regime. Mas a democracia não pode deixar ninguém de fora, a opinião de cada um conta, mesmo a das criancinhas. Então, a propaganda é substituída por algo muito mais subtil e poderoso: a indução de condutas e sentimentos de base através das modernas técnicas de manipulação de massas, facilitada pela própria riqueza gerada pelo capitalismo.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Relatos do Inferno (5)


O PSICOPATA ILUSTRADO

A melhoria das condições materiais e morais dos portugueses tem sido comummente associada à educação escolar, essa paixão de um antigo primeiro-ministro e uma prostituta ao serviço de um sem número de “boas intenções”. Segundo esta crença, quanto mais educação tiver uma pessoa mais abastada ela será e também mais apta estará a uma conduta moral adequada. O conhecimento é, sem dúvida, fundamental para a obtenção de riqueza, e já Tales de Mileto teve fama de enriquecer à custa da sua sabedoria, apesar de a usar fundamentalmente para investigar outras coisas. Também em relação à conduta moral, o ignorante pode decorar uns mandamentos ou umas regras morais, mas se não for devidamente instruído (ilustrado) não saberá aplicá-las às situações concretas da vida.

Contudo, será legítimo associar a apreensão de conhecimentos à educação formal e, em especial, à moderna educação de massas? Estudos mostram que boa parte dos milionários nos EUA não possuem diploma universitário (entre alguns exemplos temos Bill Gates, Steve Jobs, Larry Ellison, Michael Dell e, noutras paragens, Li Ka-Shing, tido como o homem mais rico da Ásia). Obviamente que estes milionários possuem muitos licenciados e doutorados a trabalhar para eles, mas se as universidades fornecem conhecimentos específicos úteis para desempenhar certas funções, elas não oferecem o conhecimento necessário para ver o negócio como um todo, malgrado a profusão de cursos de gestão. Em geral, o graduado que é extremamente competente em termos profissionais tende a desenvolver uma mentalidade que é o oposto daquilo que pode tornar um homem rico – a “preguiça” de deixar o dinheiro trabalhar por si –, já que se torna um controlador de todos os aspectos do negócio (ou contenta-se em ser um mero assalariado com fama de génio). O negócio não pode assim se desenvolver por si, mesmo que tenha por base um excelente produto em termos técnicos, porque é essencialmente o trabalho de uma pessoa só e, logo, está preso às limitações do indivíduo humano isolado. Mas se, ao invés de olharmos para o topo onde se encontram os milionários, nos focarmos no que se passa num segundo nível, onde se encontra a elite dirigente empresarial e política, veremos que este patamar é quase integralmente preenchido, ao menos nos EUA onde isto já foi estudado, por aqueles que frequentaram colégios privados que ministram a antiga educação liberal e desprezam os modernos métodos e conteúdos de ensino.

Então para que serve a educação de massas que temos, que criou a geração “mais qualificada de sempre” mas que apenas lhe resta um país com uma das maiores crises da sua História? Se tentarmos traduzir esta educação em resultados económicos não vamos ter muito sucesso. Existe uma tendência, herdada tanto do marxismo como do liberalismo, de equacionar tudo em termos económicos. Contudo, a economia é algo que não existe em si, é apenas um resultado largamente impremeditado de um conjunto de forças em movimento nas sociedades. Pretendo aqui apenas avaliar a nossa educação de massas a partir de alguns efeitos que ela provocou e que qualquer um pode comprovar, usando como termo de comparação o cidadão comum que não teve o privilégio de receber uma educação superior.

O cidadão comum sabe que existe a verdade e a mentira, mas o universitário ultrapassou este dualismo limitador, seja por achar que existem várias verdades, seja por achar que a verdade é apenas uma convenção social ou, então, uma imposição de uma classe dominante e, por isso, passa a ser um dever derrubá-la. Na realidade, o ataque à verdade é apenas um estratagema para mentir impunemente, seja por razões ideológicas ou por mera auto-recreação, já que o adolescente quando começa a dominar a “arte do pensamento” fica fascinado com o poder de manobrar outras pessoas e também com a possibilidade de criar e manter todo o tipo de ilusões que o libertam das frustrações da vida real. Mas o homem instruído não se limita a viver num relativismo absoluto. Apesar de não acreditar em verdade e em mentira, também não abdica totalmente delas. De facto, ele não hesita, quando em confronto com adversários honestos – os idiotas que ainda acreditam em verdade e em mentira –, em acusá-los de falsidade, para no final lhes atirar à cara uma “verdade” que lhe convém. É a estratégia de usar as armas do inimigo, que irá ficar paralisado e confuso, e que tentará depois defender a sua honra racionalmente, sem perceber que está a ser vítima de um esquema de dominação mental. Não tem sentido argumentar racionalmente com quem não acredita na existência da verdade, porque este nunca dará crédito ao mais óbvio dos argumentos, ao mesmo tempo que irá atacar impiedosamente tudo aquilo que seja menos claro na argumentação adversária, mesmo que esteja em causa apenas uma dificuldade linguística. O relativista pode simplesmente desconversar porque conta com a ingenuidade e polidez do seu interlocutor. Então, o homem instruído vencerá o debate pelo cansaço, talvez até fazendo o homem honesto duvidar da existência da verdade, ou então mostrar-se-á enfastiado com a discussão, caso não consiga manobrar o seu adversário, deixando claro que para ele nada foi provado e que aquilo são conversas de pessoas limitadas que não conseguem ver mais além. Só tem sentido enfrentar um adversário que não acredita na verdade se o objectivo for desmascarar a sua tentativa de manipulação psicológica, caso contrário é pura perda de tempo. A destruição da verdade não tem apenas influência ao nível das discussões pessoais, já que isto fez escola em algumas “ciências” e é o fundamento do jornalismo moderno. Não existindo verdade, resta o discurso, pelo que o único objectivo válido é tentar que o nosso discurso se sobreponha ao do outro.

O homem comum acredita na existência do bem e do mal, mas o homem com formação superior considera-se liberto desta prisão que ele considera ser a moral antiquada nem irá submeter-se a sentimentos de culpa. De certa forma, sem a crença na existência da verdade, estão abertas todas as portas do inferno. Contudo, é possível ser céptico sobre a existência da verdade e ainda assim manter elevados padrões morais, ainda que não se consiga justificá-los. Então, a relativização moral é um combate que se trava também de forma independente, e não é raro que, depois da pessoa se ter corrompido, ela vá encontrar no dogma da morte da verdade um alívio para a sua consciência. Tal como o ataque à verdade é um pretexto para mentir com estilo, o ataque ao «bem» não é mais que uma apologia encapotada do mal sem culpas. A moral tradicional é tanto um caminho positivo (fazer o bem) como negativo (evitar o mal). O ataque ao bem não é propriamente a eliminação da moral mas a criação de uma moral alternativa, uma ersatz. Na nova moral, a componente positiva “obriga” a fazer não o que é bom mas aquilo que nos é útil ou que nos dá prazer. A componente negativa diz para evitar aquilo que a lei proíbe (e que é efectivamente fiscalizado, já que não há aqui um respeito pela lei mas apenas temor em relação a ela) e também prescreve que é de bom-tom evitar o choque contra aquilo que o consenso grupal ditou. Por um lado, deixamos de estar sob a mão benevolente de Deus – cujo perdão nos é negado para o todo-sempre –, e passamos a estar sob alçada do Estado, que passa a ter permissão para entrar em todos os domínios humanos e que não conhece o conceito do perdão. Por outro lado, a nova moral permite níveis de devassidão, corrupção e até de atentados contra a vida que seriam inconcebíveis no passado, mas depois apresenta todo o tipo de limitações sem justificação e que podem mudar de um momento para o outro, segundo a volatilidade da produção legislativa ou da sabedoria da “ética grupal”. O indivíduo fica imbecilizado porque «pode fazer tudo» sem que seja recriminado mas parece que, ao mesmo tempo, «não pode fazer nada» sem que haja qualquer justificação para isso. Os antigos moralistas que viviam acusando o próximo e condenando-o ao inferno agora aparecem multiplicados em incontáveis fiscais da nova moralidade (hoje está na moda ensinar até as criancinhas a fiscalizar a conduta dos pais, naturalmente para criar um mundo melhor…), e se já não condenam ninguém ao inferno, tentam que a vida do próximo se transforme num.

O indivíduo comum também acredita no belo e no feio, mas o psicopata ilustrado não se deixa iludir por categorias estéticas tão limitadas, no seu parecer. O presente culto da feiura pode ocorrer em três casos distintos. No primeiro caso começa como uma legítima exploração dos limites de compreensão estética que todos temos, havendo aqui um paralelo com o percurso dos grandes criadores, que sempre chocaram os públicos dos seus tempos. Quem não tem uma sensibilidade estética desenvolvida vai ficar apenas agradado com aquelas coisas mais óbvias, ficando fechado a uma beleza mais profunda e subtil. Contudo, a determinada altura esta abertura pode se transformar noutra coisa: já não estaremos a identificar aquilo que a obra de arte tem de “oculto” mas passamos a projectar nela qualidades inexistentes, ou seja, a experiência deixa de ser estética e passa a ser uma perversão intelectual. Claro que é legítimo intelectualizar sobre uma obra de arte, mas aqui a obra passa apenas a ser mero pretexto para um jogo de enganos. A quase totalidade da arte moderna consiste na produção de um objecto por um cretino que conta com a apreciação de um bando de imbecis. Claro que o objecto em si não é totalmente indiferente, pelo menos no início da arte moderna ele tinha de ter alguma ligação à verdadeira arte, mas depois foi se afastando cada vez mais, até presentemente ter apenas um resquício homeopático da verdadeira arte. Apenas interessa que o objecto seja um símbolo do (e para o) próprio mecanismo mental, espelhando a sua feiura estrutural. O segundo caso é o uso da feiura como objecto de engenharia social, nomeadamente na arquitectura moderna e no design industrial, tratando-se de um mecanismo conhecido de depressão da inteligência. Finalmente, existe a o culto da feiura por simples incapacidade em suportar a beleza. Quando se renega o Bem e a Verdade, o Belo, que completaria a trindade, torna-se ofensivo, como se fosse um dedo acusador sinalizando uma personalidade deturpada. Então, o grotesco, o hediondo harmoniza-se perfeitamente com as personalidades falsas e más. O culto pelo cinema do psicopata genial, amante de música erudita, é apenas uma sedução, pois aquela personagem não pertence ao nosso mundo, é apenas um ideal mefistofélico.

Todas estas coisas naturalmente que se alimentam umas às outras, criando uma quarta distinção entre o homem instruído e indivíduo comum: apenas este último acredita ainda na existência de realidade. Somente o homem altamente instruído pode viver num mundo criado mentalmente, já que isso exige um esforço cognitivo formidável. O sábio de hoje já não quer saber como as coisas são mas apenas naquilo que podem se transformar, e quando o estudioso investiga o estado presente de coisas é apenas em vista daquilo que estas podem vir a ser por via da acção humana.

Será plausível que a universidade se tenha transformado numa máquina de criação de sujeitos alienados, falsos e maléficos? Alguns cursos em ciências sociais visam de facto este objectivo e a sua disseminação pela sociedade. Mas mesmo os frequentadores dos cursos clássicos parecem vir a desenvolver o mesmo tipo de mentalidade. Não é necessário que as universidades sejam máquinas de lavagem ao cérebro, basta fornecerem algumas ferramentas mentais evoluídas junto a um corte obrigatório entre pensamento e realidade. Depois, cada indivíduo vai se barbarizando pela simples contaminação de ideias circulantes, eivadas de mentalidade revolucionária, trabalhadas a partir das deficiências estruturais adquiridas na universidade. Isto já consigna um esforço enorme, e por isso poucos vão querer abdicar dos frutos deste trabalho mesmo se lhes mostrarem que ele consiste apenas num processo de emburrecimento elegante. E quanto mais tempo o indivíduo estudou dentro da academia, mais ele fica enredado nesta teia de cretinismo, pois agora já não é uma mera questão de conhecimento, já envolve uma profissão, um estatuto social, um grupo de amizades e assim por diante. Por isso, tantos ilustrados cheios de títulos universitários aparecem nas tribunas apenas para proferir os disparates mais bestializantes ou então limitam-se a explicar por frases rebuscadas aquilo que qualquer taxista diria com meia palavra.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Relatos do Inferno (4)


TRABALHO E IRRELEVÂNCIA

Toda a discussão sobre o trabalho anda à volta de abstracções sociológicas, económicas ou legais. Tudo isto é legítimo se o próprio fenómeno em si já está bem descrito, caso contrário as discussões irão se materializar em valores, leis e métodos de trabalho que irão alienar as pessoas, sempre instigadas a melhorar a sua produtividade quando elas não fazem, literalmente, a mínima ideia do que andam a fazer. Não é lugar aqui para fazer uma descrição fenomenológica do «trabalho», e apenas pretendo salientar alguns aspectos a seu respeito relacionados com a vivência de cada um de nós.

Do ponto de vista do trabalhador, tem sentido falar em 3 fases distintas, não validando isto a teoria de Alvin Toffler das “três ondas”, pela qual ele tenta explicar quase tudo o que acontece no mundo. O simplismo de Toffler torna-o apto à mentalidade pragmatista americana, por lhe ser apresentada uma explicação fácil por agregados da qual se podem derivar uma série de normas e indicações práticas para o indivíduo. Algum acolhimento que Toffler recebe na Europa penso que advém de um equívoco, já que o conceito das “ondas” ainda produz ressonância no historicismo positivista ou marxista, ao mesmo tempo que a simplificação do indivíduo, que o americano vê essencialmente como um procedimento de efeitos práticos, adapta-se ao europeu na sua progressiva dissolução da personalidade. Mas o ponto que quero salientar não visa o abstracionismo/pragmatismo/historicismo e sim entender as implicações, em termos de personalidade humana, que a evolução do trabalho provocou, sem ter a pretensão de achar aqui uma chave explicativa única.

Há desde logo uma questão prévia, porque as três formas de trabalho que irei abordar (agrícola, industrial e pós-industrial) remetem todas para a existência da sociedade organizada. Antes disto, não podemos propriamente falar em trabalho, pois existem apenas tarefas necessárias à sobrevivência dos grupos – obtenção de alimentos, construção de habitações, protecção do grupo, cura física e espiritual –, mas nada disto tem a forma de um contrato nem pode conduzir a distinções de classe. Há um grau de determinismo naquilo que o indivíduo vai ser neste contexto, e se nasceu homem ou mulher, saudável ou doente, forte ou carismático, isso conduzirá a uma função. E isto não é bom nem mau, é a única coisa concebível, pois para o primitivo, de certa forma, só a sua tribo faz parte do domínio do ser. Na realidade, aquilo que um indivíduo faz não é muito diferente do que faz qualquer outro de faixa etária semelhante, e grande parte das actividades são grupais. Para nós, a imagem da tribo primitiva tem algo de paradoxal, ao mesmo tempo vemos ali uma liberdade da ausência de constrangimentos sociais mas, por outro lado, há o determinismo tribal que limita o indivíduo a ser apenas uma coisa e nada mais ele pode sequer conceber.

Então, quando a agricultura se estabelece, significa isto a libertação do determinismo tribal, com a abertura para uma miríade de possibilidades de acção e de concepção do mundo, ou é a inauguração de uma era de servidão em que vivemos até hoje? Na verdade as duas coisas ocorrem, mas para nós é hoje impossível voltar ao estado primitivo. Aqueles que fogem das cidades e vão viver em condições rudimentares para o campo estão apenas fingindo ser primitivos, porque a sua mentalidade é totalmente «civilizada», não tem a ingenuidade, as limitações nem a «pureza» daquela do primitivo. Até o mais ignorante dos camponeses da aldeia mais isolada é cosmopolita comparado com qualquer membro de uma tribo primitiva, porque ele sabe que o mundo não se restringe à sua aldeia e que o seu trabalho, ainda que largamente de subsistência, produz algo que pode ir parar a outras mãos, possivelmente até de pessoas que ele desconhece.

Mas isto já é adiantar muito a história, já que certamente que os primeiros agricultores ainda eram membros da tribo, mas algo já tinha mudado. A agricultura, mais do que fixar as populações num certo lugar, fez com que alguns homens entendessem que podiam manipular o curso do mundo. Agora, o cenário de actuação não era apenas a natureza imprevisível, onde o homem apenas podia tentar se adaptar da melhor forma possível. O homem passava a poder introduzir a sua interferência e assim também ter um domínio maior o seu próprio futuro. Contudo, nem todos os homens possuíam entendimento idêntico sobre o processo, pelo que o domínio da natureza iria, mais tarde ou mais cedo, traduzir-se num domínio de uns homens sobre outros homens. Quando hoje falamos em sociedade do conhecimento, claramente não fazemos a mínima ideia do que estamos a falar.

De certa forma, o início do trabalho organizado é uma “perda da inocência” mas também a porta para o desenvolvimento da consciência. O trabalhador agrícola, livre ou escravo, tem uma ligação muito próxima com o produto. Este está bastante ligado ao meio ambiente, que é o mesmo para todos e assim a agricultura era um elo comum a toda a sociedade. Até ao advento da industrialização, toda a sociedade tinha um cunho agrícola, e mesmo quem desempenhava outras funções tinha também um pedaço de terra cultivado, além de que a própria industria artesanal dependia daquilo que a agricultura podia suportar, e sabemos como foram dramáticos alguns maus anos agrícolas.  

Muitas coisas alteram-se com a industrialização, não surgindo apenas um trabalho fisicamente diferente, num ambiente agora fechado e geralmente citadino. O trabalhador já não lida com o produto final como um todo, ele corta umas placas de metal, opera uma determinada tecedeira mecânica, pinta determinada peça e assim por diante, dentro das exigências da divisão do trabalho. Na fábrica, ele está isolado do meio ambiente, não tem geralmente contacto com o produto final acabado, se é que alguma vez chega a vê-lo, e está mesmo isolado na sua função, cujo contributo para o todo se torna cada vez mais difícil de vislumbrar. Durante horas seguidas repete as mesmas tarefas mecânicas, o que não ajuda nada à sanidade mental. Mas há outros factores que surgem com o trabalho industrial. Enquanto que na agricultura o patrão trabalha frequentemente ao lado do empregado (e era normal o escravo grego ou romano trabalhar ao lado do seu senhor) e mesmo quando não o faz está igualmente dependente dos ditames do tempo, agora o dono da fábrica vive num mundo à parte, que é infinitamente misterioso para o trabalhador. Aqui os socialistas surgem para dar aos trabalhadores uma explicação sobre como funciona a máquina social, que resulta ao menos como terapia contra a disrupção mental provocada pela mecanização. Mas mesmo neste cenário, existe alguma noção do que se anda a fazer, e todos sabem quantos carros, panelas ou frigoríficos a fábrica produziu.

Quando chegamos à sociedade pós-industrial – sociedade dos serviços, do trabalho intelectual, da informação, etc. –, inicialmente parece que há uma subida de patamar, pois elimina-se o trabalho físico repetitivo e aposta-se no desenvolvimento das faculdades cognitivas, exigindo-se qualificações cada vez maiores. Contudo, algo nesta imagem parece não bater certo com a realidade. O trabalho no escritório parece ser fisicamente confortável, mas ao fim de poucos anos as pessoas mostram um envelhecimento precoce, apresentam má postura, surgem lesões nos braços e mãos por uso do computador, começam a dormir mal, aumentam os problemas respiratórios, começam a ver cada vez pior devido à má iluminação e aos monitores dos computadores, e assim por diante, considerando apenas os problemas derivados das condições materiais. A promessa do trabalho intelectual também fica, em geral, por cumprir, porque passada uma fase de aquisição de alguns conhecimentos, segue-se uma rotina monótona e com poucas novidades, que podia ser desempenhada por qualquer idiota. Pior que isso, cada vez menos as pessoas sabem para que serve o seu trabalho. Uma empresa pode ter milhares de pessoas e o seu produto final ser apenas um componente para outro produto e assim por diante, e há mesmo muitas companhias que nem sequer produzem alguma coisa tangível. Internamente, as chefias dizem ser importante fazer isto e aquilo, para uns meses depois darem o dito pelo não dito e nem sequer ser dada qualquer explicação. Estimo que numa empresa com alguns milhares de pessoas sejam elaborados centenas de relatórios mensais que ninguém lê e feitas milhares de reuniões cujas conclusões todos irão esquecer. E quando o trabalho se torna assim irrelevante, começa a sobrar tempo e engenho para dedicar à sabotagem de colegas, à fuga às responsabilidades, à auto-promoção à custa de terceiros e a todo o tipo de actividades paralelas. E afinal, quem manda na empresa? As chefias multiplicam-se, mas a própria administração depende dos accionistas, que podem ter atrás grupos de várias partes do mundo, que a qualquer altura podem decidir ir para outras paragens.

Então, o trabalho moderno tornou-se numa estadia no hospício (e estou a falar apenas nas situações “normais”, sem entrar em dificuldades de toda a ordem que ainda se acrescentam na realidade) precisamente quando o grande desígnio de vida para o homem moderno passou a ser a realização profissional, substituindo a realização espiritual. Obviamente que esta substituição é um embuste destinado a criar um novo tipo de homem dócil à sociedade industrial e pós-industrial. Mas afinal, o que consiste essa tal de realização profissional? Se é um objectivo de vida, então só pode estar associada à melhoria significativa das condições de vida e não pode ser apenas consistir em fazer bem o trabalho e receber umas pancadinhas nas costas. Claro que há sempre aqueles que conseguem estar no centro da acção e subir vertiginosamente na hierarquia, e que depois vão contar o seu percurso aos iludidos que acham que aquilo está disponível para qualquer um que tenha vontade suficiente. Mas basta pensar que os lugares de topo sempre serão reduzidos para concluir que o objectivo da realização profissional produz apenas infelicidade ou apatia, no caso dos cínicos, que é naquilo que quase todos inevitavelmente se irão transformar.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Relatos do Inferno (3)


ENCENAÇÃO DE DEMOCRACIA

É comum o desalento em relação à democracia, não tanto considerada em abstracto mas sobre aquela que realmente temos. Então, a democracia em si é vista como uma coisa boa, associada à liberdade, ao progresso, à prosperidade, ao combate às injustiças e assim por diante. Se tudo isto não se cumpre é porque a nossa democracia não é autêntica, e logo nos apressamos a dar exemplos, a respeito de matérias avulsas, onde democracias estrangeiras mostram os seus galões. Suspiramos e concluímos, um pouco consternados mas também vaidosos por acharmos que descobrimos uma grande verdade, que não temos uma verdadeira democracia, temos apenas uma encenação de democracia.

Há algo de esquizofrénico nestas patéticas lamentações. Os desiludidos com a democracia nunca param para questionar o que a democracia é em si – e em seguida deveriam averiguar as possibilidades de termos um funcionamento razoável de tal sistema –, limitam-se apenas a identificar a democracia pelas qualidades que os seus apologistas propagandeiam. O mesmo se passa com o socialismo, que nunca é avaliado por aquilo que ele é – um processo de concentração do poder nas mãos de uma mesma classe – mas pelas qualidades que lhe são atribuídas, criticadas por uns, veneradas por outros. Ademais, como se tratam de qualidades e não da essência do fenómeno, cada um pode escolher aquelas que melhor servem o seu propósito, de prosélito ou de detrator, e assim o socialismo pode ser óptimo ou terrível por abolir a propriedade privada ou por dar a cada um conforme as suas necessidades e exigir a cada segundo as suas possibilidades, pode abolir as classes sociais ou por fazer de um mero varredor de rua um Miguel Ângelo ou um Aristóteles, por abolir o Estado ou por criar um Estado que tudo engloba, por ser democrático ou por ser anti-democrático, por dar o poder ao povo ou por tirar toda a liberdade ao povo, etc. Este mero elencar de qualidades mostra que a discussão a respeito do socialismo não é séria e limita-se a um disputa retórica.

Voltando à democracia, a sua essência é, supostamente, a distribuição do poder por várias entidades independentes umas das outras. Em geral isto é esquecido mas, como num processo neurótico, é uma crença sempre presente. Em parte, creio que as acusações de que a democracia se tornou numa farsa derivam de ser notório de que não há uma verdadeira separação de poderes mas um bloco unitário que ocupa de forma tentacular as várias sedes do poder. Contudo, a discussão transmutasse “alquimicamente” para as alegadas qualidades da democracia, e começa uma cacofonia que mete crescimento económico, desigualdades sociais, direitos e liberdades, subsídios e estímulos, privatizações e regulamentações, e assim por diante. Não que cada um destes itens não seja merecedor de discussão, mas cada um acha que a democracia é, obviamente, um conjunto de qualidades que ele mesmo escolheu de forma aleatória e doseadas conforme o gosto do momento, e acha inacreditável que se viva em democracia e estas coisas não existam por magia.

Mas o que é tudo isto senão uma encenação? Todo o exercício do poder organizado envolve algum tipo de encenação, por vezes mesmo alguns rituais, mas na democracia isto não é um mero condimento estético. Não é difícil imaginar a democracia grega no seu aspecto teatral – e creio que está ainda por avaliar o quanto o teatro grego deu ao processo civilizacional –, o que é uma exigência do modelo directo. Contudo, a criação e manutenção de ilusões na Grécia Antiga era muito limitada, além de que o controlo dos factores numa democracia directa ser muito precário. Quando a democracia se tornou representativa, a encenação tornou-se, digo-o eu, numa sua característica essencial, embora não reconhecida formalmente. É também uma época em que o mundo é visto como um teatro, e como não iria isto invadir os parlamentos, que se tornaram nos palcos por excelência?
  
Ora, quanto mais mediática se torna a sociedade, menos as discussões parlamentares visam os interlocutores oficiais – ou seja, os políticos já não falam realmente entre si –, mas encenam papéis tendo em visto um espectador padrão. O jornalismo adoptou mesmo a figura do “idiota padrão” para saber se o que publica tem eficácia comercial. Em geral, até mesmo as discussões pessoais sobre assuntos públicos “democratizaram-se”, ou seja, a comunicação verdadeiramente humana foi substituída por uma encenação a ser aplaudida pelos idiotas do mundo.

Isto tem consequências absolutamente notáveis. O debate democrático chegou com a promessa de fazer luz sobre as questões, o que podemos traduzir como uma passagem de um mero discurso retórico, ao nível da verosimilhança, para a probabilidade elevada do discurso da dialéctica clássica. Creio ser possível demonstrar que esta passagem jamais pode ocorrer como fenómeno colectivo mas apenas se dá na consciência individual. Claro que o mesmo “insight” pode ocorrer a vários indivíduos quase que simultaneamente, mas trata-se de um evento extremamente raro, que depende de uma coincidência de certos factores: as várias pessoas envolvidas têm que ter níveis idênticos de atenção, compreensão, conhecimento, inteligência, etc. Isto acontece em discussões puramente técnicas, onde as pessoas envolvidas foram treinadas precisamente para chegar a um estado cognitivo adequado a este tipo de “insights”. Contudo, as questões públicas não podem ser delimitadas da mesma forma que as questões técnicas, onde cada pessoa já conhece de antemão todas as variáveis envolvidas. É tão provável duas pessoas perceberem as mesmas coisas numa discussão pública como dois indivíduos terem o mesmo sonho com todos os detalhes.

Mas como é possível ver tantos militantes convictos seguindo um líder político se nenhum deles entende o mesmo que o outro ao lado? Porque nenhum deles está apostando na clave do conhecimento, simplesmente deixam-se ser seduzidos. E não existe fascínio tão grande como aquele que o bebé sente pelos pais, e isto é uma pista que indica que, também em democracia, os políticos representam as pessoas tal como os pais representam os filhos menores. Em termos cognitivos, o debate democrático não é uma passagem da retórica à dialéctica mas uma regressão da retórica à poesia e ao mito. Ou seja, é uma exploração do meramente possível, onde tudo é permitido e para onde todos os sonhos podem confluir. O fenómeno não tem que ser “puro”, já que o militante que se deixa embalar no sonho do político pode, paralelamente, estar elaborando complexas justificações, que depois o iludem de ter feito uma escolha racional e não uma baseada em puras emoções infantis, como de facto ocorreu. Da mesma forma, aqueles que procuram uma ascensão rumo à verdade, pela dialéctica e pela lógica, podem e devem colorir esta pesquisa de retórica e poesia, que são os garantes de inserção no mundo real via imaginação. Os quatro discursos não são modalidades separadas mas fazem parte de uma potência única, como demonstrou o filósofo Olavo de Carvalho, mas há que saber qual é o grau de credibilidade que cada um possui.

Que implicações tem desta democracia representativa encenada? Esta democracia veio junto a outras novidades no pacote modernista iluminista, que assegurava que iria tirar as massas da obscuridão e colocá-las no caminho da racionalidade. O desenvolvimento de certas ciências e da tecnologia parecia confirmar isto, mas afinal tratam-se apenas de habilidades largamente mecanizáveis e que nada ensinam sobre como tomar opções num mundo com um número indefinido de variáveis. Para estas questões está reservado o debate democrático, no qual o cidadão comum entra sem perceber, achando que o grupo vai transportá-lo para um debate mais racional, quando na realidade apenas o faz mergulhar num teatro de ilusões, em que a verdade é confundida com algum tipo de emoção grupal. Ainda aqui continuam existindo hipóteses em conflito, entenda-se, mas a opção por uma ou por outra não está nos méritos próprios mas apenas na capacidade de adesão emocional que os seus proponentes conseguem desencadear. Naturalmente que isto tem conduzido a todo o tipo de decisões aberrantes e para evitá-las de nada serve desmontá-las racionalmente, apenas é possível fazê-lo criando uma sensação de mal-estar em seu redor.

A democracia como encenação trouxe ainda outra consequência que não está apenas ao nível da discussão pública com vista à tomada de decisões. A própria discussão privada foi mimetizando a discussão pública, fazendo de cada pessoa um actor improvisado. Assim, todos se transformaram em fiscais da democracia mesmo em meras conversas de café, onde só é de bom-tom falar de certos temas e as maneiras apropriadas, sempre de acordo com o padrão democrático veiculado pelos meios de comunicação social. Estes simulam haver um poder e uma oposição, dando por isso a ilusão de que tudo o que é razoável já estar representado, pelo que aqueles que se atrevem a sair destas pautas caem numa espécie de não-ser merecedor do mais vívido desprezo e a mais veemente censura. Isto quer dizer que a famosa liberdade de expressão se tornou na obrigação de papaguear algo que algum idiota na televisão já disse, ou então mostrar um silêncio complacente. Qualquer um pode testar isto e afirmar junto aos “amigos” alguma ideia que não tenha ressonância em alguma posição mediática, ainda que seja de algum grupo minoritário, e verá como o olham com horror, com se lhe tivesse nascido um olho na testa.

Se a democracia representativa, tal como se veio a consolidar, conduziu a um desprezo total por aquilo que de mais próprio tem o ser humano – a faculdade de ser uma causa livre –, podemos ao menos dizer que ela, em termos sociais, terminou com as oligarquias e deu o poder ao povo? Até agora vimos que o único poder que o povo ganhou foi o de cada indivíduo poder infernizar a vida do próximo, e isto não por maldade ou mesquinharia mas em nome da própria democracia. Mas também não é difícil perceber que a democracia representativa encenada conduz a um formidável aumento do poder dos oligarcas, e o sufrágio universal não esconde o facto de que os cidadãos apenas podem votar em soluções já trabalhadas de antemão. Numa democracia directa, um único indivíduo pode ascender na hierarquia por mérito próprio, e um grupo de pessoas relativamente modestas pode se associar adquirindo algum destaque, ao mesmo tempo que nenhum grupo terá grandes meios de se impor pela força se não tiver méritos reconhecidos pelos outros. Podem-se conjecturar muitas possibilidades num regime primitivo assim, mas o mesmo não se passa com as democracias modernas. Nestas, alguém que queira atingir o poder sabe que a única solução é associar-se a um grupo que domine partidos, comunicação social, maçonaria, etc. Um Zé Ninguém até pode chegar a Presidente da República, e nada mais eloquente que o caso actual, mas não foi ele que subiu a hierarquia por mérito próprio, simplesmente foi colocado lá por poderes infinitamente acima dele. Só há duas formas de subir nesta democracia: ou pela sabujice, percebendo em cada altura onde está o poder e fazer tudo o que ele pede; ou ser um idiota completo que, por uma improvável sequência de acasos, se torne na figura ideal para as necessidades do momento.

Claro que podemos admitir que tudo se passa por evolução espontânea; que o advento da democracia diminuiu o instinto de poder do ser humano; que os poderosos abdicaram do poder de manobra nos bastidores e agora apenas querem jogar golfe e ter umas amantes de luxo. É esta a imagem que se quer dar, que os partidos são caóticos, que os grandes empresários e os banqueiros só querem saber dos seus lucros e não ligam para o país, que os intelectuais vivem isolados nas suas torres de marfim. Por isso tanto se fala de consenso, que é preciso ter uma ideia para o país, que temos de planear o futuro a longo prazo e assim por diante. Parece má demais a ideia de que o colapso de Portugal tenha sido planeado pelas suas elites – só quem acredita em teorias da conspiração pode ter semelhantes ideias, avisa o idiota que aprendeu ontem a limpar o rabo com papel higiénico –, tem que ser outra coisa porque não é isso que dizem os jornais, não é sobre isso que falam os comentadores, não é isso que escrevem os académicos. A alternativa é considerar que os nossos homens mais sábios não passam de uns cretinos e que as elites são compostas de psicopatas? Quem tente, mesmo que seja por cinco minutos, olhar para a nossa era com os olhos de qualquer homem sensato de qualquer era passada de qualquer lugar não deixará de confirmar esta última hipótese. A única coisa que nos impede de reconhecermos isto é o provincianismo temporal, que leva a tomarmos a nossa situação actual, seja qual for, como padrão de referência inquestionável, e a partir dela podemos medir tudo o resto depreciativamente.

Dito isto, resta saber se a democracia moderna é algo monstruoso por natureza. Não tenho ainda uma resposta para isto, mas pretendo investigar até ter uma resposta satisfatória. Como a democracia convive com uma série de outros factores, alguns antagónicos a ela, é difícil dizer onde está o verdadeiro problema. Contudo, podemos fazer um enquadramento prévio. A democracia moderna revelou-se fraco impedimento contra regimes totalitários, como demonstra a eleição de Hitler, e mesmo mantendo a democracia formalmente, ela mesma pode ser um regime totalitário, que é o caminho seguido por quase todas as democracias modernas. Então, ou a democracia tem ela mesma um fundo totalitário – e há algumas coisas que indiciam isto –, ou ela é irrelevante e deixa-se contaminar por todas as tendências que nela se agitam, deixando de ser um teatro onde as ideias mais conflituantes podem actuar para ser ela mesma uma personagem que renega a sua natureza.