segunda-feira, 6 de maio de 2013

Relatos do Inferno (3)


ENCENAÇÃO DE DEMOCRACIA

É comum o desalento em relação à democracia, não tanto considerada em abstracto mas sobre aquela que realmente temos. Então, a democracia em si é vista como uma coisa boa, associada à liberdade, ao progresso, à prosperidade, ao combate às injustiças e assim por diante. Se tudo isto não se cumpre é porque a nossa democracia não é autêntica, e logo nos apressamos a dar exemplos, a respeito de matérias avulsas, onde democracias estrangeiras mostram os seus galões. Suspiramos e concluímos, um pouco consternados mas também vaidosos por acharmos que descobrimos uma grande verdade, que não temos uma verdadeira democracia, temos apenas uma encenação de democracia.

Há algo de esquizofrénico nestas patéticas lamentações. Os desiludidos com a democracia nunca param para questionar o que a democracia é em si – e em seguida deveriam averiguar as possibilidades de termos um funcionamento razoável de tal sistema –, limitam-se apenas a identificar a democracia pelas qualidades que os seus apologistas propagandeiam. O mesmo se passa com o socialismo, que nunca é avaliado por aquilo que ele é – um processo de concentração do poder nas mãos de uma mesma classe – mas pelas qualidades que lhe são atribuídas, criticadas por uns, veneradas por outros. Ademais, como se tratam de qualidades e não da essência do fenómeno, cada um pode escolher aquelas que melhor servem o seu propósito, de prosélito ou de detrator, e assim o socialismo pode ser óptimo ou terrível por abolir a propriedade privada ou por dar a cada um conforme as suas necessidades e exigir a cada segundo as suas possibilidades, pode abolir as classes sociais ou por fazer de um mero varredor de rua um Miguel Ângelo ou um Aristóteles, por abolir o Estado ou por criar um Estado que tudo engloba, por ser democrático ou por ser anti-democrático, por dar o poder ao povo ou por tirar toda a liberdade ao povo, etc. Este mero elencar de qualidades mostra que a discussão a respeito do socialismo não é séria e limita-se a um disputa retórica.

Voltando à democracia, a sua essência é, supostamente, a distribuição do poder por várias entidades independentes umas das outras. Em geral isto é esquecido mas, como num processo neurótico, é uma crença sempre presente. Em parte, creio que as acusações de que a democracia se tornou numa farsa derivam de ser notório de que não há uma verdadeira separação de poderes mas um bloco unitário que ocupa de forma tentacular as várias sedes do poder. Contudo, a discussão transmutasse “alquimicamente” para as alegadas qualidades da democracia, e começa uma cacofonia que mete crescimento económico, desigualdades sociais, direitos e liberdades, subsídios e estímulos, privatizações e regulamentações, e assim por diante. Não que cada um destes itens não seja merecedor de discussão, mas cada um acha que a democracia é, obviamente, um conjunto de qualidades que ele mesmo escolheu de forma aleatória e doseadas conforme o gosto do momento, e acha inacreditável que se viva em democracia e estas coisas não existam por magia.

Mas o que é tudo isto senão uma encenação? Todo o exercício do poder organizado envolve algum tipo de encenação, por vezes mesmo alguns rituais, mas na democracia isto não é um mero condimento estético. Não é difícil imaginar a democracia grega no seu aspecto teatral – e creio que está ainda por avaliar o quanto o teatro grego deu ao processo civilizacional –, o que é uma exigência do modelo directo. Contudo, a criação e manutenção de ilusões na Grécia Antiga era muito limitada, além de que o controlo dos factores numa democracia directa ser muito precário. Quando a democracia se tornou representativa, a encenação tornou-se, digo-o eu, numa sua característica essencial, embora não reconhecida formalmente. É também uma época em que o mundo é visto como um teatro, e como não iria isto invadir os parlamentos, que se tornaram nos palcos por excelência?
  
Ora, quanto mais mediática se torna a sociedade, menos as discussões parlamentares visam os interlocutores oficiais – ou seja, os políticos já não falam realmente entre si –, mas encenam papéis tendo em visto um espectador padrão. O jornalismo adoptou mesmo a figura do “idiota padrão” para saber se o que publica tem eficácia comercial. Em geral, até mesmo as discussões pessoais sobre assuntos públicos “democratizaram-se”, ou seja, a comunicação verdadeiramente humana foi substituída por uma encenação a ser aplaudida pelos idiotas do mundo.

Isto tem consequências absolutamente notáveis. O debate democrático chegou com a promessa de fazer luz sobre as questões, o que podemos traduzir como uma passagem de um mero discurso retórico, ao nível da verosimilhança, para a probabilidade elevada do discurso da dialéctica clássica. Creio ser possível demonstrar que esta passagem jamais pode ocorrer como fenómeno colectivo mas apenas se dá na consciência individual. Claro que o mesmo “insight” pode ocorrer a vários indivíduos quase que simultaneamente, mas trata-se de um evento extremamente raro, que depende de uma coincidência de certos factores: as várias pessoas envolvidas têm que ter níveis idênticos de atenção, compreensão, conhecimento, inteligência, etc. Isto acontece em discussões puramente técnicas, onde as pessoas envolvidas foram treinadas precisamente para chegar a um estado cognitivo adequado a este tipo de “insights”. Contudo, as questões públicas não podem ser delimitadas da mesma forma que as questões técnicas, onde cada pessoa já conhece de antemão todas as variáveis envolvidas. É tão provável duas pessoas perceberem as mesmas coisas numa discussão pública como dois indivíduos terem o mesmo sonho com todos os detalhes.

Mas como é possível ver tantos militantes convictos seguindo um líder político se nenhum deles entende o mesmo que o outro ao lado? Porque nenhum deles está apostando na clave do conhecimento, simplesmente deixam-se ser seduzidos. E não existe fascínio tão grande como aquele que o bebé sente pelos pais, e isto é uma pista que indica que, também em democracia, os políticos representam as pessoas tal como os pais representam os filhos menores. Em termos cognitivos, o debate democrático não é uma passagem da retórica à dialéctica mas uma regressão da retórica à poesia e ao mito. Ou seja, é uma exploração do meramente possível, onde tudo é permitido e para onde todos os sonhos podem confluir. O fenómeno não tem que ser “puro”, já que o militante que se deixa embalar no sonho do político pode, paralelamente, estar elaborando complexas justificações, que depois o iludem de ter feito uma escolha racional e não uma baseada em puras emoções infantis, como de facto ocorreu. Da mesma forma, aqueles que procuram uma ascensão rumo à verdade, pela dialéctica e pela lógica, podem e devem colorir esta pesquisa de retórica e poesia, que são os garantes de inserção no mundo real via imaginação. Os quatro discursos não são modalidades separadas mas fazem parte de uma potência única, como demonstrou o filósofo Olavo de Carvalho, mas há que saber qual é o grau de credibilidade que cada um possui.

Que implicações tem desta democracia representativa encenada? Esta democracia veio junto a outras novidades no pacote modernista iluminista, que assegurava que iria tirar as massas da obscuridão e colocá-las no caminho da racionalidade. O desenvolvimento de certas ciências e da tecnologia parecia confirmar isto, mas afinal tratam-se apenas de habilidades largamente mecanizáveis e que nada ensinam sobre como tomar opções num mundo com um número indefinido de variáveis. Para estas questões está reservado o debate democrático, no qual o cidadão comum entra sem perceber, achando que o grupo vai transportá-lo para um debate mais racional, quando na realidade apenas o faz mergulhar num teatro de ilusões, em que a verdade é confundida com algum tipo de emoção grupal. Ainda aqui continuam existindo hipóteses em conflito, entenda-se, mas a opção por uma ou por outra não está nos méritos próprios mas apenas na capacidade de adesão emocional que os seus proponentes conseguem desencadear. Naturalmente que isto tem conduzido a todo o tipo de decisões aberrantes e para evitá-las de nada serve desmontá-las racionalmente, apenas é possível fazê-lo criando uma sensação de mal-estar em seu redor.

A democracia como encenação trouxe ainda outra consequência que não está apenas ao nível da discussão pública com vista à tomada de decisões. A própria discussão privada foi mimetizando a discussão pública, fazendo de cada pessoa um actor improvisado. Assim, todos se transformaram em fiscais da democracia mesmo em meras conversas de café, onde só é de bom-tom falar de certos temas e as maneiras apropriadas, sempre de acordo com o padrão democrático veiculado pelos meios de comunicação social. Estes simulam haver um poder e uma oposição, dando por isso a ilusão de que tudo o que é razoável já estar representado, pelo que aqueles que se atrevem a sair destas pautas caem numa espécie de não-ser merecedor do mais vívido desprezo e a mais veemente censura. Isto quer dizer que a famosa liberdade de expressão se tornou na obrigação de papaguear algo que algum idiota na televisão já disse, ou então mostrar um silêncio complacente. Qualquer um pode testar isto e afirmar junto aos “amigos” alguma ideia que não tenha ressonância em alguma posição mediática, ainda que seja de algum grupo minoritário, e verá como o olham com horror, com se lhe tivesse nascido um olho na testa.

Se a democracia representativa, tal como se veio a consolidar, conduziu a um desprezo total por aquilo que de mais próprio tem o ser humano – a faculdade de ser uma causa livre –, podemos ao menos dizer que ela, em termos sociais, terminou com as oligarquias e deu o poder ao povo? Até agora vimos que o único poder que o povo ganhou foi o de cada indivíduo poder infernizar a vida do próximo, e isto não por maldade ou mesquinharia mas em nome da própria democracia. Mas também não é difícil perceber que a democracia representativa encenada conduz a um formidável aumento do poder dos oligarcas, e o sufrágio universal não esconde o facto de que os cidadãos apenas podem votar em soluções já trabalhadas de antemão. Numa democracia directa, um único indivíduo pode ascender na hierarquia por mérito próprio, e um grupo de pessoas relativamente modestas pode se associar adquirindo algum destaque, ao mesmo tempo que nenhum grupo terá grandes meios de se impor pela força se não tiver méritos reconhecidos pelos outros. Podem-se conjecturar muitas possibilidades num regime primitivo assim, mas o mesmo não se passa com as democracias modernas. Nestas, alguém que queira atingir o poder sabe que a única solução é associar-se a um grupo que domine partidos, comunicação social, maçonaria, etc. Um Zé Ninguém até pode chegar a Presidente da República, e nada mais eloquente que o caso actual, mas não foi ele que subiu a hierarquia por mérito próprio, simplesmente foi colocado lá por poderes infinitamente acima dele. Só há duas formas de subir nesta democracia: ou pela sabujice, percebendo em cada altura onde está o poder e fazer tudo o que ele pede; ou ser um idiota completo que, por uma improvável sequência de acasos, se torne na figura ideal para as necessidades do momento.

Claro que podemos admitir que tudo se passa por evolução espontânea; que o advento da democracia diminuiu o instinto de poder do ser humano; que os poderosos abdicaram do poder de manobra nos bastidores e agora apenas querem jogar golfe e ter umas amantes de luxo. É esta a imagem que se quer dar, que os partidos são caóticos, que os grandes empresários e os banqueiros só querem saber dos seus lucros e não ligam para o país, que os intelectuais vivem isolados nas suas torres de marfim. Por isso tanto se fala de consenso, que é preciso ter uma ideia para o país, que temos de planear o futuro a longo prazo e assim por diante. Parece má demais a ideia de que o colapso de Portugal tenha sido planeado pelas suas elites – só quem acredita em teorias da conspiração pode ter semelhantes ideias, avisa o idiota que aprendeu ontem a limpar o rabo com papel higiénico –, tem que ser outra coisa porque não é isso que dizem os jornais, não é sobre isso que falam os comentadores, não é isso que escrevem os académicos. A alternativa é considerar que os nossos homens mais sábios não passam de uns cretinos e que as elites são compostas de psicopatas? Quem tente, mesmo que seja por cinco minutos, olhar para a nossa era com os olhos de qualquer homem sensato de qualquer era passada de qualquer lugar não deixará de confirmar esta última hipótese. A única coisa que nos impede de reconhecermos isto é o provincianismo temporal, que leva a tomarmos a nossa situação actual, seja qual for, como padrão de referência inquestionável, e a partir dela podemos medir tudo o resto depreciativamente.

Dito isto, resta saber se a democracia moderna é algo monstruoso por natureza. Não tenho ainda uma resposta para isto, mas pretendo investigar até ter uma resposta satisfatória. Como a democracia convive com uma série de outros factores, alguns antagónicos a ela, é difícil dizer onde está o verdadeiro problema. Contudo, podemos fazer um enquadramento prévio. A democracia moderna revelou-se fraco impedimento contra regimes totalitários, como demonstra a eleição de Hitler, e mesmo mantendo a democracia formalmente, ela mesma pode ser um regime totalitário, que é o caminho seguido por quase todas as democracias modernas. Então, ou a democracia tem ela mesma um fundo totalitário – e há algumas coisas que indiciam isto –, ou ela é irrelevante e deixa-se contaminar por todas as tendências que nela se agitam, deixando de ser um teatro onde as ideias mais conflituantes podem actuar para ser ela mesma uma personagem que renega a sua natureza.

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