terça-feira, 21 de maio de 2013

Relatos do Inferno (6)

OVELHAS COM PELE DE LOBO

Tanto a mão invisível do capitalismo como a sociedade fraterna do socialismo prometeram terminar com o estado animalesco em que supostamente a humanidade vivia, onde vigoraria a lei do mais forte e a batuta sinistra da religião. A democracia, tanto a liberal como a socialista, seria a formalização do regime em que todos são iguais perante a lei ou, no caso socialista, o regime em que, através da lei, todos os homens se tornam iguais. Nas modernas sociedades, onde a luta ideológica se dá essencialmente entre liberalismo e socialismo, é natural que os dois conceitos de igualdade, negativo e positivo, acabem por se confundir. Os estrategas de ambas as partes acham que esta ambiguidade lhes pode trazer vantagens, porque vão tentar se apropriar de quaisquer associações positivas que o termo «igualdade» desperte no público, mesmo aquelas que contrariem o sentido restrito que eles usam quando debatem entre os do grémio.  

Contudo, tanto liberalismo como socialismo são ideologias de movimento, que apenas podem ser aplicadas num contexto onde se conserve um fundo estável. De certa forma, os elementos constitutivos das doutrinas liberal e socialista já existiam nesse fundo estável (mas não imóvel), porém os ideólogos descobriram que podiam montar sistemas teóricos apenas com determinadas partes, fazendo abstração das restantes. Bibliotecas inteiras podem ser lotadas com os livros que já foram escritos à volta destas construções mentais, mas ainda assim não é possível aplicá-las na prática sem mais. Pior que isso, a sua própria aplicação requer que seja eliminado aquele fundo estável que permite a sua própria sobrevivência no tecido da realidade.

Obviamente que uma certa dose de capitalismo faz parte deste fundo estável, tal como a própria construção do socialismo necessita da «electricidade» capitalista. Mas quando os liberais fazem abstracção das condições que deram origem ao capitalismo, e tentam fazer da liberdade (ou da propriedade) princípios de onde tudo se pode derivar, eles estão a cavar a sua própria sepultura, já que estão a tentar apoiar-se no vazio. Apesar de existirem algumas vertentes tradicionalistas no liberalismo, estas dão à tradição um propósito utilitarista, logo, esta perderá todo o seu sentido e, no longo prazo, a própria utilidade. Por outro lado, não podemos confundir o comunismo primitivo – que realmente é algo que existe mas apenas como fenómeno grupal, talvez não entre os verdadeiros primitivos – com o comunismo/socialismo enquanto teoria política, baseada na concentração do poder, e que apenas pode existir como movimento em direcção a si mesmo. Os intelectuais socialistas perceberam que a tradição também podia ser usada como meio revolucionário, usando o “apego” que o povo lhe tem mas ao mesmo tempo esvaziando a palavra do seu conteúdo original para a preencher dos fins socialistas.

Em suma, tanto socialismo como liberalismo são parasitas do conservadorismo (obviamente que isto não dei prova disto, apenas fiz alusão a alguns pontos que terão de ser descompactos por quem queira entender o que escrevi), apostados em matar o hospedeiro do qual retiram a sua existência, dado que acreditam que as suas abstracções são possíveis de se materializarem na realidade ou que elas mesmas possam ser geradoras de uma realidade autónoma. Então, quanto melhor sucedidas forem estas ideologias – isoladamente ou em conjunto, como se verifica actualmente – mais elas se aproximam do seu próprio fim, conduzindo a igual destino as sociedades que lhes servem de cenário. Não pretendo tirar daqui uma teoria que explique estas ideologias cientificamente (no sentido de episteme), mas apenas apresentar um enfoque específico que ressalte alguns aspectos. Ora, o facto de liberalismo e socialismo serem ideologias de movimento, no sentido de se basearem num destacar de certos elementos e fazerem tudo girar à sua volta (e assim descentram a civilização ao criar novos centros que não têm a potência para tal), vai ter profundas implicações psicológicas. Essas implicações estão em grande parte ocultas nos regimes abertamente totalitários, que se baseiam num capitalismo de Estado e num controle policial da sociedade, pelo que ovelhas e lobos estão bem identificados, e a relação entre presa e predador consiste num levar ao paroxismo algo que existe desde sempre – o abuso da força por quem a possui –, embora o fenómeno em si tenha algumas coisas inéditas em relação ao passado. Nas sociedades democráticas, o facto de haver ovelhas e predadores é considerado uma anomalia a extirpar pela lei, seja preventivamente ou correctivamente. Resta questionar quem vai garantir a igualdade em democracia, quem vai garantir que não sejam cometidos abusos de força.

Numa sociedade tradicional, há uma divisão em dois planos: num deles, o terreno, a lei existe para punir os crimes mais graves e que ponham em causa a própria estabilidade social; depois há uma moralidade de inspiração religiosa, que ficava largamente a cargo de cada um desenvolver por conta própria ou com ajuda de algum sacerdote. Esta distinção vai desaparecer no mundo moderno, onde tudo se torna imanente, e aquela parte que era um movimento na alma humana passa apenas a ter uma manifestação mundana, representada pelas aspirações a que procuram responder as ideologias de movimento. Isto quer dizer que a pretensão de igualdade rapidamente se multiplica na busca de todo o tipo de perfeições que se transferiram do plano da perfeição religiosa – que todos sabiam que eram impossíveis de cumprir – para o plano mundano. Tudo isto aparece ainda muito embrulhado no mundo burguês, mas depois a ciência ergue-se como juiz daquilo que o homem deve ser, e aí torna-se um imperativo moral todos contribuírem para tal. Entretanto, as ideologias adaptaram-se a estes desenvolvimentos, largamente provocados por elas, e apesar de proporem soluções aparentemente opostas, tanto socialismo como liberalismo estão juntos no propósito de afastar o homem da transcendência, implicando isto a perda da medida de todas as coisas. Não por acaso, as ideologias surgem como um misto de ciência e seita religiosa propícia ao apostolado.

Neste quadro, torna-se evidente que não basta procurar respostas naquilo que a democracia constitui formalmente. Supostamente, o Estado tem o monopólio da força, mas o seu exercício é fiscalizado por órgãos independentes, alguns que são fruto da representação popular. Não só o Estado já ultrapassou há muito às suas funções mínimas como o fez não por ter alterado a sua natureza (entenda-se que me refiro ao Estado moderno) mas sobretudo através da expansão “natural” das suas funções nucleares, que os próprios liberais tradicionais aceitam. Então, é largamente irrelevante saber quem vai ocupar os lugares formais no poder, não só porque é mais importante o controlo do acesso a esses lugares mas, sobretudo, porque o fundamental é o controlo daquilo que é pensável e pode surgir como opção.

Neste contexto, o predador é aquele que domina psicologicamente os outros, não tanto em termos de poder pessoal mas sobretudo na forma como pode determinar a cosmovisão alheia. O predador vai ser aquele que conseguir encarnar melhor a ideologia dominante no ambiente em que se encontra, e essa ideologia pode perfeitamente ser uma mistura de liberalismo com socialismo, e ainda ter algo de conservadorismo cristão. Vão surgir dois grupos: um composto por aqueles que realmente têm poder de influência sobre os outros; e outro onde estão aqueles que, à força de não conseguirem resistir ou sequer perceber a dominação mental a que estão sujeitos, se tornam paladinos do opressor. Os primeiros são lobos com pele de cordeiro, são os redentores da humanidade, os revolucionários que querem controlar tudo para criar um mundo melhor, nem que para atingir esse objectivo tenham que exterminar a espécie humana. O segundo grupo é composto pelas ovelhas com pele de lobo: são aqueles “amigos” que se escandalizam se acharmos que algo não vai bem neste mundo, aqueles que nos vendem a sua afeição a troco do esquecimento e da homenagem aos ídolos do momento, aqueles que nos censuram se não seguirmos o politicamente. Se no regime totalitário explícito o lobo é a polícia política, o serviço secreto ou até o denunciante anónimo, em democracia o lobo vai actuar em primeiro lugar agindo sobre o grupo de ovelhas mais próximas de nós. Os verdadeiros lobos aprenderam que era mais simples convencerem as ovelhas a policiarem-se umas às outras do que serem eles a fazer esse trabalho.

Na verdade, as modernas democracias totalitárias encaminham-se para ser regimes ainda mais compressivos do que as ditaduras comunistas. Qualquer ditadura preocupa-se sobretudo em manter um círculo de protecção à volta do núcleo do poder, e para isso tenta controlar as movimentações militares e políticas, tendo ainda alguma propaganda que só é acreditada pelos idiotas que vivem fora e são fãs do regime. Mas a democracia não pode deixar ninguém de fora, a opinião de cada um conta, mesmo a das criancinhas. Então, a propaganda é substituída por algo muito mais subtil e poderoso: a indução de condutas e sentimentos de base através das modernas técnicas de manipulação de massas, facilitada pela própria riqueza gerada pelo capitalismo.

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