quinta-feira, 9 de maio de 2013

Relatos do Inferno (4)


TRABALHO E IRRELEVÂNCIA

Toda a discussão sobre o trabalho anda à volta de abstracções sociológicas, económicas ou legais. Tudo isto é legítimo se o próprio fenómeno em si já está bem descrito, caso contrário as discussões irão se materializar em valores, leis e métodos de trabalho que irão alienar as pessoas, sempre instigadas a melhorar a sua produtividade quando elas não fazem, literalmente, a mínima ideia do que andam a fazer. Não é lugar aqui para fazer uma descrição fenomenológica do «trabalho», e apenas pretendo salientar alguns aspectos a seu respeito relacionados com a vivência de cada um de nós.

Do ponto de vista do trabalhador, tem sentido falar em 3 fases distintas, não validando isto a teoria de Alvin Toffler das “três ondas”, pela qual ele tenta explicar quase tudo o que acontece no mundo. O simplismo de Toffler torna-o apto à mentalidade pragmatista americana, por lhe ser apresentada uma explicação fácil por agregados da qual se podem derivar uma série de normas e indicações práticas para o indivíduo. Algum acolhimento que Toffler recebe na Europa penso que advém de um equívoco, já que o conceito das “ondas” ainda produz ressonância no historicismo positivista ou marxista, ao mesmo tempo que a simplificação do indivíduo, que o americano vê essencialmente como um procedimento de efeitos práticos, adapta-se ao europeu na sua progressiva dissolução da personalidade. Mas o ponto que quero salientar não visa o abstracionismo/pragmatismo/historicismo e sim entender as implicações, em termos de personalidade humana, que a evolução do trabalho provocou, sem ter a pretensão de achar aqui uma chave explicativa única.

Há desde logo uma questão prévia, porque as três formas de trabalho que irei abordar (agrícola, industrial e pós-industrial) remetem todas para a existência da sociedade organizada. Antes disto, não podemos propriamente falar em trabalho, pois existem apenas tarefas necessárias à sobrevivência dos grupos – obtenção de alimentos, construção de habitações, protecção do grupo, cura física e espiritual –, mas nada disto tem a forma de um contrato nem pode conduzir a distinções de classe. Há um grau de determinismo naquilo que o indivíduo vai ser neste contexto, e se nasceu homem ou mulher, saudável ou doente, forte ou carismático, isso conduzirá a uma função. E isto não é bom nem mau, é a única coisa concebível, pois para o primitivo, de certa forma, só a sua tribo faz parte do domínio do ser. Na realidade, aquilo que um indivíduo faz não é muito diferente do que faz qualquer outro de faixa etária semelhante, e grande parte das actividades são grupais. Para nós, a imagem da tribo primitiva tem algo de paradoxal, ao mesmo tempo vemos ali uma liberdade da ausência de constrangimentos sociais mas, por outro lado, há o determinismo tribal que limita o indivíduo a ser apenas uma coisa e nada mais ele pode sequer conceber.

Então, quando a agricultura se estabelece, significa isto a libertação do determinismo tribal, com a abertura para uma miríade de possibilidades de acção e de concepção do mundo, ou é a inauguração de uma era de servidão em que vivemos até hoje? Na verdade as duas coisas ocorrem, mas para nós é hoje impossível voltar ao estado primitivo. Aqueles que fogem das cidades e vão viver em condições rudimentares para o campo estão apenas fingindo ser primitivos, porque a sua mentalidade é totalmente «civilizada», não tem a ingenuidade, as limitações nem a «pureza» daquela do primitivo. Até o mais ignorante dos camponeses da aldeia mais isolada é cosmopolita comparado com qualquer membro de uma tribo primitiva, porque ele sabe que o mundo não se restringe à sua aldeia e que o seu trabalho, ainda que largamente de subsistência, produz algo que pode ir parar a outras mãos, possivelmente até de pessoas que ele desconhece.

Mas isto já é adiantar muito a história, já que certamente que os primeiros agricultores ainda eram membros da tribo, mas algo já tinha mudado. A agricultura, mais do que fixar as populações num certo lugar, fez com que alguns homens entendessem que podiam manipular o curso do mundo. Agora, o cenário de actuação não era apenas a natureza imprevisível, onde o homem apenas podia tentar se adaptar da melhor forma possível. O homem passava a poder introduzir a sua interferência e assim também ter um domínio maior o seu próprio futuro. Contudo, nem todos os homens possuíam entendimento idêntico sobre o processo, pelo que o domínio da natureza iria, mais tarde ou mais cedo, traduzir-se num domínio de uns homens sobre outros homens. Quando hoje falamos em sociedade do conhecimento, claramente não fazemos a mínima ideia do que estamos a falar.

De certa forma, o início do trabalho organizado é uma “perda da inocência” mas também a porta para o desenvolvimento da consciência. O trabalhador agrícola, livre ou escravo, tem uma ligação muito próxima com o produto. Este está bastante ligado ao meio ambiente, que é o mesmo para todos e assim a agricultura era um elo comum a toda a sociedade. Até ao advento da industrialização, toda a sociedade tinha um cunho agrícola, e mesmo quem desempenhava outras funções tinha também um pedaço de terra cultivado, além de que a própria industria artesanal dependia daquilo que a agricultura podia suportar, e sabemos como foram dramáticos alguns maus anos agrícolas.  

Muitas coisas alteram-se com a industrialização, não surgindo apenas um trabalho fisicamente diferente, num ambiente agora fechado e geralmente citadino. O trabalhador já não lida com o produto final como um todo, ele corta umas placas de metal, opera uma determinada tecedeira mecânica, pinta determinada peça e assim por diante, dentro das exigências da divisão do trabalho. Na fábrica, ele está isolado do meio ambiente, não tem geralmente contacto com o produto final acabado, se é que alguma vez chega a vê-lo, e está mesmo isolado na sua função, cujo contributo para o todo se torna cada vez mais difícil de vislumbrar. Durante horas seguidas repete as mesmas tarefas mecânicas, o que não ajuda nada à sanidade mental. Mas há outros factores que surgem com o trabalho industrial. Enquanto que na agricultura o patrão trabalha frequentemente ao lado do empregado (e era normal o escravo grego ou romano trabalhar ao lado do seu senhor) e mesmo quando não o faz está igualmente dependente dos ditames do tempo, agora o dono da fábrica vive num mundo à parte, que é infinitamente misterioso para o trabalhador. Aqui os socialistas surgem para dar aos trabalhadores uma explicação sobre como funciona a máquina social, que resulta ao menos como terapia contra a disrupção mental provocada pela mecanização. Mas mesmo neste cenário, existe alguma noção do que se anda a fazer, e todos sabem quantos carros, panelas ou frigoríficos a fábrica produziu.

Quando chegamos à sociedade pós-industrial – sociedade dos serviços, do trabalho intelectual, da informação, etc. –, inicialmente parece que há uma subida de patamar, pois elimina-se o trabalho físico repetitivo e aposta-se no desenvolvimento das faculdades cognitivas, exigindo-se qualificações cada vez maiores. Contudo, algo nesta imagem parece não bater certo com a realidade. O trabalho no escritório parece ser fisicamente confortável, mas ao fim de poucos anos as pessoas mostram um envelhecimento precoce, apresentam má postura, surgem lesões nos braços e mãos por uso do computador, começam a dormir mal, aumentam os problemas respiratórios, começam a ver cada vez pior devido à má iluminação e aos monitores dos computadores, e assim por diante, considerando apenas os problemas derivados das condições materiais. A promessa do trabalho intelectual também fica, em geral, por cumprir, porque passada uma fase de aquisição de alguns conhecimentos, segue-se uma rotina monótona e com poucas novidades, que podia ser desempenhada por qualquer idiota. Pior que isso, cada vez menos as pessoas sabem para que serve o seu trabalho. Uma empresa pode ter milhares de pessoas e o seu produto final ser apenas um componente para outro produto e assim por diante, e há mesmo muitas companhias que nem sequer produzem alguma coisa tangível. Internamente, as chefias dizem ser importante fazer isto e aquilo, para uns meses depois darem o dito pelo não dito e nem sequer ser dada qualquer explicação. Estimo que numa empresa com alguns milhares de pessoas sejam elaborados centenas de relatórios mensais que ninguém lê e feitas milhares de reuniões cujas conclusões todos irão esquecer. E quando o trabalho se torna assim irrelevante, começa a sobrar tempo e engenho para dedicar à sabotagem de colegas, à fuga às responsabilidades, à auto-promoção à custa de terceiros e a todo o tipo de actividades paralelas. E afinal, quem manda na empresa? As chefias multiplicam-se, mas a própria administração depende dos accionistas, que podem ter atrás grupos de várias partes do mundo, que a qualquer altura podem decidir ir para outras paragens.

Então, o trabalho moderno tornou-se numa estadia no hospício (e estou a falar apenas nas situações “normais”, sem entrar em dificuldades de toda a ordem que ainda se acrescentam na realidade) precisamente quando o grande desígnio de vida para o homem moderno passou a ser a realização profissional, substituindo a realização espiritual. Obviamente que esta substituição é um embuste destinado a criar um novo tipo de homem dócil à sociedade industrial e pós-industrial. Mas afinal, o que consiste essa tal de realização profissional? Se é um objectivo de vida, então só pode estar associada à melhoria significativa das condições de vida e não pode ser apenas consistir em fazer bem o trabalho e receber umas pancadinhas nas costas. Claro que há sempre aqueles que conseguem estar no centro da acção e subir vertiginosamente na hierarquia, e que depois vão contar o seu percurso aos iludidos que acham que aquilo está disponível para qualquer um que tenha vontade suficiente. Mas basta pensar que os lugares de topo sempre serão reduzidos para concluir que o objectivo da realização profissional produz apenas infelicidade ou apatia, no caso dos cínicos, que é naquilo que quase todos inevitavelmente se irão transformar.

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