segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A viabilidade de um país

Na série anterior de posts, tomei como base um evento recente e, analisando o comportamento dos vários actores em cena, tentei evidenciar o clima de morte “eminente” que o país vive. Pode parecer muito dramático, mas falar em fim de ciclo ou fim de regime não me parece suficiente.

Agora vou tomar um ponto de vista diferente e, por assim dizer, mais estrutural. Nos últimos anos não deve ter havido um único noticiário que não tenha referido a duvidosa viabilidade económica e financeira de Portugal. A questão está, obviamente, mal colocada. Economia e finanças não tornam um país viável, antes têm o poder de o tornar inviável. Os elementos que estruturam uma nação estão colocadas noutro plano, mas também por aqui não estamos bem servidos. Elenco de seguida algumas das nossas verdadeiras carências estruturais.

Em Portugal não existe um único grande escritor vivo. Isto quer dizer que não existe ninguém a transfigurar a realidade em símbolos verbais eficientes, pelo que a sociedade deixa de ter instrumentos para reflectir sobre si mesma. Em fraca compensação, a linguagem é enxertada de todo o tipo de gírias adaptadas de disciplinas técnicas ou de outras línguas, que usamos para descrever a nossa realidade por analogia, sem perceber que podemos ir parar bem longe do nosso verdadeiro contexto e estarmos assim a entrar numa ilusão completa. Note-se que ainda há muita gente a escrever em bom português, mas sem grande literatura, é apenas uma questão de tempo para toda a gente estar a escrever mal.

Portugal não tem um único grande intelectual. Existem bons académicos, cujos trabalhos não devem ser desprezados, mas nenhum deles dá mostras de possuir qualquer sabedoria fora das suas áreas de especialidade. Isto quer dizer que não há ninguém capacitado para reflectir sobre os grandes problemas, que não se podem confinar a uma única área de estudo, . Paradigmático sobre esta incapacidade foi a entrevista que José Gil deu à RTP. Para dizer algo acertado, limita-se a repetir a argumentação de qualquer taxista. Quando desafiado a dar uma ideia para Portugal, demite-se dessa responsabilidade e diz que isso é função dos políticos. Nada mais errado: os políticos são figuras essencialmente práticas, que se especializam em relações humanas tendo em vista o acesso aos postos de poder, pelo que não é o tipo de pessoa a que naturalmente se pedem reflexões aprofundadas. Essas reflexões são da responsabilidade dos filósofos em primeiro lugar, que não têm sequer de as tornar produto acessível ao grande público, ficando isso a cargo dos polemistas e dos intelectuais de segundo plano, que, por sua vez, poderão alimentar jornalistas, ficcionistas, políticos, etc.

Não havendo grandes intelectuais, é natural que também não existam grandes comunicadores a servir de veículo de transmissão entre as grandes ideias e o público geral. Neste momento, Portugal tem apenas um grande comunicador: o professor Marcelo Rebelo de Sousa. Contudo, a sua oratória é tão perfeita quanto a sua falta de sinceridade. Todos os problemas são abordados por ele segundo uma bitola estética ou mediante uma ética de conveniência. É o tipo de pessoa habituada a estar rodeada por medíocres e por isso não percebe que podem existir pessoas com um horizonte de consciência infinitamente superior ao seu. Todos os outros comentadores são figuras vendidas a interesses particulares ou ideológicos, ou figuras vendidas à sua própria alienação e preguiça, como é o caso de Miguel Sousa Tavares. A única excepção é Medina Carreira, cujo mérito é fazer umas contas de merceeiro ao Estado do país e alertar que, a continuar assim, a “mercearia” será obrigada a fechar.

Em Portugal não há nenhuma figura espiritual de grande nível, com a possível excepção do bispo do Porto, D. Manuel Clemente. Povo e elites privados de verdadeira vida religiosa tendem a absolutizar o imediato e a desconsiderar passado e futuro. No limite, caem numa vida animalesca, puramente baseada em necessidades fisiológicas, e aqueles cuja angústia de existir não se conforma com isto são facilmente presas de ideologias totalitárias.

Não existe qualquer criação cultural de primeiro plano em Portugal. Simbólico deste aspecto é o caso do cinema, em que Manoel de Oliveira foi o primeiro grande vulto nacional e agora, com 103 anos, continua a ser o maior expoente. Boa parte da classe artística acha que tem um direito divino a ser subsidiada. Certamente que há produção cultural séria e competente, mas nada que vá deixar marca para futuro.

Quando nos chocamos com o tipo de música que o povo consome, ou com os programas execráveis de televisão a que assiste, esquecemos que estas coisas têm origem e/ou são promovidas por gente que não é do povo mas está colocada próximo das elites e segue muitas das ideias que estas discutem em círculos restritos. As discussões públicas, que apenas seguem linhas simplistas – normalmente segundo pares de opostos, como mercado versus planeamento estatal – não permitem ir às razões profundas . No mundo moderno, há um abismo entre a cultura superior e a maioria da população. As elites têm uma cultura para consumo interno mas criam também uma cultura para estupidificação das massas. O quadro é complexo e não é possível descrevê-lo em poucas linhas.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O dia em que Portugal morreu (5)

Uma palavra final sobre os actores políticos não executivos envolvidos no cenário que tenho vindo a comentar. Os partidos estiveram ao nível que nos habituaram, com a sua usual indigência criminosa. Aceitar comentar as suas acções pontuais, caso não seja precisamente para exemplificar a sua execrabilidade, é já a reconhecer-lhes uma dignidade que não possuem. Mas não devemos diabolizar muitos os partidos, uma vez que eles têm por trás instâncias mais poderosas e perigosas. Os jornalistas também continuaram eficazmente a focar-se nas margens da realidade, secundados pelos comentadores residentes e por vários especialistas convidados, que tentam dar um ar de seriedade a discussões que nunca seriam admissíveis num país que queira sobreviver mais 10 anos. 

Mas o mais relevante foi o comportamento da blogosfera, que parece ainda ter pretensões de se assumir como o último reduto da dignidade intelectual e moral. Não só não anteciparam que o governo ia ser “obrigado” a lançar novos impostos sobre a classe média (era fácil antecipar isto com anos de antecedência), como reagiram a isto com um espanto infinito. Debateram hipóteses num clima de escolhas impossíveis sem perceber que só vendo as coisas num quadro infinitamente mais amplo é possível ultrapassar os problemas derivados de décadas, ou séculos, de gestão danosa. 

 Sobre a actuação do governo, mais tarde direi algumas coisas quando esboçar um programa ideal de governação, para que o enquadramento possa ser o adequado.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O dia em que Portugal morreu (4)

O que despoletou, em termos formais, a manifestação e o desapontamento geral com o governo foi o anúncio da alteração na TSU, em que uma subida desta contribuição social por parte dos trabalhadores seria compensada por uma descida da parte das empresas. Povo e comentadores reagiram como se estivessem a ver claramente todas as hipóteses em cima da mesa e os efeitos a curto e longo prazo. Começo por supor que assim é.

Se a mexida da TSU é inviável, então é porque há uma alternativa totalmente distinta. Mas essa alternativa só pode situar-se fora do quadro definido pelo actual resgate financeiro – que não dá qualquer margem para alterações de fundo e não é com cortes nas “gorduras” do Estado que a situação se irá alterar significativamente. Se defendemos a manutenção da situação actual, então estamos a querer dizer que algum tipo de subida de impostos é inevitável, provavelmente ainda mais gravosa que a alteração na TSU, como de resto veio a acontecer com a anunciada alteração dos níveis do IRS e “aumento enorme de impostos” (com a ressalva de que isto ainda deveria ocorrer caso as alterações à TSU tivessem avançado). O PS diz que esta troca é um logro político, pelo que deve ter toda a razão, uma vez que se trata de um partido especialista em tais manobras.

Ao menos neste aspecto, devemos saudar os organizadores da manifestação, já que pediram explicitamente que a troika se retirasse do país. Claro que eles não exigem isto tendo em vista a implementação de um plano estruturado de reconstrução do país. Eles querem o fim do resgate financeiro para que se instale a bancarrota e a situação se torne anárquica, dando-lhes uma abertura para a tomada do poder e iniciar, assim, um período revolucionário que possa fazer de Portugal uma nova Cuba, uma Albânia ou até mesmo, se não é sonhar muito, uma Coreia do Norte. E tivemos gente de “direita”, liberais e conservadores a participar na manifestação sem perceberem o que estava em causa. Parecem acreditar que “ o inimigo do meu inimigo meu amigo é”, quando São Tomás de Aquino (e antes dele, Aristóteles) assinalou que a amizade não é apenas rejeitar as mesmas coisas mas também querer as mesmas coisas.

Aqueles que se querem assumir como formadores de opinião tinham a obrigação de avaliar a alteração à TSU num quadro amplo, começando por descrever a verdadeira situação do país e quais as medidas que podem realmente trazer mudanças de fundo. Mas preferiram reagir na base do imediatismo, dizendo aquilo que lhes sossega o espírito e possa ecoar nos públicos que têm como referência. Alegram-se por fazer oposição a uma má medida sem perceberem que em troca vão ter apenas uma medida igual ou pior.

Era também uma oportunidade para discutir a própria existência da TSU e da segurança social nos actuais moldes, o que vi apenas ser feito de maneira tímida por muito poucos. A segurança social, devido à fraca capitalização e ao favorecimento dos que já estão “instalados” (e alguns estão bem mais “instalados” do que outros), é uma fraude financeira do género do ponzi scheme. Este é um tipo de investimento fraudulento bem conhecido, com semelhanças ao esquema de pirâmide, mas com maior robustez enquanto continuarem a entrar novos investidores. No caso da segurança social, os novos investidores são os actuais contribuintes e os futuros. Contudo, o esquema de funcionamento da actual segurança social é ainda mais tenebroso do que o ponzi scheme. Todos somos obrigados a contribuir para a segurança social mas a entrada no ponzi scheme é opcional (mas apesar disso este esquema é punido criminalmente e muito justificadamente). Pior ainda, sendo um esquema que depende da entrada de novos contribuintes, a segurança social entra em choque contra uma série de políticas activas de destruição da natalidade: abortismo, casamento gay, e todo o género de “pequenas” dificuldades criadas para quem quer ter filhos e que leva a muitos casais a adiar ou abdicar da paternidade. As massas vão aceitando tudo isto porque lhes dizem que é a inevitabilidade do progresso, que são as conquistas da liberdade, quando nunca as pessoas foram tão prisioneiras da situação e o único progresso que se assiste é o da conduta simiesca.

Não é por acaso que se aconselhava a praticar a caridade de forma discreta e, de preferência, até anonimamente. Quando os políticos falam em solidariedade feita à custa de dinheiro alheio devemos desconfiar das suas verdadeiras intenções. Hitler usou esta “solidariedade” para comprar os votos do povo, e é raro o político que não ceda a esta tentação. Nos Estados Unidos, o New Deal foi a porta de entrada para o Estado social, cujo verdadeiro objectivo foi o enfraquecimento da alma dos indivíduos, tornando-os apáticos e medrosos, por forma a aumentar o poder daqueles que mandam no Estado sobre as populações. Esta concentração de poder foi adoptada no mundo inteiro, por vezes mais ferozmente em países ditos capitalistas do que nos socialistas. Actualmente estamos numa fase bem mais avançada, dado que a segurança social não se limita a comprar os votos povo e a enfraquecer a vontade dos indivíduos. Ela tornou-se agora numa estratégia de longo prazo tendo em vista a destruição das nações, que ficam obrigadas a prover a uma série de “direitos adquiridos” até se atingir um ponto de ruptura. A este respeito, ver, por exemplo, a estratégia Cloward-Piven:


A discussão pública fragmentou-se numa miríade de questões subatómicas, cada uma delas totalmente irrelevante e baseada em abstracções que nada dizem. Mas quem se viciou neste tipo de questiúnculas, pensa ter encontrado nestes infinitésimos o solo duro da realidade. Qualquer tentativa mais ampla de avaliar as situações parece-lhes teoria da conspiração, ainda que lhes mostrem as evidências que estão diante dos seus olhos. 

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

O dia em que Portugal morreu (3)

O que uniu aquelas pessoas que se manifestaram no dia 15 de Setembro? Formalmente tratou-se de uma manifestação contra o governo e contra a troika. Mas ninguém acredita que todas aquelas pessoas queriam prescindir do resgate que o país vive e iniciar um caminho totalmente diferente, se bem que isso tivesse algumas vantagens. As pessoas estavam obviamente unidas por um sentimento de insatisfação, mas se perscrutarmos as causas dessa insatisfação descobrimos algumas coisas curiosas. Enquanto muitos protestavam contra a anunciada redução efectiva de salários no sector privado, via ajustamento da TSU, outros queixavam-se da degradação da situação dos funcionários públicos. Obviamente que as duas pretensões implícitas são contraditórias no quadro actual. Uma jovem de ar confuso reclamava que era cada vez mais difícil arranjar estágios profissionais porque estavam sempre a sair novos alunos das universidades a fazer-lhe concorrência, mostrando pouca solidariedade para com muitos dos seus colegas de protesto que anseiam por uma primeira oportunidade profissional. Se pensarmos em termos de pretensões mais conceptuais, havia quem queria claramente mais socialismo e quem queria menos Estado, assim como quem queria mais solidariedade europeia e aqueles que queriam desligar-se da Europa e do Euro.

Isto quer dizer que, se aquelas pessoas estivessem devidamente organizadas pelas suas pretensões, assumindo um discurso em conformidade e fazendo as exigências em consonância – ou seja, exigindo que outros assumam uma série de deveres correspondentes aos direitos que elas reivindicam –, então, não haveria ali qualquer união mas uma série facções degladiando-se. Na realidade, é exactamente isso que acontece mas cada indivíduo não tem disso uma consciência clara (porque a paga entre direitos e deveres não é directa), apenas uma desconfiança difusa em relação a todos, que se materializa em certas circunstâncias contra um bode expiatório. Em geral, são os próprios governantes que usam esta estratégia para concentração de poder, através da variante “dividir para reinar”. Ou seja, é mais fácil reinar quando o grupo está dividido em várias facções, cada uma delas com pouca consciência do estado geral de coisas, pelo que acabam por ceder ao poder mais focado e consciente de si mesmo e da situação geral.

Mas quando os governos são pouco hábeis politicamente, a mesma estratégia pode ser usada por forças com pouca expressão eleitoral, que desta forma tentam representar uma pretensa consciência unitária do grupo. Para isso, é necessário domínio das modernas técnicas de propaganda e apoio da comunicação social, dois requisitos cumpridos pela extrema-esquerda, em especial pelo BE. Uma carrinha de caixa aberta distribuía aleatoriamente cartazes aos manifestantes, que os aceitavam acefalamente, recebendo assim uma consciência emprestada. O cenário orweliano está montado e quem entrou nele sem pestanejar pode ter sofrido danos irreversíveis para a sua inteligência.

Passaram uns dias e o governo recuou na alteração à TSU, para aumentar o IRS, e o resultado global para a economia pode ainda ser pior. Mas todos reclamaram vitória e fingem que se está a debater algo de relevante. O cidadão comum saltou do tacho para a frigideira, deverá estar um pouco confuso. Valerá a pena entrar em nova manifestação e correr o risco de ser colocado no micro-ondas?