terça-feira, 20 de agosto de 2013

Olvido de Cassandra

Cassandra é uma personagem peculiar na mitologia e no teatro grego. Ela é a famosa profetisa, filha do rei Príamo de Tróia, em quem ninguém acredita e assim não consegue evitar a queda da sua cidade. Ésquilo utilizará depois a personagem, agora como consorte de Agamémnon, e novamente Cassandra vai profetizar desesperançadamente, sabendo que nada evitará o seu destino trágico. Ao lermos as obras antigas, a presença de Cassandra parece-nos apenas um efeito cénico, que visa dar algum colorido à história mas que realmente nada de substancial lhe acrescenta, estando o verdadeiro drama centrado noutras personagens. Isso ainda parece mais óbvio quando inúmeros autores desde então têm copiado este efeito cénico de alguma forma, e parecendo-nos um procedimento ingénuo comparado com outros que surgiram no desenvolvimento da narrativa. Cassandra serviria apenas como um símbolo da impotência do conhecimento, quiçá convidando à resignação. Contudo, os autores antigos – pelo menos os mais distintos que nos chegaram – não eram ainda profissionais no enchimento de chouriços, e a experiência mostra que aquilo que neles nos parece irrelevante exemplifica apenas a nossa incompreensão. Vou tentar salientar dois aspectos, que provém de interpretação minha, sem os quais não acredito que seja possível compreender o mito de Cassandra.

Em primeiro lugar, Cassandra é dada como louca quando profetiza sem ser acreditada, mas a nós, espectadores distantes e sabedores do fim da história, parece-nos quase o oposto, que loucos eram aqueles que não lhe queriam dar ouvidos. A minha interpretação é que Cassandra realmente fica louca porque não consegue suportar que terríveis verdades que lhe são tão evidentes não possam ser partilhadas com a comunidade. Esta é a terrível sina do conhecimento, o isolamento que ele provoca entre o portador do conhecimento e os outros homens. Por mais óbvia que uma coisa nos pareça, nada garante que conseguiremos convencer mais alguém a ver a situação da mesma forma. E se toda a nossa cosmovisão se torna incompreensível aos restantes, viveremos numa espécie de realidade paralela, e acabamos por sair da comunidade dos homens, algo que poucos conseguirão suportar. Em desespero, podemos “cortar a nossa cabeça” para voltarmos a estar à mesma altura do vulgo, mas também isso é uma ilusão de reintegração social, porque uma coisa é o homem que não quer ou não consegue ver, outra é aquele que viu e decidiu esquecer para não mais voltar a ver, e assim amputa uma parte de si mesmo, ficando condenado a viver num deserto sem fim, sempre atormentado pelo fantasma da sua renúncia.

A consciência da problematicidade da posse do conhecimento, que acredito já estar contida no destino de Cassandra, foi se tornando mais aguda. Heráclito dizia que as pessoas não conseguiriam compreender o que ele dizia, por mais óbvias que fossem. As primeiras escolas de pensamento, como a dos pitagóricos ou a dos eleatas, tinham um carácter esotérico, porque havia a necessidade de criar uma comunidade própria isolada da vida mundana, onde o conhecimento pudesse ser aceite por cada um. Ainda assim, as escolas eram frequentemente perseguidas por serem vistas como perigos. Os próprios profetas hebraicos também corriam enormes riscos, tanto sendo adorados como vistos como uma presença intolerável. Sócrates se tivesse sido um mero retórico não teria sido levado a tribunal, mas ele mostrava saber algo a mais do que os outros e a todos instava, como um moscardo, a seguir a mesma busca. Pôncio Pilatos pergunta diante de Cristo: «O que é a verdade?» Ele não apenas sabe que Cristo está inocente como finge não saber que Ele é o próprio Logos encarnado, mas decide lavar as suas mãos e seguir a multidão. Neste episódio fica expresso todo o ódio ao conhecimento do homem moderno, que ficou preso a alguma experiência traumática de posse do conhecimento que o tenha afastado do seu grupo de referência, e daí para a frente ele empenha-se a não compreender mais nada. Na realidade, ele nem precisa ter essa experiência pessoalmente, basta-lhe ter visto acontecer a outros.  

O outro aspecto que pretendo ressaltar na história de Cassandra, e que está relacionado com o anterior, tem a ver com a maldição que lhe foi imposta. Apolo, despeitado por não conseguir consumar uma relação carnal com ela, dita que ela será uma vidente sem qualquer poder de persuasão. Podemos logo começar por questionar se Apolo desejava assim tanto Cassandra, porque Ájax na mesma situação não hesitou em violá-la, mesmo em pleno templo de Atena. É evidente que não podemos exigir uma total coerência lógica de um relato mito-poético, mas neste caso talvez isto tenha algum relevo, como veremos mais adiante. É fácil de constatar que a maldição que Apolo lança sobre Cassandra na verdade atinge toda a comunidade, ou seja, cada ser humano ficou amaldiçoado porque deixou de ser sensível às verdades mais óbvias. No mundo grego, a loucura era frequentemente vista como uma manifestação da posse divina, pelo que Cassandra não era ignorada pelo seu estado mas pela perda de faculdades dos seus ouvintes.

Há aqui uma queda ontológica, análoga ao Pecado Original mas que não tem nem o mesmo alcance, nem o mesmo nível de auto-consciência e nem o mesmo sentido último. No relato do Génesis, apesar da expulsão de Adão do paraíso representar uma queda não só do homem mas de toda a criação, o mundo continua a ser, apesar de todas as suas contradições, algo bom. A vida, paixão e morte de Cristo ainda vieram garantir que apenas vai para o Hades quem assim escolher. A perspectiva gnóstica só torna-se dominante na modernidade com a perda de força do cristianismo, mas não era esta a visão no mundo grego. Na peça Agamémnon, Ésquilo mostra-nos que não era apenas Cassandra a estar amaldiçoada mas todos os restantes, e o próprio rei de Micenas parece desejar o abismo quando concede caminhar sobre as tapeçarias púrpuras, aliciado por Clitemnestra, sua esposa adúltera, sabendo que aquele privilégio estava reservado aos deuses, incorrendo assim em hybris. Felizmente, possuímos o restante desta trilogia, a Oresteia, o que nos permite tirar mais algumas conclusões.

Tal como Tróia tinha caído por não escutar Cassandra, também Agamémnon não é sensível aos vaticínios dela e tem o mesmo destino, caindo às mãos de Clitemnestra e Egisto, que irão depois tombar no ferro de Orestes. O julgamento torna-se necessário, porque Orestes, por um lado, tinha sido um agente da justiça instigado por Apolo mas, por outro lado, também tinha assassinado a própria mãe. A casa dos atridas já vinha sendo fustigada há algumas gerações por uma série de vinganças sangrentas, que eram ao mesmo tempo reparadoras mas também iniciadoras de novos ciclos de injustiça a ser reparados. O julgamento de Orestes representa um questionar deste mesmo processo, que parece não ter fim. O próprio Apolo entra como testemunha no julgamento defendendo Orestes, e questionado sobre a ignomínia da morte de uma mãe, ele confessa que é apenas um veículo do seu pai Zeus. Aqui podemos questionar se a maldição de Apolo sobre Cassadra, logo sobre toda a humanidade, não teria sido igualmente ditada por Zeus.

Isto é particularmente significativo porque, quase no início da trilogia, Ésquilo tinha, no chamado “Hino a Zeus”, esboçado uma espécie de monoteísmo, onde o deus supremo do Olimpo já era quase que uma espécie de princípio metafísico. Já não se trata de uma intervenção caprichosa de algum deus mas da estrutura profunda da realidade, tal como os gregos a viam, que assim se mostra ser trágica para eles. O arranjo final da peça parece-nos estranho: Orestes é salvo à tangente não por intervenção divina soberana mas por um arranjo mais ou menos burocrático entre homens e deuses, e um difícil apaziguamento das Erínias. Isto é necessariamente assim devido a contradições na concepção originária que os gregos tinham da estrutura da realidade, onde não existe um verdadeiro princípio que não entre em contradição consigo mesmo se aplicado a todas as situações. Isto começou a ser resolvido por Platão e Aristóteles, mas só se tornou ultrapassado com o advento de Jesus Cristo.

Contudo, não é uma conquista ganha para sempre, tendo, pelo contrário, que ser reconquistada de geração em geração, ou então cairemos numa cosmovisão trágica e gnóstica. Começa logo por redescobrir o sentido profundo dos mitos como o de Cassandra, que só é efectivado quando reconhecemos as Cassandras do nosso tempo e a nossa tendência para o esquecimento e para a cegueira. Depois, não podemos ver a filosofia grega como uma relíquia histórica, definitivamente ultrapassada por Kant, Russel ou Derrida, que não passavam de pobres coitados empenhados em não entender nada. Por fim, temos que perceber aquilo que Cristo trouxe de novo e de alguma forma alberga-Lo em nós.

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