quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Da crença

Os jovens ateus, supondo não serem possuidores de fé, acham-se frequentemente acima dos crentes. Olham para a idosa do povo que acende uma vela a alguma instância sagrada, pedindo que o filho se cure, e sentem-se superiores, como se vivessem num patamar distinto da realidade, onde não há necessidade de recorrer a expedientes divinos para resolver os problemas pessoais. Acham também que podem dispensar o mistério, porque é sempre possível recorrer ao oráculo da ciência para obter uma explicação – ao mesmo tempo definitiva e não aberta a contestação mas também provisória e prenhe de reavaliação – sobre o que quer que seja. Na realidade, esta descrição aplica-se a muitos crentes modernos, que relegam a religião para um domínio íntimo totalmente irrelevante, como se rezar fosse tão vergonhoso como o hábito de ir sorrateiramente à dispensa comer bolachas. Os ditos crentes recusam reconhecer qualquer intervenção divina na realidade, para além da infusão de uma vaga inspiração, e consideram que se deve dar à ciência o que lhe é devido, segundo os cânones da modernidade, isto é, que seja ela a única fonte de conhecimento legítimo e ainda a única autoridade que possa ditar o que pode ou não pode ser conhecido e de que formas. Esta postura amorfa e “recolhida” do crente de hoje, ao invés de provocar uma tolerância para com o religioso, pelo contrário, incita o desprezo e mesmo o ódio em relação ao crente e à religião: o homem detesta o fraco e receia o forte.


Contudo, se recuarmos para períodos de fervor religioso mais autêntico, as coisas não eram assim. Antes de se espalhar a ideia kantiana da fé como crença em algo que não pode ser fundamentado, a fé era naturalmente a fidelidade a algo: a uma experiência em que o transcendente se tinha revelado à pessoa, importando que essa experiência não caia no esquecimento que a dissolução do cotidiano providencia, ou a simples experiência na confiança numa pessoa como Cristo. Isto em si é naturalmente problemático, e mais ainda quando se liga à aceitação de uma doutrina que levou séculos a ser desenvolvida. Percebemos que algo está errado quando um religioso mostra uma fé inabalável, monolítica, e vocifera mecanicamente palavras da doutrina religiosa, e o chamamos de radical, fanático, fundamentalista. O homem religioso sempre teve que lutar contra o esquecimento, daí na antiguidade ser tão fácil a multiplicação de deuses, que serviam para revigorar a crença, e o próprio Cristo foi continuamente providenciando o aparecimento de santos para trazer as pessoas para mais perto de si.


Pelo contrário, o ateu (ou melhor, o ateísta, porque o verdadeiro ateu é sobretudo aquele que não se interessa pela questão de Deus), muitas vezes sem perceber, opta pelo caminho fácil da crença inabalável. Ele já resolveu, de uma vez por todas, uma série de problemas: não existe Deus, nem transcendência, nem milagres, e toda a experiência religiosa é uma sequência prodigiosa de auto-enganos, ilusão de massas, demências mentais, mentiras, falsificações, etc. É também notória a sua crença inabalável sobre os ditames da ciência e, mais subtilmente, pelo poder criador da sua própria palavra. Ou seja, o ateísta não acredita no poder criador da palavra divina mas crê que tudo aquilo que ele é capaz de verbalizar sem ironia é verdade, o que remete para uma espécie de auto-divinização.


A crença ateísta apresenta fortes sintomas neuróticos, não só por ser crença esquecida mas por partir do princípio de que a matéria é uma ditadora de leis absolutas num universo sem qualquer inteligência permeando-o. Resta ao ateísta passar o resto da vida procurando contradições lógicas nas palavras dos santos, não percebendo o desnível ontológico que o separa deles, fazer interpretações retorcidas das palavras Bíblia, apregoar as falsificações históricas contra a religião tantas vezes já desmascaradas, e achar que quanto mais confinado estiver na sua torre de papel, mais protegido estará contra o obscurantismo, contra a crença cega, contra a ilusão. São figuras patéticas que têm orgasmos quando escrevem “deus não é grande”, acusando-O ao mesmo tempo de todos os males, especialmente do pecado de Ele não existir.


Contudo, quando nos apercebemos da dimensão patológica do ateísmo, isso não nos coloca de imediato numa via espiritual autêntica. Se entrarmos para uma comunidade religiosa, pensando que ela é uma porta de entrada para a verdadeira religião, o mais provável é cairmos numa situação dominada por aspectos tão profanos como aconteceria em qualquer outro grupo. Rapidamente nos desiludimos e apenas vemos ali “consumidores de ópio”. Resta-nos ir ao encontro do divino onde ele se encontra: visitamos as catedrais, ouvimos música sacra, contemplamos a vida de santos como o padre Pio, estudamos os milagres reconhecidos pela Igreja, etc. Mas nem isto pode nos bastar. Então ficamos sós, sem saída, sem recursos para ir mais além e questionamos se tudo é verdade ou mera ilusão: Deus existe? Cristo ressuscitou? Moisés dividiu as águas do Mar Vermelho? O arcanjo Gabriel ditou o Corão? Buda realmente despertou? Se tudo isto for mera curiosidade intelectual, não encontraremos uma verdadeira resposta, já que argumentos de um lado e de outro podem sempre ser lançados. Só podemos obter uma resposta se as questões se tornarem mortalmente sérias para nós, e aí sabemos que somos totalmente impotentes para lhes darmos resposta, mas ainda assim queremos saber. É realmente verdade? Uma resposta definitiva não pode vir de nenhuma pessoa nem de um grupo, qualquer que ele seja. Só pode vir de uma fonte absoluta e, mesmo sem percebermos, a nossa dúvida, quando é absolutamente sincera, já é uma forma de falarmos com Deus e, mesmo que seja para nega-Lo verbalmente, já começamos a aceitá-Lo em nós.



Este post foi também publicado, simbolicamente e excepcionalmente, no blogue Prometheo Liberto, onde iniciei recentemente a minha colaboração.

1 comentário:

Anónimo disse...

Descobri seu blog hoje e vou virar uma visitante regular dele. Achei muito adequada a distinção entre ateista e ateu. O ateista teve o cérebro abduzido pela lavagem cerebral darwinista-esquerdopata global e agora se tornou um militante obcecado da "causa". E o ateu é um sujeito simpático que está apenas distraído sobre as questões eternas do universo e do homem. Saudações brasileiras.