Os
jovens ateus, supondo não serem possuidores de fé, acham-se
frequentemente acima dos crentes. Olham para a idosa do povo que
acende uma vela a alguma instância sagrada, pedindo que o filho se
cure, e sentem-se superiores, como se vivessem num patamar distinto
da realidade, onde não há necessidade de recorrer a expedientes
divinos para resolver os problemas pessoais. Acham também que podem
dispensar o mistério, porque é sempre possível recorrer ao oráculo
da ciência para obter uma explicação – ao mesmo tempo definitiva
e não aberta a contestação mas também provisória e prenhe de
reavaliação – sobre o que quer que seja. Na realidade, esta
descrição aplica-se a muitos crentes modernos, que relegam a
religião para um domínio íntimo totalmente irrelevante, como se
rezar fosse tão vergonhoso como o hábito de ir sorrateiramente à
dispensa comer bolachas. Os ditos crentes recusam reconhecer qualquer
intervenção divina na realidade, para além da infusão de uma vaga
inspiração, e consideram que se deve dar à ciência o que lhe é
devido, segundo os cânones da modernidade, isto é, que seja ela a
única fonte de conhecimento legítimo e ainda a única autoridade
que possa ditar o que pode ou não pode ser conhecido e de que
formas. Esta postura amorfa e “recolhida” do crente de hoje, ao
invés de provocar uma tolerância para com o religioso, pelo
contrário, incita o desprezo e mesmo o ódio em relação ao crente
e à religião: o homem detesta o fraco e receia o forte.
Contudo,
se recuarmos para períodos de fervor religioso mais autêntico, as
coisas não eram assim. Antes de se espalhar a ideia kantiana da fé
como crença em algo que não pode ser fundamentado, a fé era
naturalmente a fidelidade a algo: a uma experiência em que o
transcendente se tinha revelado à pessoa, importando que essa
experiência não caia no esquecimento que a dissolução do
cotidiano providencia, ou a simples experiência na confiança numa
pessoa como Cristo. Isto em si é naturalmente problemático, e mais
ainda quando se liga à aceitação de uma doutrina que levou séculos
a ser desenvolvida. Percebemos que algo está errado quando um
religioso mostra uma fé inabalável, monolítica, e vocifera
mecanicamente palavras da doutrina religiosa, e o chamamos de
radical, fanático, fundamentalista. O homem religioso sempre teve
que lutar contra o esquecimento, daí na antiguidade ser tão fácil
a multiplicação de deuses, que serviam para revigorar a crença, e
o próprio Cristo foi continuamente providenciando o aparecimento de
santos para trazer as pessoas para mais perto de si.
Pelo
contrário, o ateu (ou melhor, o ateísta, porque o verdadeiro ateu é
sobretudo aquele que não se interessa pela questão de Deus), muitas
vezes sem perceber, opta pelo caminho fácil da crença inabalável.
Ele já resolveu, de uma vez por todas, uma série de problemas: não
existe Deus, nem transcendência, nem milagres, e toda a experiência
religiosa é uma sequência prodigiosa de auto-enganos, ilusão de
massas, demências mentais, mentiras, falsificações, etc. É também
notória a sua crença inabalável sobre os ditames da ciência e,
mais subtilmente, pelo poder criador da sua própria palavra. Ou
seja, o ateísta não acredita no poder criador da palavra divina mas
crê que tudo aquilo que ele é capaz de verbalizar sem ironia é
verdade, o que remete para uma espécie de auto-divinização.
A
crença ateísta apresenta fortes sintomas neuróticos, não só por
ser crença esquecida mas por partir do princípio de que a matéria
é uma ditadora de leis absolutas num universo sem qualquer
inteligência permeando-o. Resta ao ateísta passar o resto da vida
procurando contradições lógicas nas palavras dos santos, não
percebendo o desnível ontológico que o separa deles, fazer
interpretações retorcidas das palavras Bíblia, apregoar as
falsificações históricas contra a religião tantas vezes já
desmascaradas, e achar que quanto mais confinado estiver na sua torre
de papel, mais protegido estará contra o obscurantismo, contra a
crença cega, contra a ilusão. São figuras patéticas que têm
orgasmos quando escrevem “deus não é grande”, acusando-O ao
mesmo tempo de todos os males, especialmente do pecado de Ele não
existir.
Contudo,
quando nos apercebemos da dimensão patológica do ateísmo, isso não
nos coloca de imediato numa via espiritual autêntica. Se entrarmos
para uma comunidade religiosa, pensando que ela é uma porta de
entrada para a verdadeira religião, o mais provável é cairmos numa
situação dominada por aspectos tão profanos como aconteceria em
qualquer outro grupo. Rapidamente nos desiludimos e apenas vemos ali
“consumidores de ópio”. Resta-nos ir ao encontro do divino onde
ele se encontra: visitamos as catedrais, ouvimos música sacra,
contemplamos a vida de santos como o padre Pio, estudamos os milagres
reconhecidos pela Igreja, etc. Mas nem isto pode nos bastar. Então
ficamos sós, sem saída, sem recursos para ir mais além e
questionamos se tudo é verdade ou mera ilusão: Deus existe? Cristo
ressuscitou? Moisés dividiu as águas do Mar Vermelho? O arcanjo
Gabriel ditou o Corão? Buda realmente despertou? Se tudo isto for
mera curiosidade intelectual, não encontraremos uma verdadeira
resposta, já que argumentos de um lado e de outro podem sempre ser
lançados. Só podemos obter uma resposta se as questões se tornarem
mortalmente sérias para nós, e aí sabemos que somos totalmente
impotentes para lhes darmos resposta, mas ainda assim queremos saber.
É realmente verdade? Uma resposta definitiva
não pode vir de nenhuma pessoa nem de um grupo, qualquer que ele
seja. Só pode vir de uma fonte absoluta e, mesmo sem percebermos, a
nossa dúvida, quando é absolutamente sincera, já é uma forma de
falarmos com Deus e, mesmo que seja para nega-Lo verbalmente, já
começamos a aceitá-Lo em nós.
Este
post foi também publicado, simbolicamente e excepcionalmente, no
blogue Prometheo Liberto, onde iniciei recentemente a minha
colaboração.
1 comentário:
Descobri seu blog hoje e vou virar uma visitante regular dele. Achei muito adequada a distinção entre ateista e ateu. O ateista teve o cérebro abduzido pela lavagem cerebral darwinista-esquerdopata global e agora se tornou um militante obcecado da "causa". E o ateu é um sujeito simpático que está apenas distraído sobre as questões eternas do universo e do homem. Saudações brasileiras.
Enviar um comentário