Ninguém defende que
uma manifestação possa ser puramente espontânea, no sentido de ser um resultado
de movimentos individuais aleatórios, já que isso anularia o próprio sentido da
coisa e daí não poderia daí advir qualquer vantagem política. Os organizadores
de um protesto não negam a sua convocação mas falam em espontaneidade das
reacções, em dinâmica social, para dizer que não actuaram como manipuladores de
massas mas como intérpretes de uma vontade patente mas ainda não expressa. E em
geral isto é verdade, porque os organizadores materiais de uma manifestação
estão demasiado ocupados para poderem fazer o trabalho subterrâneo e de longa
duração de gestão das consciências alheias, mas desenganem-se aqueles que acham
que a divisão do trabalho é uma invenção liberal, pois ela existe desde que os
primeiros mamíferos começaram a caçar ou a organizar
a vigilância em conjunto. Contudo, o mito da espontaneidade persiste, tanto no
cidadão comum como no letrado, porque nenhum deles tem coragem suficiente para
reconhecer o quanto é manipulado desde fora.
Reconheçamos o quão anémicos
são os actuais caminhos da dialéctica, quando alguém, que pretende contestar
uma opinião que é dada como certa por todos, sente-se na obrigação de afirmar
que “uma coisa é a opinião pública, outra é a opinião publicada”. Claro que a
maioria dos cidadãos não partilha da opinião “publicada” (leia-se impressa, radiodifundida,
teledifundida, blogoesparramada), que é abortista, gayzista, pederasta, hedonista,
cocaínama, globalista, ultra-individualista, etc. Aqui está algo a ser
aproveitado por conservadores e tradicionalistas, mas apenas no caso de serem
totalmente alteradas as relações entre o indivíduo e a coisa pública. Uma
opinião pode ser partilhada por 98% das pessoas mas, se estas não tiverem canais
de expressão, vai pesar menos do que a opinião dos restantes 2% que esteja bem
articulada e veiculada pelos canais mediáticos. Isto quer dizer que, em termos
políticos, só existe opinião publicada e tudo o resto é um imenso resíduo com
um peso insignificante, tal como a famosa matéria negra, que talvez constitua a
esmagadora percentagem da matéria do universo físico mas nem sequer sabemos se
ela existe.
É impossível não ver
algo de estranho no facto das massas, cuja opinião em geral não conta
rigorosamente para nada, de repente, quando convocadas para um protesto, serem tidas
como a força preponderante na sociedade. Obviamente que as massas só ganham tal
estatuto quando repetem cegamente alguma opinião decretada pela pequena minoria
de iluminados que domina a opinião publicada. Na verdade, trata-se de algo
necessário para ambas as partes. Por um lado, as elites ocultas procuram algum
tipo de legitimação popular, que tanto pode ocorrer em actos eleitorais como em
manifestações ou outros actos públicos informais: assim a democracia dá um leve
indício de funcionar conforme o que era suposto. Por outro lado, a populaça precisa
de ser ouvida para aliviar as suas tensões, e no fundo sabe que apenas participa
numa encenação grotesca, mas um pacto de silêncio atira para o fundo da
consciência esta constatação.
Os actos que supostamente
legitimam a democracia são precisamente aqueles que a consolidam como uma
oligarquia impenetrável. Era suposto as eleições servirem para o povo eleger
para seu governo aqueles que considera os seus melhores representantes, levando
à formação de uma elite pelo mérito ou então à responsabilização colectiva pela
escolha de medíocres. Ora, nem isto aconteceu na antiga democracia directa
grega e menos ainda ocorre na moderna democracia representativa, e o
alargamento do sufrágio ao invés de corrigir isto apenas parece ter agravado a
situação. Se na democracia directa qualquer um com algum talento natural para a
palavra pode ser um candidato natural, na democracia representativa o candidato
já pressupõe atrás de si uma máquina capaz de chegar aos possíveis representados
por meios não democráticos, ou seja, só é possível ser eleito através de um
poder já consolidado e não eleito, que por vezes se chama de “partido” mas que
quase sempre é um aglomerado de interesses que o transcende largamente, podendo
mesmo envolver grupos internacionais. O cidadão quando vota apenas está
legitimando este sistema oligárquico – que está encoberto mas é relativamente
fácil de identificar, pelo menos até certos limites –, que lhes dá a escolher
uma série de candidatos, todos muito idênticos e medíocres, com algumas
aberrações misturadas para os primeiros parecerem mais razoáveis. No fim,
podemos dizer que a sentença “cada povo tem os políticos que merece” se torna numa
profecia auto-realizável, dado que o processo envolve uma corrupção moral de
parte a parte.
Muitos acham que isto se corrige com uma coisa estranha
chamada “democracia participativa”, onde presumivelmente se incluem todos os
actos não oficiais onde se discute a coisa pública. Só que aqui estamos
novamente limitados pela linguagem pública e pela selecção de temas ditadas por
uma ínfima minoria e que já determinam de antemão todo um leque de opções, pelo
que o processo é sobretudo uma dominação mental indolor, funcionando até como
uma espécie de terapia, onde os sofrimentos e as ideias individuais vão se acomodando
progressivamente a um modelo pré-definido de discurso, o único que possibilita
a obtenção de algum eco, e no final tudo se transforma na única coisa que
poderia ser desde o primeiro momento. Não é coincidência que a ideia de
autonomia pessoal e a presunção de pensar pela própria cabeça tenham se
difundido precisamente na altura em que se tornaram mais irreais que nunca,
porque isto coincidiu com a aplicação generalizada da estratégia de revolução lenta,
isto é, quando se trocou a proposta explícita de criar um mundo socialista por
uma miríade de pequenas alterações, aparentemente independentes umas das outras
e cada uma com os seus métodos próprios de consecução. Tudo isto parece
simplesmente «o mundo em mudança», e querer se opor ao conjunto parece um
esforço tão inglório como querer parar as vagas do oceano com as próprias mãos.
Não é ao nível do discurso que percebemos alguma unidade entre todas as
propostas parciais mas reconhecendo uma mentalidade de base que permeia todas:
está sempre implícito o imperativo de abolir o passado em nome de um projecto
de futuro. A nível material podemos também encontrar uma certa unidade nas
fontes de financiamento de todos os movimentos de ruptura e de “avanço
civilizacional”, mas isto não implica que exista um grande controlo sobre o
rumo das coisas somente que o indivíduo está impotente contra uma rede
incessante de pressões alienantes.
1 comentário:
Simplesmente genial. Um texto escancaradamente verdadeiro sobre as nossas democracias. As massas continuam onde sempre estiveram: peças do jogo, mas fora do jogo. Para divulgar, guardar, pendurar na parede. Aqui no Brasil, essa realidade é um verdadeiro escárnio a céu aberto. Parabéns.
Enviar um comentário