terça-feira, 30 de julho de 2013

As virtudes da compreensão lenta

É comum fazer-se o elogio implícito à capacidade de rápida compreensão. Quando ela se dirige a fins eminentemente práticos, diz-se que é uma questão de esperteza, e quando se trata de problemas de cariz intelectual então é vista como inteligência ou mesmo genialidade. Contudo, todos nós conhecemos “gente esperta”, que sempre conseguiu se desenrascar, mas que chegam a uma certa idade e, de repente, parecem ter sido ultrapassados por todos os outros, e continuam a aplicar receitas estereotipadas que não resultam mais e só eles não percebem como se tornaram patéticos. Sobre os “génios precoces” a coisa ainda é mais catastrófica, não porque alguns não consigam ocupar postos de elevada competência intelectual, mas porque quase todos são atacados de tantas fragilidades que, no conjunto, mais parecem débeis mentais.
Os antigos já sabiam que desenvolver muito a inteligência independentemente de outras capacidades era o mesmo que o corpo ter um membro muito mais desenvolvido do que os outros, o que só acabaria por atrapalhar e criar um ser monstruoso. Frank Abagnale – o maior impostor da história, sem contar com os ocupantes de cargos políticos – diz que a sua perdição de juventude era a enorme capacidade de observação que tinha e que lhe permitia engendrar num instante os esquemas mais mirabolantes. Ele tinha esta capacidade muito desenvolvida em relação ao conhecimento que tinha do conjunto da sociedade e, especialmente, das complexidades do ser humano, que só veio a adquirir mais tarde, tornando-se num cidadão respeitável. Em geral, ser detentor de uma capacidade especial coloca logo dois problemas: por um lado, a pessoa é detentora de um poder que dificilmente conseguirá dominar; mas irá também chamar atenções e assim suscitar invejas, receios e a cobiça de quem a queira usar para fins que ela nem suspeita.
Estas considerações ganham uma especial relevância quando se trata da avaliação dos problemas que a realidade apresenta e que transcendem o lado meramente prático, como acontece com os problemas sociais, políticos, históricos, etc. Ainda continuamos a valorizar o artista que mais rapidamente ofereça a interpretação de qualquer acontecimento. Os canais de notícias apresentam rotineiramente painéis de “experts” comentando eventos quase em tempo real, e no facebook qualquer um pode simular essa capacidade. É fácil perceber que, com este ritmo vertiginoso, já ultrapassamos o tempo em que cada um tem opinião sobre tudo, porque já nem há tempo para engendrar essa opinião, ainda que esta seja a mera recolha de ideias flutuantes no ambiente. O que temos hoje é um tipo abastardado de militância, onde cada um repete o discurso do seu grupo de referência, ainda que este seja mera criação mental. É frequente um indivíduo frequentar um site de notícias apenas para repetir, quase sem alterações, o mesmo comentário em vários locais, primeiro numa notícia de política nacional, depois numa de futebol e por fim numa a respeito do último produto tecnológico. E não faz isto como se fosse uma coisa paralela, mas acredita que está mesmo em sintonia com as várias notícias.
O que é estranho é que estes casos não são encarados como o que são – perturbações mentais – mas apenas como a opinião legítima em liberdade democrática, que não é visto apenas como o direito ao erro mas como o privilégio do erro ou o discurso aleatório reclamarem para si o mesmo valor que aquele possuído pela verdade. Isto quer dizer que aqueles que se esforçam por saber o melhor possível como as coisas são não podem ter esperanças de obterem qualquer reconhecimento por isso. Muito provavelmente, como vão dizer coisas que não batem certo como o «senso comum», serão acusados de proferir opiniões pouco reflectidas, quando será o oposto. As massas estão imbecilizadas, pelo que agradá-las só é possível se representarmos um ponto central dessa imbecilidade. Isto não quer dizer que não temos o dever de fazer algo por essas massas, até porque não podemos ser ingénuos de achar que a imbecilidade colectiva não nos afecta. Mas para fazermos algo de útil, num contexto de caos, temos primeiro que nos recolher para reflectir e buscar a companhia, ainda que imaginária, daqueles que fazem ou fizeram o mesmo. É aqui que se torna importante considerar o fenómeno do entendimento e da compreensão.
O simples entendimento de algo é uma pequena luz que se faz em nós. Contudo, nem toda a luz é entendimento e menos ainda compreensão (esta exposição não tem a pretensão de ter validade científica, nem há a preocupação de usar os vários termos de forma técnica). Esta luz pode ter duas modalidades, que são dificilmente articuláveis. Numa, ela deriva da nossa abertura para a realidade e assim as coisas “dizem” o que são na medida das nossas capacidades e do nosso grau de abertura. Noutra variante, o clarão é interno e tentamos depois derramá-lo sobre a realidade, ou seja, ficamos deslumbrados por alguma teoria e tentamos encaixar os factos nela. Aparentemente, a escolha entre os dois casos é fácil de fazer, porque no primeiro caso estamos na senda da verdade e no segundo estamos na via da ilusão. Contudo, estas duas modalidades de entendimento não existem à disposição de forma pura e dependem em certa medida uma da outra. Basta ver que não podemos nos iludir com teorias desde que nascemos porque nem sequer possuímos uma linguagem que nos permita fazer isso no início. Por outro lado, apenas aprendemos com a realidade fenómenos de ordem imediata, ainda que complexos, e não mecanismos de ordem superior, como os relacionados com a história, com a política ou com o conjunto da sociedade. Ou seja, a nossa abertura para a realidade também é condicionada por instrumentos de criação humana, como a linguagem e teorias explicativas, mesmo que erradas, pois mesmo estas podem nos servir de alavanca para vermos algo que sem elas permaneceria oculto. Palavras e ideias devem tornar-se, no intelectual sério, como que órgãos de percepção, que nos permitem captar estruturas sociais, correntes históricas, estratégias políticas de longo alcance e assim por diante. Então, a compreensão precisa desesperadamente das palavras e da teoria, e ao mesmo tempo tem de transcende-las numa abertura para a realidade, e isto de certa forma emula o próprio ideal científico.
Existem dois riscos óbvios neste processo. Quem apenas queira ficar com a abertura para a realidade terá, no máximo, um conhecimento mudo e muito provavelmente irá, mais tarde ou mais cedo, adoptar alguma teoria pueril para encaixar as sua «sabedoria», iludido de ter atingido algum tipo de iluminação. Por outro lado, os adeptos da “teoria fechada” irão se tornar meros burocratas do intelecto ou, pior ainda, iludir-se de que a realidade está contida na sua teoria e talvez que até tenha sido criada por ela. Obviamente que ainda pode haver um terceiro tipo de risco, que é o da articulação totalmente errada entre as duas formas de conhecimento, como juntar práticas esotéricas de quinta categoria com teorias pseudo-científicas. Pessoalmente, todos podemos correr qualquer um dos riscos, mas o potencial de destruição social é maior no caso dos adeptos da “teoria fechada”, até por estarem frequentemente ligados ao prestígio da ciência.
Existe um critério prático para reconhecer se estamos em presença de alguém que está na ilusão da “teoria fechada” e que serve para percebermos se nós mesmos estamos metidos nesse labirinto. Se for o caso, então existe a compreensão rápida e frequentemente impressionante, onde tudo aparece enquadrado sem falhas. O sujeito que, quase em tempo real, dá uma explicação de um fenómeno complexo não compreendeu esse fenómeno mas apenas mecanizou um processo de adaptação de uma teoria a uns factos escolhidos à medida. A verdadeira compreensão é sempre lenta. Pode partir até de alguma teoria mas temos que fazer uma intensa dialéctica entre ela e a realidade dos factos até chegarmos a um entendimento em que as duas coisas cheguem a algum tipo de acordo, onde fiquem salientados os pontos de obscuridade e de ignorância. Quase 100% dos comentaristas de blogs e da comunicação social ignoram a necessidade de fazer isto e acabam por ser meros propagandistas voluntários ou involuntários.
Pode também acontecer que alguém mostre uma aparente compreensão rápida mas que tenha feito esta dialéctica. Neste caso, há um prolongado trabalho anterior – os propagandistas também são esforçados mas fazem um trabalho de outra ordem – que lhes permite reconhecer que uma aparente nova situação apenas repete algum padrão conhecido, ou então que aquilo que foi identificado como o surgimento de um fenómeno é apenas uma manifestação tardia de algo que passou despercebido às massas. Apenas conseguimos distinguir claramente estas pessoas dos meros propagandistas se já tivermos feito um esforço prolongado no mesmo sentido. Para o leigo é normal que o propagandista diga coisas com “mais sentido”, precisamente porque este lhe faz um apelo emocional usando ideias correntes nas quais o leigo já acredita sem perceber. O verdadeiro intelectual ilumina de outra forma, as suas explicações parecem fazer mais sentido em certa medida, mas também assustam porque exigem que o ouvinte saia do conforto das suas ideias feitas e reconheça que o seu horizonte de compreensão é limitado. Mas nem este critério é muito fácil de aplicar. A nossa ignorância em certas áreas pode ser tão grande que se depararmos com uma “teoria fechada” muito tacanha ainda assim podemos sentir aquilo como uma grande abertura, como um mar de possibilidades e perplexidades, ou seja, que estamos na senda do caminho árduo para a verdade, quando apenas demos o primeiro passo num caminho sem fim. Não há outro caminho para a compreensão a não ser o de estarmos preparados para, a qualquer momento, sermos atirados para o deserto.

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