quinta-feira, 11 de julho de 2013

O que querem os capitalistas?

Antes de entrar dentro da questão da organização dos movimentos de massas, creio ser conveniente fazer um (aparente) desvio para assuntos que há muito estavam previstos para entrarem no blog, e que agora podem entrar num contexto talvez muito mais apropriado, além de servirem para elucidar alguns factores chave da condução das massas. Em primeiro lugar, vou tentar mostrar o que é a mentalidade de um capitalista. Esta é uma figura que os blogues de “auto-referência” apenas abordam através de abstrações económicas, seja para louvar ou amaldiçoar, ou então mediante alguns chavões sociológicos e psicológicos sem profundidade alguma. Vou focar-me num aspecto central – o objectivo a que tendem os capitalistas – e, por motivos de exemplificação, escolherei 3 situações que tentam ser paradigmáticas. Naturalmente que é difícil de encontrar estes tipos «puros» assim na realidade, já que o ser humano está sempre nalgum tipo de transformação mesmo que não o perceba.

Comecemos por considerar um jovem empreendedor pronto para lançar o seu negócio. Na sua adolescência, enquanto os amigos apenas sonhavam com bebedeiras ou, pior, em obter algum tipo de aprovação grupal, ele já tinha um sonho, mas um sonho realista: tinha ambição de enriquecer a partir dos seus próprios talentos, sem se deixar arrastar pela choradeira derrotista do seu meio cultural e social. Passou anos a estudar formas de investimentos e durante horas sem fim burilou uma ideia que parece ter tudo para vingar. Teve o cuidado de desenhar um sistema de negócios completo, para que a sua boa ideia não ficasse a boiar num limbo de optimismo ingénuo. Olhou para a legislação, para os regulamentos e até conseguiu obter financiamento para o projecto. Ele não quer um subsídio do Estado porque confia que o mercado livre conseguirá valorizar o seu produto. Também não quer que o Estado crie regulamentação artificial, a partir da qual poderia conceber um produto destinado a resolver as necessidades assim criadas, dado que ele acredita mesmo que vai dar algo às pessoas que elas realmente precisam. Ele é, neste momento, verdadeiramente um entusiasta do capitalismo – do laissez-faire, do liberalismo económico, do livre comércio, da concorrência, como quiserem – mas, na verdade, ele ainda não é um capitalista.

Avancemos no tempo, e 15 anos depois o nosso homem não só continua no mercado como o seu negócio já possui uma dimensão nacional, exportando até para vários países. Dado que a maioria das empresas acaba por falir, poderíamos supor que o sucesso do nosso capitalista – agora já é um de pleno direito – o tornou num optimista férreo do sistema capitalista, talvez apenas mostrando um optimismo mais sereno devido a uma idade mais madura. Mas dificilmente assim será, por várias razões. Desde logo, nenhuma teoria liberal explica o mercado como ele realmente é, sobretudo quando tentamos transpor as reflexões de autores anglo-saxónicos para outros contextos, e aquelas teorias que tanto o entusiasmaram agora parecem um pouco vazias por deixarem tantos factores relevantes de fora, isto sem falar dos próprios liberais, sempre tão prontos a defender algumas abstracções mas que raramente se dão ao trabalho de estudar a teoria a fundo e muito menos de identificar as suas lacunas. Em termos mais práticos, ele sabe que nem tudo conseguiu atingir foi fruto do seu talento. Recorda que o factor sorte foi determinante em certas alturas, e quando teve que se expandir quase tudo poderia ter ido por água abaixo. Além disso, não conseguiu estar assim tão longe do Estado como imaginava, já que este é um dos seus clientes regulares. O mito recorrente diz que, nesta altura, o nosso homem se tornou num capitalista ganancioso, ávido de lucros a todo o custo. Sem dúvida que isto pode ocorrer, mas há um factor que é certamente mais relevante: um medo enorme de perder tudo, quer seja para um grande grupo internacional ou então para um jovem dinâmico, como ele foi, e que agora pode entrar no mercado a concorrer com ele, porque sabe que não tem a mesma energia e criatividade de antes para o enfrentar.

Paradoxalmente, agora que o nosso homem é um verdadeiro capitalista, ele passou a odiar o capitalismo. Desta forma, ele vai tentar fazer cada vez mais negócios com o Estado, ainda que seja para vender algo que não sirva para nada, na esperança de ali ter um cliente vitalício. Não vai recusar subsídios públicos e até os poderá exigir em nome do interesse estratégico que o seu negócio supostamente representa. Também vai querer que o Estado “regule” o mercado, ou seja que crie legislação à medida dos seus produtos – seja em nome da segurança, da qualidade, ou por qualquer outra razão –, ao mesmo tempo que dificulte a entrada no mercado de novos competidores. Pela mesma razão de limitar a concorrência, não se vai preocupar com o aumento de impostos, que não o afectarão porque o Estado de certa forma acaba por ser parceiro do seu negócio, e aquilo que tira com uma mão dá em duplicado com a outra. Ou seja, o que o nosso capitalista quer é um socialismo – obviamente sem cair na ruptura marxista-leninista –, que, se bem afinado, até lhe é bem mais benéfico e “moralmente justificado” do que o corporativismo.

Vamos dar mais um passo e supor que outros 15 anos passaram. O negócio progrediu ainda mais, e o nosso homem agora tem um império, não apenas em termos empresariais mas também em termos de contactos pessoais ou de possibilidades de influência. Não é apenas a família que se expandiu, nem a quantidade de amantes ou de clientes internacionais. A determinada altura, o nosso homem foi convidado a participar de certos grupos discretos, aos quais sempre tinha sido avesso, mas sábios conselheiros garantiram-lhe que aquela era a via de resolver algumas das suas inquietações. Uma delas é a inquietação material, que fica definitivamente relacionada com a ligação a oligopólios internacionais. Finalmente, ele percebeu algo que já vinha intuindo há muito tempo: a economia é irrelevante no mundo moderno para quem tem o domínio dos instrumentos financeiros e o poder de escolher políticos e ditar legislações. Mas, ao mesmo tempo, esta segurança material total provoca um vazio, porque as ambições que ele tinha, primeiro de dinheiro, depois de estabilidade económica, deixam de ter sentido, já que estão asseguradas à partida. Então, é-lhe feita uma segunda revelação, que vai de encontro a outra sua inquietação mais recente advinda do avançar da idade e da perda de vigor físico. A inquietação está relacionada com a morte, o sentido da vida e a continuidade familiar. E a revelação diz que o dinheiro, a política e as leis são instrumentos para que aquele grupo, a que ele agora pertence, possa mudar o mundo, manipular a natureza humana e, em alguns casos, até para tentar encontrar formas de espiritualizar a matéria. Então, quando o nosso homem chega a meta-capitalista, ele passa a querer algo como um super-socialismo, que é também uma espécie de totalitarismo religioso planetário, desde que o comando fique nas mãos daquela elite, que já há muito consegue garantir a continuação de poderosas dinastias familiares.

Apesar de estar a fazer um exercício teórico, os meta-capitalistas realmente existem e tentam fazer algo como o que aludi. Podemos questionar até que ponto pode resultar uma combinação que mete elementos tão contraditórios como: uma nova religião universal – uma espécie de papado laico –; o controlo total socialista; os instrumentos capitalistas e financeiros; e ainda a democracia liberal. Na verdade, trata-se de um casamento quádruplo necessário, já que cada uma destas coisas não consegue sobreviver nas suas formulações puras mas ao mesmo tempo está sendo feita uma tentativa implementá-las desta forma. Assim, torna-se necessária a existência das outras três partes. Digamos que isto é viável até à extinção da espécie humana, porque se trata da criação de um monstro de quatro cabeças, cada uma delas um ersatz de alguma função existente nas sociedades, mas enquanto que as funções naturais existem nos seus domínios respectivos, neste caso todas as “cabeças” entram em tudo – tudo se tornou democrático, comercializável, alvo de regulamentação e da religião do politicamente correcto –, cada uma delas provocando distorções insustentáveis, mas as quatro juntas dão um nível mínimo de coerência global através das limitações que umas impõem às restantes. Tal como a hidra, de pouco serve amputar uma destas cabeças isoladamente, porque logo outra surge em seu lugar.

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