Antes de entrar dentro da questão da
organização dos movimentos de massas, creio ser conveniente fazer um (aparente)
desvio para assuntos que há muito estavam previstos para entrarem no blog, e
que agora podem entrar num contexto talvez muito mais apropriado, além de
servirem para elucidar alguns factores chave da condução das massas. Em
primeiro lugar, vou tentar mostrar o que é a mentalidade de um capitalista.
Esta é uma figura que os blogues de “auto-referência” apenas abordam através de
abstrações económicas, seja para louvar ou amaldiçoar, ou então mediante alguns
chavões sociológicos e psicológicos sem profundidade alguma. Vou focar-me num
aspecto central – o objectivo a que tendem os capitalistas – e, por motivos de
exemplificação, escolherei 3 situações que tentam ser paradigmáticas.
Naturalmente que é difícil de encontrar estes tipos «puros» assim na realidade,
já que o ser humano está sempre nalgum tipo de transformação mesmo que não o
perceba.
Comecemos por considerar um jovem
empreendedor pronto para lançar o seu negócio. Na sua adolescência, enquanto os
amigos apenas sonhavam com bebedeiras ou, pior, em obter algum tipo de
aprovação grupal, ele já tinha um sonho, mas um sonho realista: tinha ambição
de enriquecer a partir dos seus próprios talentos, sem se deixar arrastar pela
choradeira derrotista do seu meio cultural e social. Passou anos a estudar
formas de investimentos e durante horas sem fim burilou uma ideia que parece
ter tudo para vingar. Teve o cuidado de desenhar um sistema de negócios
completo, para que a sua boa ideia não ficasse a boiar num limbo de optimismo
ingénuo. Olhou para a legislação, para os regulamentos e até conseguiu obter
financiamento para o projecto. Ele não quer um subsídio do Estado porque confia
que o mercado livre conseguirá valorizar o seu produto. Também não quer que o
Estado crie regulamentação artificial, a partir da qual poderia conceber um
produto destinado a resolver as necessidades assim criadas, dado que ele
acredita mesmo que vai dar algo às pessoas que elas realmente precisam. Ele é,
neste momento, verdadeiramente um entusiasta do capitalismo – do laissez-faire, do liberalismo económico,
do livre comércio, da concorrência, como quiserem – mas, na verdade, ele ainda
não é um capitalista.
Avancemos no tempo, e 15 anos depois o nosso
homem não só continua no mercado como o seu negócio já possui uma dimensão
nacional, exportando até para vários países. Dado que a maioria das empresas acaba
por falir, poderíamos supor que o sucesso do nosso capitalista – agora já é um de
pleno direito – o tornou num optimista férreo do sistema capitalista, talvez
apenas mostrando um optimismo mais sereno devido a uma idade mais madura. Mas dificilmente
assim será, por várias razões. Desde logo, nenhuma teoria liberal explica o
mercado como ele realmente é, sobretudo quando tentamos transpor as reflexões de
autores anglo-saxónicos para outros contextos, e aquelas teorias que tanto o
entusiasmaram agora parecem um pouco vazias por deixarem tantos factores
relevantes de fora, isto sem falar dos próprios liberais, sempre tão prontos a
defender algumas abstracções mas que raramente se dão ao trabalho de estudar a
teoria a fundo e muito menos de identificar as suas lacunas. Em termos mais
práticos, ele sabe que nem tudo conseguiu atingir foi fruto do seu talento. Recorda
que o factor sorte foi determinante em certas alturas, e quando teve que se
expandir quase tudo poderia ter ido por água abaixo. Além disso, não conseguiu
estar assim tão longe do Estado como imaginava, já que este é um dos seus
clientes regulares. O mito recorrente diz que, nesta altura, o nosso homem se
tornou num capitalista ganancioso, ávido de lucros a todo o custo. Sem dúvida
que isto pode ocorrer, mas há um factor que é certamente mais relevante: um
medo enorme de perder tudo, quer seja para um grande grupo internacional ou
então para um jovem dinâmico, como ele foi, e que agora pode entrar no mercado
a concorrer com ele, porque sabe que não tem a mesma energia e criatividade de
antes para o enfrentar.
Paradoxalmente, agora que o nosso homem é um
verdadeiro capitalista, ele passou a odiar o capitalismo. Desta forma, ele vai
tentar fazer cada vez mais negócios com o Estado, ainda que seja para vender
algo que não sirva para nada, na esperança de ali ter um cliente vitalício. Não
vai recusar subsídios públicos e até os poderá exigir em nome do interesse
estratégico que o seu negócio supostamente representa. Também vai querer que o
Estado “regule” o mercado, ou seja que crie legislação à medida dos seus
produtos – seja em nome da segurança, da qualidade, ou por qualquer outra razão
–, ao mesmo tempo que dificulte a entrada no mercado de novos competidores. Pela
mesma razão de limitar a concorrência, não se vai preocupar com o aumento de
impostos, que não o afectarão porque o Estado de certa forma acaba por ser
parceiro do seu negócio, e aquilo que tira com uma mão dá em duplicado com a outra.
Ou seja, o que o nosso capitalista quer é um socialismo – obviamente sem cair
na ruptura marxista-leninista –, que, se bem afinado, até lhe é bem mais benéfico e “moralmente justificado” do
que o corporativismo.
Vamos dar mais um passo e supor que outros 15
anos passaram. O negócio progrediu ainda mais, e o nosso homem agora tem um
império, não apenas em termos empresariais mas também em termos de contactos
pessoais ou de possibilidades de influência. Não é apenas a família que se
expandiu, nem a quantidade de amantes ou de clientes internacionais. A
determinada altura, o nosso homem foi convidado a participar de certos grupos
discretos, aos quais sempre tinha sido avesso, mas sábios conselheiros garantiram-lhe
que aquela era a via de resolver algumas das suas inquietações. Uma delas é a
inquietação material, que fica definitivamente relacionada com a ligação a
oligopólios internacionais. Finalmente, ele percebeu algo que já vinha intuindo
há muito tempo: a economia é irrelevante no mundo moderno para quem tem o domínio dos instrumentos financeiros e
o poder de escolher políticos e ditar legislações. Mas, ao mesmo tempo, esta
segurança material total provoca um vazio, porque as ambições que ele tinha,
primeiro de dinheiro, depois de estabilidade económica, deixam de ter sentido,
já que estão asseguradas à partida. Então, é-lhe feita uma segunda revelação,
que vai de encontro a outra sua inquietação mais recente advinda do avançar da
idade e da perda de vigor físico. A inquietação está relacionada com a morte, o
sentido da vida e a continuidade familiar. E a revelação diz que o dinheiro, a
política e as leis são instrumentos para que aquele grupo, a que ele agora
pertence, possa mudar o mundo, manipular a natureza humana e, em alguns casos,
até para tentar encontrar formas de espiritualizar a matéria. Então, quando o
nosso homem chega a meta-capitalista, ele passa a querer algo como um
super-socialismo, que é também uma espécie de totalitarismo religioso
planetário, desde que o comando fique nas mãos daquela elite, que já há muito
consegue garantir a continuação de poderosas dinastias familiares.
Apesar de estar a fazer um exercício teórico, os meta-capitalistas realmente existem e tentam fazer algo como o que aludi.
Podemos questionar até que ponto pode resultar uma combinação que mete elementos
tão contraditórios como: uma nova religião universal – uma espécie de papado
laico –; o controlo total socialista; os instrumentos capitalistas e
financeiros; e ainda a democracia liberal. Na verdade, trata-se de um casamento
quádruplo necessário, já que cada uma destas coisas não consegue sobreviver nas
suas formulações puras mas ao mesmo tempo está sendo feita uma tentativa implementá-las desta forma. Assim, torna-se
necessária a existência das outras três partes. Digamos que isto é viável até à
extinção da espécie humana, porque se trata da criação de um monstro de quatro
cabeças, cada uma delas um ersatz de
alguma função existente nas sociedades, mas enquanto que as funções naturais
existem nos seus domínios respectivos, neste caso todas as “cabeças” entram em
tudo – tudo se tornou democrático, comercializável, alvo de regulamentação e
da religião do politicamente correcto –, cada uma delas provocando distorções
insustentáveis, mas as quatro juntas dão um nível mínimo de coerência global através
das limitações que umas impõem às restantes. Tal como a hidra, de pouco serve
amputar uma destas cabeças isoladamente, porque logo outra surge em seu lugar.
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