segunda-feira, 15 de julho de 2013

O que querem os socialistas?

Se o post anterior está correcto, isso implica que capitalistas e socialistas têm forçosamente de cooperar em alguma parte do trajecto. Está amplamente comprovado o financiamento de movimentos socialistas por capitalistas, mas aquilo de que estou a tratar no momento diz respeito às motivações que, de parte a parte, levam a esse casamento. Naturalmente que os movimentos socialistas, e mesmo comunistas, não são apenas financiados directamente por capitalistas. O apoio financeiro também pode vir da militância de base, de algum tipo de subsidiação estatal interna, de países socialistas e comunistas amigos da causa, e até de Estados liberais que, por algum motivo, achem que lhes será proveitoso, naquela conjectura, fomentar algum tipo de socialismo num determinado ponto do planeta. Quem não percebe a relevância da questão do financiamento do socialismo é porque ainda não parou para pensar na quantidade astronómica de dinheiro necessária para pagar a intelectuais e artistas, para realizar congressos internacionais, para fazer constantes acções de propaganda e mesmo para preparar grupos armados e de “desobediência civil”. Em Portugal, ninguém ainda se preocupou em descobrir quem financia o Bloco de Esquerda, que sem ter a incansável militância comunista, apareceu em cena com uma estrondosa força mediática e gastando rios de dinheiros em “outdoors” por todo o país. Não sendo um partido destinado a ocupar posições de governação mas apenas a criar rupturas sociais, certamente que não é financiado por empresários expectantes fazer negócios com o Estado mas com outras pretensões.

Em certa medida, as ambições do socialista seguem o percurso inverso da evolução dos objectivos do capitalista, tal como a delineei anteriormente. O objectivo final do capitalista – quando já é meta-capitalista – aponta para algum tipo de transcendência, no mínimo para a criação ou manutenção de uma dinastia familiar que englobe a sua vida e vá muito além dela, mas em geral os objectivos são bem mais ambiciosos e apontam para algum tipo de influência sobre a totalidade da sociedade e dos seus destinos. O socialista parte precisamente de um objectivo transcendente, embora ele finja repudiar tudo o que não seja materialismo. Mas o que podemos dizer do varredor de rua que também pode ser um Aristóteles ou um Miguel Ângelo, que os marxistas acreditam ser uma inevitabilidade, da qual eles são agentes? Nunca religião alguma prometeu uma transfiguração tão grande da natureza humana a ser operada num mundo imanente. Isto é próprio na mentalidade revolucionária, que coloca a transcendência dentro do próprio devir histórico, o que se consubstancia na inversão do tempo. Esta inversão significa que o revolucionário, ao invés de considerar a história como um percurso de um passado mais ou menos conhecido para um futuro largamente incerto, considera que o fim da história já é conhecido por ele e esse fim dá um sentido retroactivo ao acontecer histórico, inclusive fornecendo uma justificação plena das suas acções transformadoras, quer estas sejam suaves e graduais, quer sejam brutais e sangrentas.

Depois de desmoralizado o socialismo utópico – que descrevia a sociedade ideal mas não investigou a fundo meios de transformação social – o socialismo “científico” impôs-se, seguindo um caminho inverso baseado nas técnicas de transformação social, permanecendo os fins últimos como uma inspiração tanto vaga como poderosa. Então, num segundo nível, surge um objectivo mais concreto e que diz a cada socialista o que deve ele fazer para modificar a sociedade em que se encontra, por forma a acelerar o movimento rumo à sociedade perfeita. Contudo, como o objectivo é tido como absolutamente inevitável, deixa de ter sentido averiguar se está ocorrendo alguma aproximação ou afastamento em relação a ele. A única coisa relevante é se existe uma transformação social no sentido do afastamento das suas bases históricas. Daí vem a ideia de movimento, de algo que nunca para, de um Avante! Isto quer dizer que, se uma acção socialista transformadora perde o seu vigor, ela deve ser eliminada por outra corrente socialista que tome o seu lugar. Nesta fase, então, o objectivo passa por provocar tanta instabilidade social quanto possível, mesmo que seja necessário sacrificar antigos companheiros de luta, usando todos os meios à disposição. Se isto conduzir a matanças indiscriminadas, à miséria, a campos de concentração, tanto melhor, pois apenas mostra o poder da própria causa, que assim se mostra infinitamente acima da presente condição humana.

Contudo, este abismo socialista, apesar de maravilhar tantos, pode levantar dois tipos de objecção. Desde logo, a história mostra que as gloriosas revoluções sangrentas não se limitam a eliminar os “elementos alienados” e rapidamente enviam para a fornalha os próprios socialistas mais convictos, só sobrevivendo os mais hábeis e brutais. Sim, o comunista pode ter frequentes orgasmos imaginando que está empunhando a metralhadora e eliminando a «reacção», mas ele não ignora que, caso a revolução sangrenta avançasse, muito provavelmente chegaria o momento dele ter que se ajoelhar para receber na nuca o projéctil disparado por algum colega em missão divina. Por outro lado, também é de questionar se a revolução violenta, que Lenine inaugurou, seguia os passos que Marx e Engels delinearam, de um objectivo a ser alcançado de forma progressiva apenas ao fim de muitas gerações. Então, autores como Georg Luckás, António Gramsci, Max Horkheimer ou Herbert Marcuse começaram a estudar formas de implementar a revolução de forma menos brutal mas mais eficaz. Afastavam-se assim dos ditos marxistas estritos, mas apenas cumpriam o seu papel revolucionário ao criar correntes transformadoras que pudessem dar continuidade ao movimento. Juntando estes dois pontos, obtemos um terceiro objectivo do socialista: ele anseia viver numa sociedade capitalista, conservadora até, já que é essa a sociedade que lhe dá toda a protecção, segurança, meios de expressão, de movimentação e associação, bem como lhe oferece o material (instituições, religiões, rituais, sacramentos, linguagem, etc.) que ele irá subvertendo aos poucos, como a criança pérfida que se compraz em ir arrancando cada um dos membros do gafanhoto que capturou.

Enquanto que o capitalista, de certa forma, só pode se comprometer com um novo objectivo quando renega os anteriores, o socialista nunca precisa de abdicar do seu primeiro objectivo transcendente, ou seja, ele pode abraçar ao mesmo tempo a utopia a realizar nos fins dos tempos, a revolução sangrenta e o conforto burguês, porque ele começou logo por aceitar um objectivo que também é um princípio de ordem, por mais aberrante que seja. Isto quer dizer que o socialista terá sempre uma vantagem estratégica em relação ao capitalista, já que, ao contrário deste, ele nunca abdica de nada e não se irá desviar do caminho, porque também ele sabe que não há caminhos, há que caminhar.

Posto isto, não é muito difícil perceber como podem cooperar socialistas e capitalistas. Os meta-capitalistas são os herdeiros dos socialistas fabianos do século XIX, que na altura não viam necessidade de uma luta de classes ou de uma revolução violenta. Como a “nova” estratégia revolucionária também se suavizou, os dois movimentos encontram-se naturalmente, embora também não deixem de ter um certo grau de oposição. Cada um dos movimentos não é propriamente dirigido por uma elite compacta e bem conhecedora da situação, mas é composta por indivíduos imbuídos de uma certa mentalidade e com uma visão limitada dos acontecimentos. Por exemplo, um meta-capitalista irá financiar uma série de grupos socialistas não porque esteja pensar no movimento socialista como um todo mas porque aqueles grupos que ele suporta desenvolvem acções que favorecem, pelo menos aparentemente, a sua agenda. Já os socialistas recebem o financiamento de bom grado, pois mais que ninguém eles valorizam os meios materiais, e vêem aqui a realização da profecia de Lenine, que dizia que os capitalistas teciam a corda que os iria enforcar. Note-se que Lenine é uma figura complexa, que não só foi um dos artífices da revolução violenta como deu vários elementos para a implementação da “revolução lenta”, como “dar um passo atrás para dar dois à frentes, “a estratégia das tesouras”, “o capitalismo como electricidade” ou o “capitalismo de Estado”.

Podemos dizer que a ideia genérica dos meta-capitalistas em financiar os socialistas passa pela criação de uma tal instabilidade – social, moral, anímica, psicológica – para que depois apareça uma elite, composta por banqueiros, farmacêuticas, pelas grandes famílias, por intelectuais comprometidos, engendrando uma solução global para os “problemas no mundo”. Naturalmente que a ideia dos socialistas é serem eles “a solução” e depois irão morder a mão que os alimentou. Se pensarmos que os socialistas são predadores, que vivem naturalmente na instabilidade e que, pelo contrário, os capitalistas dependem do domínio dos instrumentos financeiros e da própria coesão social para obterem a sua segurança e poder, não é difícil imaginar que quando a instabilidade chegar a um determinado patamar sejam os capitalistas os primeiros a ser executados, e com toda a justiça. Obviamente que o quadro real é bem mais complexo que isto. Os artífices do Califado universal assim como russos e chineses não só tentarão aproveitar esta instabilidade como têm contribuído para ela. Não falo propriamente no bloco eurasiano, que é uma realidade presente, porque no futuro nada garante que a Rússia e a China não sigam caminhos divergentes.

Sem comentários: