segunda-feira, 8 de julho de 2013

O movimento das massas (2)

No post anterior abordei dois tipos de movimentos de massas – greves e manifestações –, começando por distinguir dois planos – o dos participantes e o dos organizadores –, fazendo algumas considerações sobre a ligação entre eles. Vou agora entrar dentro da óptica dos participantes nestes movimentos, deixando para depois o plano da organização.  

Novamente, é mais fácil começar pelo fenómeno da greve, focando-me no caso português, do qual tenho mais evidências. Neste caso, a participação, como tinha dito, revela-se pela ausência no local de trabalho, não é preciso “dar a cara”; a pessoa pode aproveitar para ir à praia ou evadir-se no centro comercial. Pelo contrário, furar a greve pode até exigir uma boa dose de coragem devido a eventuais piquetes de greve. A adesão à greve de pessoal militante e dos facilmente sugestionáveis não carece de grandes explicações, mas acontece que hoje há, entre os grevistas, muitos indivíduos habitualmente avessos a estes movimentos. É bastante redutor achar que se trata apenas de uma reacção daqueles que se encontram acomodados à sombra dos direitos adquiridos, agora em risco. Num país carregado de impostos, a dinâmica de criação de emprego é muito reduzida e isso obviamente que cria em grande parte da população uma necessidade de segurança acrescida. Além disso, nos tempos que correm, não só a taxa de desemprego é elevadíssima como ninguém se atreve a dizer que ela vai baixar significativamente num prazo reduzido. Diariamente surgem notícias de estudantes que terminam os seus cursos superiores e imediatamente vão para o estrangeiro, já que por cá não vão conseguir se empregar num lugar conforme as suas expectativas mínimas. Face a isto, é natural a apreensão de quem tem 40 ou 50 anos e se encontra endividado.

Compreendendo a angústia de muitos portugueses, poderíamos perguntar, de seguida, para que servem greves e manifestações. A greve só cumpre o seu fim se causar algum tipo de incómodo. Um exemplo de uma situação natural de greve ocorre quando um grupo de operários se recusa a trabalhar na fábrica – seja devido a baixos, excesso de horas de trabalho ou falta de condições de segurança –, sendo as reinvindicações comportáveis para a empresa e, a longo prazo, esta até pode vir a ter mais lucro. Contudo, as greves actuais destinam-se a provocar um incómodo não apenas localizado mas transversal a toda a sociedade – como acontece com as greves na educação, portos e transportes –, e em que é muito duvidosa a justiça das reinvindicações. São greves que não visam um progresso mas uma imobilização ou mesmo a uma destruição.

Quando passamos para as manifestações, a coisa ainda fica mais obtusa. É natural que as pessoas fiquem indignadas pelo rumo que as coisas vão tomando e que desconfiem dos governantes. Mas destas manifestações que têm ocorrido não pode sair qualquer alternativa viável (isso não quer dizer que não existam alternativas viáveis, mas estas não são do interesse dos organizadores das manifestações), porque ou se vai trocar estes governantes por outros do mesmo calibre ou então cai-se numa deriva marxista que pode lançar o país numa espiral de miséria e de terror sem fim.

Pode parecer que a motivação é apenas uma voragem incontrolável pelo abismo. Mas para assim ser, tal implicaria que o cidadão comum não apenas compreende a situação do país em profundidade como entende quais são as verdadeiras consequências de greves e manifestações, levadas aos seus fins últimos. Não só o cidadão comum está longe de perceber isto como as elites também não estão em melhores condições, apenas disfarçam a ignorância com uma verborreia insuportável. O ponto de partida é simples: o indivíduo está apreensivo sobre o seu futuro por razões não só objectivas como evidentes; e ele “sabe” que a solução está na mudança e no «futuro», acreditando cegamente neste “valores” devido à contaminação da mentalidade revolucionária. Quem dá voz a estes descontentes? Naturalmente aqueles que partem da emoção negativa e tentam transmutá-la numa esperança de um futuro radioso. Quando os partidos do “centrão” apostam nas técnicas de comunicação e falam de esperança, eles estão tentando fazer algo assim, mas esta é uma ilusão que apenas resulta em tempos de normalidade democrática. As pessoas sabem que o “centrão” pode oferecer: na melhor das hipóteses, dele apenas podemos esperar algo mediano e certamente que não tem competência para lidar com uma verdadeira crise. Quando esta chega, a dimensão das esperanças tem que ser proporcional à amplitude do desespero, e este é o terreno dos partidos radicais revolucionários que possuem a infra-estrutura – material e intelectual – necessária. Portugal só não está em bancarrota por intervenções artificiais, e não deu um único passo desde a assinatura do memorando da troika para poder sair desta situação. Os radicais oferecem uma solução que é objectivamente suicida, mas psicologicamente é uma boa solução porque está colocada para além do tempo. Trata-se realmente de manipulação mental, da colocação de um interdito sobre a meditação das presentes condições dentro de um campo de espaço e tempo realmente existente. Dito de forma mais simples, é fazer com que o sonho esmague o raciocínio.  

Em parte, a própria democracia torna isto inevitável. Em teoria, o discurso retórico dos políticos daria elementos suficientes para os cidadãos fazerem uma dialéctica e assim chegarem a um nível de conhecimento muito mais razoável, mediante a confrontação das hipóteses em cima da mesa, e desta forma o debate na sociedade civil iria obrigar políticos e governantes a tomar decisões cada vez mais acertadas, excluindo das eleições os piores políticos por mera selecção da natureza humana. Mas para isto se verificar tinham que se reunir duas condições. Por um lado, o cidadão tinha que ser treinado na arte da dialéctica, e se percebemos que são raros os juízes que o são, ficamos conversados sobre este assunto. Por outro lado, os discursos dos actores políticos tinham de ser verdadeiramente retóricos, ou seja, teriam quer partir das verdadeiras crenças públicas e procurarem hipóteses razoáveis, sem entrar em qualquer tipo de manipulação. O que vemos é que a maioria dos discursos são erísticos – partem das crenças que se querem induzir no público e não das que este realmente tem, como acontece quase sempre que alguém começa por dizer “como você sabe” –, ou então são meras manipulações verbais e emotivas.

Ou seja, a democracia abre o debate tal como Pandora abriu a sua caixa, ficando todos os males à solta e restou apenas a esperança, que é aqui metáfora para a crença revolucionária de um futuro melhor. O debate público tornou-se tão caótico que a sociedade se torna hoje para nós tão temível como era o cosmos para o homem primitivo. Tal como o primitivo, entregamo-nos ao mito, ao discurso poético, mas não entendemos que estamos no mero terreno das possibilidades – tentando encontrar um princípio de ordem – e cremos que os nossos sonhos têm a força provante dos argumentos lógicos. Daqui surge naturalmente a dúvida se a democracia é inviável em si ou se precisa apenas de ser corrigida de alguma forma. Não tenho uma resposta definitiva para isto, embora pretenda investigar o assunto, sem grandes ilusões de poder ser totalmente bem-sucedido.  

Acabei por não focar muito a perspectiva realmente interna do participante numa manifestação, mesmo porque não estou actualmente em condições de fazê-lo em profundidade. É também importante fazer sempre uma contextualização do assunto, para não considerar o “manifestante em si”, como se fosse o arquétipo. Para além dos elementos que referi, podemos ainda juntar outros factores que suscitam maior “fervor contestatário”. Há, entre muitas outras, duas questões de fundo que lançam descrédito sobre as possibilidades de melhorar a situação por vias normais (a manifestação é uma exibição de força que visa, em última análise, uma alteração política a ocorrer por vias não convencionais).

Por um lado, existe a bem conhecida armadilha da maioria que é capturada pelos próprios benefícios insustentáveis que alcançou: não é possível a situação continuar como está por muito mais tempo, mas os sacrifícios isolados também não resolvem nada. O problema apenas pode ser resolvido mediante uma alteração colectiva e sem apelo, que a própria democracia torna praticamente inviável, e por isso está sempre latente o desejo de um regime mais duro. Daqui resulta também uma ambiguidade ou dualidade na alternativa radical revolucionária. Se parece que o seu foco é o sonho fora do tempo, não passa despercebido a muitos que, na prática, os revolucionários no poder vão começar por impor políticas de verdadeira austeridade, ou então criarão um caos tal que tornarão inevitável um pronunciamento militar que restitua a ordem.

 A outra questão é mais subtil e tem a ver com um certo desencanto em relação ao estilo de vida moderno, nomeadamente a profusão de mitos como o da “realização profissional”. O trabalho já não é visto como um dever moral mas como a substituição da própria espiritualidade (em conjunto com outros mitos modernos, como o cultivo do individualismo e do colectivismo), o que deixará infelizes 99,99% dos funcionários que não cheguem a ter um posto em algum conselho de administração. Isto pode parecer uma questão puramente sociológica, mas a própria democracia tem tendência a tudo politizar, pelo que se cria a crença e até a necessidade – ou mesmo a urgência – de resolver todos os problemas, inclusive os da intimidade, por via política e legislativa.

Face a esta contextualização mínima, vou intentar um esboço rudimentar sobre o que é uma manifestação política. Convém logo por fazer uma distinção, que não é tão irrelevante quanto parece, entre uma manifestação e um ajuntamento de pessoas para ver um concerto ou para participar em algum tipo de celebração pública. Nestes casos, embora exista um efeito grupal, ele é sempre mediado e até delimitado pelo objecto do evento, seja o espectáculo em si ou a comemoração de uma efeméride. Podemos incluir neste género algumas manifestações religiosas que tenham um objecto concreto e inequívoco para todos, como certas procissões. Contudo, outras manifestações religiosas apelam ao transcendente, a algo que não pode ser captado inteiramente por ninguém e, segundo alguns, para algo que não está efectivamente presente mas é fruto de projecção mental de cada um e “confirmado” pelo reforço grupal. As manifestações políticas parecem entrar neste enquadramento, e esta será uma das razões para alguns considerarem as ideologias como religiões políticas, porque elas se materializam frequentemente na forma de manifestações políticas que, mesmo tendo um pretexto alegado, insistem na fórmula “é muito mais do que isso”, o que remete de novo para o sonho atemporal.

A analogia entre religião e ideologia é muito sugestiva para alguns, sobretudo para aqueles que odeiam tanto uma como outra, mas acaba por ser muito limitada. A função da religião é elevar a pessoa em termos, espirituais e até intelectuais, e sabemos que se de uma manifestação religiosa saírem actos terroristas é porque algo correu no sentido oposto do que devia, e os indivíduos ao invés de se engradecerem ficaram dissolvidos num colectivo que abdicou da transcendência mas fala em nome dela para perseguir fins puramente imanentes. Contudo, a manifestação política visa apenas este fim, ela não sobrevive um instante se cada indivíduo tentar seguir um verdadeiro caminho, e usa o sonho atemporal como símbolo da transcendência, usada em sentido psicológico, já que tem que repugna-la oficialmente. Tanto a manifestação política como a manifestação religiosa deturpada iludem os indivíduos de se agigantarem ao “receberem” temporariamente a força do colectivo, já que naquele momento sentem, pelo menos, toda a potência destrutiva do grupo. Obviamente que se tratam de formas de alienação que podem ter efeitos irreversíveis.

Segundo esta descrição, terei que distinguir a manifestação política – que não tem um objectivo realizável no tempo – de outro tipo de ajuntamentos que podem ter fins políticos, como certas passeatas ou marchas de protesto ou mesmo celebrações de datas de importância nacional. Nestes casos, o objectivo é concreto, não existe a ilusão de transcendência e o efeito grupal é orgânico, situa melhor a pessoa no seu contexto e não a atira para um limbo atemporal. Numa sociedade saudável, as manifestações deste tipo serão praticamente as únicas existentes, ao passo que numa sociedade alienada grassam as manifestações políticas, embora nem sempre seja fácil distinguir as primeiras das segundas. As primeiras manifestações não ocorrem tanto por necessidade mas mais por dever, por honra e até por orgulho. Porque são tão apelativas as manifestações políticas aos indivíduos perdidos na vida? Porque estes têm muitas necessidades por satisfazer e têm carência que alguém lhes dê um contexto coerente, mesmo se totalmente falso, além de estarem sempre à míngua de aprovação grupal. A manifestação política oferece tudo isto e o sonho atemporal é um recipiente em que se podem projectar todas as vontades, que ali nunca parecerão desavindas. Mas enquanto que uma ditadura pode criar um aparato que convoca, pela demonstração de força, as pessoas a aderirem a uma manifestação política, em democracia opera o fenómeno da criação de necessidades e da concomitante crença de que estas, sejam de que género forem, são naturalmente supridas por via política.

Este esboço não visa, obviamente, tentar explicar o fenómeno na sua dimensão total. São apenas considerações que podem ser feitas pela mera interpretação dos factos à disposição de qualquer um. Sem fazer algum tipo de reflexão deste género, penso que de pouco servirá a leitura das obras a respeito, desde os elementos dados por Heródoto até passar pelas obras clássicas de Gustave le Bon.

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