segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O movimento das massas (3)

Ninguém defende que uma manifestação possa ser puramente espontânea, no sentido de ser um resultado de movimentos individuais aleatórios, já que isso anularia o próprio sentido da coisa e daí não poderia daí advir qualquer vantagem política. Os organizadores de um protesto não negam a sua convocação mas falam em espontaneidade das reacções, em dinâmica social, para dizer que não actuaram como manipuladores de massas mas como intérpretes de uma vontade patente mas ainda não expressa. E em geral isto é verdade, porque os organizadores materiais de uma manifestação estão demasiado ocupados para poderem fazer o trabalho subterrâneo e de longa duração de gestão das consciências alheias, mas desenganem-se aqueles que acham que a divisão do trabalho é uma invenção liberal, pois ela existe desde que os primeiros mamíferos começaram a caçar ou a organizar a vigilância em conjunto. Contudo, o mito da espontaneidade persiste, tanto no cidadão comum como no letrado, porque nenhum deles tem coragem suficiente para reconhecer o quanto é manipulado desde fora.
Reconheçamos o quão anémicos são os actuais caminhos da dialéctica, quando alguém, que pretende contestar uma opinião que é dada como certa por todos, sente-se na obrigação de afirmar que “uma coisa é a opinião pública, outra é a opinião publicada”. Claro que a maioria dos cidadãos não partilha da opinião “publicada” (leia-se impressa, radiodifundida, teledifundida, blogoesparramada), que é abortista, gayzista, pederasta, hedonista, cocaínama, globalista, ultra-individualista, etc. Aqui está algo a ser aproveitado por conservadores e tradicionalistas, mas apenas no caso de serem totalmente alteradas as relações entre o indivíduo e a coisa pública. Uma opinião pode ser partilhada por 98% das pessoas mas, se estas não tiverem canais de expressão, vai pesar menos do que a opinião dos restantes 2% que esteja bem articulada e veiculada pelos canais mediáticos. Isto quer dizer que, em termos políticos, só existe opinião publicada e tudo o resto é um imenso resíduo com um peso insignificante, tal como a famosa matéria negra, que talvez constitua a esmagadora percentagem da matéria do universo físico mas nem sequer sabemos se ela existe.
É impossível não ver algo de estranho no facto das massas, cuja opinião em geral não conta rigorosamente para nada, de repente, quando convocadas para um protesto, serem tidas como a força preponderante na sociedade. Obviamente que as massas só ganham tal estatuto quando repetem cegamente alguma opinião decretada pela pequena minoria de iluminados que domina a opinião publicada. Na verdade, trata-se de algo necessário para ambas as partes. Por um lado, as elites ocultas procuram algum tipo de legitimação popular, que tanto pode ocorrer em actos eleitorais como em manifestações ou outros actos públicos informais: assim a democracia dá um leve indício de funcionar conforme o que era suposto. Por outro lado, a populaça precisa de ser ouvida para aliviar as suas tensões, e no fundo sabe que apenas participa numa encenação grotesca, mas um pacto de silêncio atira para o fundo da consciência esta constatação. 
Os actos que supostamente legitimam a democracia são precisamente aqueles que a consolidam como uma oligarquia impenetrável. Era suposto as eleições servirem para o povo eleger para seu governo aqueles que considera os seus melhores representantes, levando à formação de uma elite pelo mérito ou então à responsabilização colectiva pela escolha de medíocres. Ora, nem isto aconteceu na antiga democracia directa grega e menos ainda ocorre na moderna democracia representativa, e o alargamento do sufrágio ao invés de corrigir isto apenas parece ter agravado a situação. Se na democracia directa qualquer um com algum talento natural para a palavra pode ser um candidato natural, na democracia representativa o candidato já pressupõe atrás de si uma máquina capaz de chegar aos possíveis representados por meios não democráticos, ou seja, só é possível ser eleito através de um poder já consolidado e não eleito, que por vezes se chama de “partido” mas que quase sempre é um aglomerado de interesses que o transcende largamente, podendo mesmo envolver grupos internacionais. O cidadão quando vota apenas está legitimando este sistema oligárquico – que está encoberto mas é relativamente fácil de identificar, pelo menos até certos limites –, que lhes dá a escolher uma série de candidatos, todos muito idênticos e medíocres, com algumas aberrações misturadas para os primeiros parecerem mais razoáveis. No fim, podemos dizer que a sentença “cada povo tem os políticos que merece” se torna numa profecia auto-realizável, dado que o processo envolve uma corrupção moral de parte a parte.
Muitos acham que isto se corrige com uma coisa estranha chamada “democracia participativa”, onde presumivelmente se incluem todos os actos não oficiais onde se discute a coisa pública. Só que aqui estamos novamente limitados pela linguagem pública e pela selecção de temas ditadas por uma ínfima minoria e que já determinam de antemão todo um leque de opções, pelo que o processo é sobretudo uma dominação mental indolor, funcionando até como uma espécie de terapia, onde os sofrimentos e as ideias individuais vão se acomodando progressivamente a um modelo pré-definido de discurso, o único que possibilita a obtenção de algum eco, e no final tudo se transforma na única coisa que poderia ser desde o primeiro momento. Não é coincidência que a ideia de autonomia pessoal e a presunção de pensar pela própria cabeça tenham se difundido precisamente na altura em que se tornaram mais irreais que nunca, porque isto coincidiu com a aplicação generalizada da estratégia de revolução lenta, isto é, quando se trocou a proposta explícita de criar um mundo socialista por uma miríade de pequenas alterações, aparentemente independentes umas das outras e cada uma com os seus métodos próprios de consecução. Tudo isto parece simplesmente «o mundo em mudança», e querer se opor ao conjunto parece um esforço tão inglório como querer parar as vagas do oceano com as próprias mãos. Não é ao nível do discurso que percebemos alguma unidade entre todas as propostas parciais mas reconhecendo uma mentalidade de base que permeia todas: está sempre implícito o imperativo de abolir o passado em nome de um projecto de futuro. A nível material podemos também encontrar uma certa unidade nas fontes de financiamento de todos os movimentos de ruptura e de “avanço civilizacional”, mas isto não implica que exista um grande controlo sobre o rumo das coisas somente que o indivíduo está impotente contra uma rede incessante de pressões alienantes.

1 comentário:

Anónimo disse...

Simplesmente genial. Um texto escancaradamente verdadeiro sobre as nossas democracias. As massas continuam onde sempre estiveram: peças do jogo, mas fora do jogo. Para divulgar, guardar, pendurar na parede. Aqui no Brasil, essa realidade é um verdadeiro escárnio a céu aberto. Parabéns.