terça-feira, 19 de novembro de 2013

Quanto custa salvar Portugal?

O título deste post pode dar a entender que vou falar dos milhões da troika ou algo assim, mas nada disso. Para evitar uma situação de bancarrota, Portugal recebeu um empréstimo de 78 mil milhões de euros. Não se trata de uma verdadeira salvação do país porque nada garante que os erros cometidos não voltem a ocorrer. Certamente que era necessária uma injecção de dinheiro (o que não implica uma aceitação do memorando da troika) para fazer face a uma catástrofe iminente, mas se nada se alterar na consciência das pessoas, cedo precisaremos de igual ou superior quantia, de modos que o nosso endividamento transcenderá o crónico. Então, a salvação a que me refiro de Portugal tem a ver com um saneamento intelectual e cultural. Mesmo admitindo que existe massa humana com qualidade e carácter necessários para o empreendimento, estas pessoas encontram-se dispersas e presas a outras actividades, pelo que lhes resta pouco tempo para darem o seu contributo, além de não terem orientação para saber como poderiam ser mais úteis. Então, seria literalmente necessário contratá-las para que possam estar totalmente dedicadas à tarefa de salvar Portugal. Fiz umas contas para um projecto de duração de 10 anos (se após esse período nada de notável tivesse ocorrido, o projecto seria um falhanço) e fiz uma estimativa de custos: 100 milhões de euros. Aqui se incluiria:

1. Um Centro de Estudos: com cerca de 20 intelectuais, cujos estudos incidiriam sobretudo na história, da filosofia e na verdadeira ciência política, mas também com intelectuais conhecedores de outras matérias, como a economia ou o direito. A ideia é sobretudo desfazer alguns mitos criados ao longo de gerações e expor algumas fraudes intelectuais em voga, para além do trabalho específico dentro de cada área. Estão também previstas algumas despesas específicas para alguns estudos especiais.

2. Um Grupo de Guerra Cultural: também com cerca de 20 pessoas, não tão especializadas como os anteriores mas treinadas para actuarem diariamente e em cima dos acontecimentos nos jornais online, nos blogues mais visitados, na Wikipedia (muitas crianças consultam-na para trabalhos de escola), etc. Para além disto, fariam mais duas tarefas muito importantes mas discretas. Iriam mapear a verdadeira estrutura de poder em Portugal, incluindo as ligações ao exterior, pelos rastos que eles vão deixando, desde os grandes financiadores até aos jornalistas que fazem trabalhos especializados, passando pelas ONG, sociedades secretas, etc. Outro trabalho, seria a análise dos programas políticos em circulação, sejam nos partidos, seja nas universidades ou outros fóruns, sendo que análises mais aprofundadas devem ter a participação dos intelectuais do primeiro grupo.

3. Uma Biblioteca e um Centro de Documentação: destinados a servir de apoio aos grupos anteriores. A biblioteca devia apontar para cerca de 100.000 livros “normais” cobrindo todas as lacunas existentes no mercado e em muitas bibliotecas, mais cerca de 10.000 raros, além de cerca de 100 enciclopédias. Os números são relativamente modestos mas o objectivo não é criar uma biblioteca genérica mas uma que esteja especializada em algumas áreas chave e na própria cultura clássica. O centro de documentação não só englobaria todo o tipo de documentos que não são livros como as próprias publicações efémeras que possam conter dados úteis ao mapeamento da estrutura de poder, além de documentos que possam ser úteis para uma caracterização sociológica da sociedade.

4. Uma estação de radio: ao que se pode acrescentar, ou substituir eventualmente, uma radio online. Em geral, o público radiofónico é mais conservador que o público televisivo, mas é um meio que está muito mal aproveitado, e tem a vantagem de ser muito menos oneroso do que entrar nos canais televisivos.

5. Um jornal online: não só para dar informação de confiança, como possa servir de watchdog de blogues, televisões e outros jornais. Trata-se de um prolongamento e de um complemento da acção do Grupo de Guerra Cultural.

6. Uma revista mensal impressa: com artigos de nível de excepcional mas tentando ser ainda acessíveis a um público alargado mas exigente.

7. Uma editora e uma livraria: a editora devia ter uma tripla vocação – voltar a editar obras importantes que saíram fora de circulação, dar voz a autores com valia que estão na sombra e publicar obras fundamentais traduzidas em falta. Devem estar cerca de 20 tradutores a trabalhar em contínuo, mais alguns convidados para trabalhos especializados, sendo possível ainda aceitar traduções de particulares que mostrem alguma competência. A livraria deve ser um local de excepção, não só livre das execráveis novidades mas também extirpada de viés ideológico, dando permissão de entrada a todas as correntes políticas e expressivas. O espaço deve também estar associado a um auditório.

8. Um auditório e palestras trimestrais: as palestras devem ser dadas quer pelos intelectuais do grupo, quer por especialistas de nível internacional, numa espécie de ciclo de conferências. Para além destes eventos de peso, o auditório pode ser usado para outros eventos, como o lançamento de livros, projecção de filmes, aulas, cursos de formação, etc.

9. Outras instalações de apoio: não apenas salas de trabalho e gabinetes específicos, mas também quartos de alojamento para receber estudantes e professores visitantes, refeitório, etc. Um objectivo é precisamente poder dar cursos quer sobre matérias base actualmente desprezadas (cultura grega, latim, filosofia, história) mas também sobre matérias específicas importantes para compreender a sociedade actual, nomeadamente as ligadas à guerra cultural e à história contemporânea.


O custo que estimei para estes nove pontos, de 100 milhões de euros, inclui infra-estruturas, recursos humanos, manutenção e equipamento, mas naturalmente que nem todos os factores foram tidos em conta. Não foram contabilizadas eventuais receitas que algumas destas actividades possam fornecer. Não é um projecto empresarial porque nem vale a pena perder tempo com os nossos empresários de “topo”, que são coniventes com o regime existente. Trata-se de um custo elevado para um país do tamanho de Portugal, mas seria relativamente insignificante para o Brasil, onde não seria necessário fazer uma coisa muito maior do que isto para ter um impacto semelhante, se abstrairmos outros factores. Obviamente que se trata apenas de um exercício especulativo, mas serviu logo para perceber que o custo de fazer uma coisa que considero que possa ter algum impacto é muito maior do que suponha à primeira vista. Com o nosso nível de impostos, para pagar às pessoas condignamente, cerca de ¾ do total teriam que ser reservados a salários. Tudo isto poderia já estar a ser feito se as universidades, institutos e fundações estivessem a fazer aquilo a que nominalmente se propõem.