terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Programa ideal de governação (3)


3. Anulação imediata de todos os contratos celebrados por anteriores governos com entidades privadas – Estão em causa sobretudo as PPP mas não só, uma vez que muitas empresas sobrevivem apenas por estarem coladas ao Estado. Não discuto a questão abstracta das relações entre o Estado e os privados, porque muitas das coisas a serem desfeitas até podem ter alguma razão de ser em teoria. Mas nada disto faz sentido num contexto de corrupção moral generalizada, onde urge eliminar do sistema todos os elementos virais, quer estejam no Estado ou nos privados. Normalmente, o que os governos fazem é interferir na vida privada, mas consideram que as relações das quais Estado faz parte são intocáveis. Contudo, é precisamente o contrário do que devia ocorrer, porque aquilo que é de domínio privado afecta geralmente um número limitado de pessoas, além de já estar sujeito a regulamentação legal. Os contratos assinados pelo Estado são, desde logo, uma ligação indirecta a todos os contribuintes, além de serem um exemplo para todos: quando o Estado não paga a horas ou faz contratos ruinosos está a dar maus exemplos que tendem a ser seguidos por muitos.

Existe uma dificuldade em desfazer qualquer contrato ruinoso, muito porque os interessados estão bem relacionados com os partidos e têm muitos comentadores “isentos” a trabalhar para eles na comunicação social. Especificamente sobre as PPP rodoviárias, uma vez construídas uma série de auto-estradas custando um milhão de euros por quilómetro, alguém tem que as pagar. Mesmo que seja um acto simbólico, parte dessa dívida deve ser paga pela venda de todos os bens dos empresários que beneficiaram de contratos imorais com o Estado, e o mesmo se diga para o património dos políticos que serviram de agentes no negócio. Pode-se alegar sobre a dificuldade em classificar um contrato de imoral, contudo, uma investigação elementar caso a caso mostra que não é nada difícil fazer essa classificação a não ser para pessoas de má formação de berço.


4. Abolição da actual constituição portuguesa – A constituição portuguesa sofre de, pelo menos, dois pecados capitais. O primeiro e mais óbvio é o seu viés socialista, que não foi possível remover com as diversas alterações ao documento, uma vez que este foi originalmente concebido para tornar Portugal num país comunista. Mas há um outro problema mais subtil e que não está apenas na constituição mas em grande parte da legislação: a ambiguidade. Qualquer lei deve ser clara, cabendo ao juiz fazer o difícil trabalho de adaptar essa lei cristalina à sempre confusa situação real. Quando a lei é dúbia, então o juiz pode muito bem fazer o que entender, porque sempre a realidade dará argumentos a favor e contra qualquer interpretação. A longo prazo produz-se um resultado ainda mais perverso: mesmo quando as leis forem claras, os juízes irão continuar a interpretar a lei de forma aleatória porque é essa a forma que eles já entranharam de desempenhar a sua função, o que naturalmente também será aproveitado pelos advogados.

O exemplo mais notório desta situação foi o chumbo do Tribunal Constitucional ao corte dos subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos e pensionistas, por alegada violação do princípio de igualdade na repartição de esforços entres estes e o sector privado. Esta reflexão é legítima num quadro político mais amplo, onde se pode aferir um grande conjunto de factores. Podemos alegar que o Tribunal Constitucional é precisamente um órgão político, contudo ele apenas se pronuncia sobre questões concretas que se lhe colocam – como faz qualquer outro tribunal comum, que pode julgar um crime de alguém mas não a pessoa na sua totalidade –, pelo que não faz uma verdadeira avaliação política mas antes introduz distorções no campo político matizadas consoante as questões que averigua. Trata-se obviamente de um órgão aberrante, que coloca nos bastidores o verdadeiro centro do poder, tal como acontece com o recurso aos tecnocratas. Isto acontece quer o tribunal faça decisões acertadas ou erradas, derivando da sua simples existência: é utópico imaginar um tribunal constitucional justo e neutro. Tal implicaria que o tribunal se pronunciasse sobre todos os aspectos implicados numa situação, que são sempre em número ilimitado. Por exemplo, nesta questão da repartição dos esforços entre público e privado, teriam que ser vistos todos os pontos onde esse princípio seria afectado, pelo que o tribunal iria fazer uma autêntica plano dirigista comunista para igualizar os dois sectores, decidindo sobre ordenados, números de despedimentos, horários de trabalho, volumes de trabalho, períodos de férias, etc.


Nunca há garantias de conseguir escrever uma constituição que realmente seja benéfica para um país, ainda que concebida segundo os melhores princípios, como elenquei (integridade do território e da língua, proibição de cedências de soberania, garantias de cada cidadão poder se defender até do próprio Estado, etc.), em parte pelas razões que acabei de referir. Há sempre a possibilidade de ter uma constituição não escrita, que é um conjunto de princípios que se encontram na prática disseminados por vários órgãos e nas relações entre eles. Esta é a forma ideal e que assume que o poder deve estar distribuído e que os valores só podem ser defendidos se fizerem parte da orgânica da própria sociedade. Mas já ganharíamos algo se não tivéssemos uma constituição que não tentasse impor o socialismo.

1 comentário:

Carlos Velasco disse...

Mário,

Essa questão relativa à constituição é fundamental pois aqui se toca no tema "soberania", que por sua vez invoca uma discussão ainda mais ampla, onde a religião não pode ser posta de lado. Essa sua análise a respeito do papel de um Tribunal Constitucional é muito boa. Feliz será o dia em que puder presenciar um jurista a compreender o absurdo da existência de tal órgão, mas acho que isso não vai acontecer enquanto não for fundada uma "Universidade".

Um abraço.