quinta-feira, 4 de abril de 2013

Em Busca da Austeridade Perdida


Nos últimos anos não deve haver palavra que seja tão marcante na vida portuguesa como “austeridade”. Ouvimo-la em milhares de notícias e em inúmeros debates, e poucos são os artigos escritos sobre a actualidade onde ela não entre. Contudo, se perguntarmos a 100 pessoas sobre o que entendem por austeridade vamos ouvir 100 respostas distintas, muitas contraditórias entre si e a maioria apenas incidindo sobre uma interpretação muito particular, que apenas faz sentido para o contexto em que aquela pessoa vive. O intenso debate e a contínua informação não têm esclarecido as pessoas e é estranho que ninguém pareça se dar conta disso.

Tornou-se crença geral que a vida política é um jogo em que aquilo que se diz – seja para propor, condenar, apoiar ou até apresentado como reflexão – é apenas uma fachada que esconde as verdadeiras intenções. Em parte, isto é uma das consequências inevitáveis da democracia representativa, onde há uma exigência de abertura, porque os políticos têm que explicar as suas decisões e não devem agir em segredo, mas ao mesmo tempo o sistema tem que ser fechado já que a maioria das pessoas não conseguiria compreender todas as implicações de cada medida, por mais inócua que fosse, e isso iria paralisar o sistema. Durante algumas décadas era razoável achar que a democracia moderna funcionaria razoavelmente bem num sistema semi-aberto, onde a comunicação social e os comentadores independentes serviriam de intermediário entre os políticos e o povo, tendo o papel de fornecer a informação relevante e dando a conhecer as consequências mais importantes de cada decisão assim como as de cada omissão grave, mas poupando o público de detalhes irrelevantes. O que vimos foi precisamente o oposto. Estes intermediários são antes um tampão entre o povo e os políticos, não são independentes e ao invés de salientarem o que é importante limitam-se a discutir irrelevâncias.

Com o progresso da guerra cultural, a abertura na democracia tornou-se a brecha por onde entraram todos os demónios. Não foi difícil aos planificadores sociais perceber que já não precisavam de regimes abertamente totalitários para implementar os seus planos, ainda como que cobaias longínquas, se soubessem usar os mecanismos de abertura e de ocultação das modernas democracias. Hoje controlam a quase totalidade dos meios de comunicação social e, mais importante, a linguagem corrente. Se analisarmos a evolução do uso de palavras como “democracia” ou “liberdade” vemos que elas foram esvaziadas de conteúdo ao ponto de serem usadas para fins opostos aos que tinham há umas décadas atrás, funcionando apenas como catalisadores emocionais. A “arte política” tornou-se, então, numa forma de usar certas palavras ou expressões como pólos agregadores, onde vontades desavindas se juntam numa emoção mais ou menos homogénea, que irá depois domar o pensamento para que este entre num ciclo psicótico e, no final, aquele que pensa é apenas um veículo inerme de ideias alheias.

Isto traz-nos de volta à questão da austeridade. É loucura achar que se podem discutir seriamente questões como “deve haver austeridade?” ou “mais ou menos austeridade?” sem termos antes avaliado os próprios efeitos psicológicos que a palavra “austeridade” tem sobre nós. Quando pensamos em austeridade, temos uma ideia clara sobre o que se trata ou há em nós apenas uma confusão de ideias dispersas e contraditórias unificadas por uma certa emoção? A questão não é tão fácil de responder como parece. O segundo caso parece descrever um estado de indigência mental próprio dos mentecaptos e poucos se reconhecerão nesta descrição. São estados próximos da loucura, e esta assemelha-se a um sonho isolado, ao passo que a maior parte das pessoas que se indigna com a austeridade sabe que não está isolada mas faz parte da maioria. Contudo, este colectivo é apenas uma ilusão criada pelos meios de comunicação de massas, dado que as pessoas estão mais que nunca isoladas nos seus sonhos. Já ninguém toma por genuíno o que os seus olhos vêm mas aquilo que o colectivo confirma, mesmo que este colectivo não seja real mas uma abstracção criada pelos jornais.

Mas que interesse têm os actores políticos nesta alienação política e de que forma lhes convém que a “austeridade” apareça como algo difuso, essencialmente ligado a uma emoção? No caso da oposição, é fácil perceber esta vontade. Austeridade tem que ser algo imediatamente associado a sofrimento, privação, injustiça social e assim por diante. Depois de feita esta colagem, pode-se discutir a austeridade porque esta será sempre um símbolo para estas coisas e não será vista como aquilo que é, e assim a oposição poderá fazer a sua apologia de gastos desenfreados sabendo que nunca será responsabilizada por nada. Da parte do governo poderia parecer que havia um interesse em optar por um caminho inverso, onde se começaria por esclarecer, da forma mais racional e objectiva, a situação do país, mostrar que vivemos acima das nossas possibilidades, como estamos à beira da bancarrota e, logo, que é imperativo uma contracção em vários sectores, a que podemos denominar por “austeridade”, e daqui podia resultar uma associação emocional bem mais racional, ligada ao orgulho de fazer o que é certo, à vontade, à coragem, etc. De início, o próprio primeiro-ministro Passos Coelho deu a entender que queria optar por este caminho, mas rapidamente mudou de rumo e optou por uma versão encantatória do uso da “austeridade”. De um certo ponto de vista, isto parece um suicídio político, porque se trata de fazer o jogo da oposição, ao mesmo tempo que se demite das responsabilidades para com o país. Qual o interesse do governo nisto?

A minha ideia é que se trata de um interesse pragmático, que é também uma forma encapotada de abandonar todos os princípios. Para entender isto temos que entrar um pouco dentro da própria governação. Não é difícil de perceber o que deve ser essa tal de austeridade e por onde se deve cortar. Contudo, o governo rapidamente chegou à conclusão que não podia cortar onde devia, se é que alguma vez teve essa intenção, porque isso iria mexer com gente poderosa e com uma constituição socialista. Então, só restava ir ao sítio do costume e sobrecarregar a classe média de impostos. Mas isto não é austeridade, é saque fiscal, para a qual aconselho a seguinte leitura que faz um enquadramento mais vasto:



Cinicamente, quando o governo desistiu da verdadeira austeridade – calculo que tenha sido logo nas primeiras semanas de governação, bem antes do primeiro (?) chumbo do Tribunal Constitucional – foi precisamente quando aderiram à retórica da “austeridade”. Nada tem isto de contraditório, porque a retórica da “austeridade” significa esvaziar a palavra de conteúdo para poder usá-la em sentido inverso do que devia ter. Ou seja, a verdadeira austeridade seriam cortes na função pública, nos institutos, nas PPP e assim por diante, mas agora o governo pode esquecer tudo isto e aumentar impostos dizendo que é em nome da austeridade. Trata-se de uma manobra de grande cinismo e um embuste tão grande ou maior do que aquele que faz a oposição. Nada disto me espanta nos políticos, mas ainda fico surpreendido por não ver ninguém a descrever estas coisas.

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