Caro
revolucionário,
Começo por pedir-te desculpas pela minha
cobardia, uma vez que falo de indivíduo para indivíduo em vez de me dirigir a um
colectivo. Sei que me devia endossar não a ti mas aos revolucionários como um
todo, já em posição defensiva e receando a vossa força grupal avassaladora. Lamento
não ser humilde o suficiente para me colocar, inerme, debaixo das vossas botas
em marcha. Talvez um dia aprenda a ser pisado com resignação ou, melhor ainda,
me junte a vós e aprenda a pisar. Até lá apenas sei falar assim de igual para
igual.
Sei que queres transformar o mundo à tua
imagem e semelhança. Nada mais óbvio, porque Deus morreu mas não queres ser
como Nietzsche, um “super-homem” num mundo niilista, condenado a morrer abraçado a um cavalo. Ora, se
Deus morreu, o lugar está vago e à tua disposição! Há quem te chame louco por
esta pretensão, mas não tentarei demover-te de algo tão tentador e aliciante.
Muitos de nós nunca sonharam ser Deus, mas acredito que uma vez congeminada
essa possibilidade nenhuma outra será apelativa. Na verdade, se imaginas ser
Deus é porque já és Deus: vê como é fácil corrigir
o argumento de Santo Anselmo.
Também sei que não te posso demover da causa
revolucionária falando dos massacres, dos campos de concentração ou do terror que
os teus camaradas espalharam. Certamente que os massacrados merecerem o seu
destino, especialmente os mais inocentes, e a história um dia irá glorificá-los
como um degrau rumo à meta final. O sangue derramado fecunda a terra de futuro,
e sabe-se lá quantas mais coisas sereis obrigados a fazer para combater as
injustiças. Como é doce a liberdade parida pelo sofrimento atroz. Aqui não há
mácula, tudo é perfeito, inebriante, como a faísca do martelo que bate na
bigorna, como o grito do prisioneiro que recebe o choque na pele, como o último
olhar do homem atingido pela metralha. Sim, tu és como os velhos deuses, exiges
sangue, sacrifícios, ou a tua glória não é elevada aos céus.
Mas por vezes o "antigo" teima em manter-se de
pé e tarda em ser esmagado pela marcha do tempo. Por isso, sei que te vês
obrigado em ser um elemento corrosivo que o desfaz por dentro; és um agente
cancerígeno que vai matando aos poucos, primeiro de maneira indolor, nulificando
as funções, estupidificando, corrompendo. Tal como apressas a meta final da
revolução, também apressas o final da sociedade tradicional, porque tanto a ascensão de uma como a queda de outra são coisas
inevitáveis. Oh, quantos séculos de existência humana conseguiste abreviar com
feminismo, gayzismo, abortismo, pacifismo, ecologismo, desarmamentismo. Os
milénios não tiveram que esperar pacientemente para que uma nova era chegasse, pois
já ali ao virar da esquina esta civilização vai perecer às tuas mãos.
Por último, há que louvar-te por tudo o que fizeste para
criar uma nova linguagem. Na linguagem antiga, por meio de muitas dificuldades, os homens ainda conseguiam entender-se
e assim acabavam por se acomodar, talvez até amar o próximo. Mas tu fizeste da
linguagem um elemento de incompreensão: o homem já não se encontra em terreno
firme e assim já pode ser arrancado pela história e lançado no futuro, deixando-se
manipular pela vanguarda do povo. O teu trabalho neste campo já vai avançado, pelo que
estou consciente de que dificilmente serei entendido por quem me leia. Talvez
aches que isso é uma espécie de caridade, porque se o vulgo estiver na
incompreensão também não sofrerá a angústia de antever o rolo compressor que o esmagará.
1 comentário:
Simplesmente brilhante... e é como diz... só quando "o rolo compressor esmagar" é que muitos irão perceber (tarde) o que lhes estava reservado... mas enquanto há vida há esperança..
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