segunda-feira, 4 de março de 2013

Programa ideal de governação (5)

7. Fim das autonomias regionais (Madeira e Açores); disciplina dos municípios e atribuição de novas competências aos mesmos – Os poderes regionais e municipais são os principais antros de corrupção comezinha em Portugal e também dos mais difíceis de combater. A atribuição de novas competências aos municípios, com a responsabilidade por cobrar impostos, torna-se difícil quando os autarcas se viciaram em política de “faca e alguidar”. Então, dá-se o paradoxo de as autarquias terem um poder insignificante, excepto no caso das maiores cidades, mas os autarcas serem muito poderosos. Trata-se de um poder essencialmente informal, cimentado por décadas de cumplicidades e trocas de favor com outros poderes locais, sejam clubes de futebol, jornalecos de província, prostíbulos, construtores civis com fetiches por mercedes brancos, forças de insegurança pública e assim por diante. As populações habituaram-se a esperar dos autarcas apenas mais umas rotundas, mais uns aglomerados habitacionais disfuncionais, e quando aparece algum que até cuida dos jardins e organizou um carnaval que apareceu na televisão enchem-se de orgulho pelo homem da terra. 

Certamente que isto não diz tudo o que podem fazer as autarquias e também há bons exemplos em termos de recuperação de património e de aposta cultural, mas mesmo aqui as limitações são muitas e são frequentes as disputas de (in)competências entre autarquias e Estado central. Atribuir competências ao nível da colecta de impostos e da gestão das escolas, para entrar apenas em dois dos pontos mais relevantes, não é apenas uma questão de eficiência “liberal”, no sentido de que as melhores decisões são tomadas por quem está mais perto da informação, que são normalmente as pessoas mais próximas das situações. Numa primeira fase é até de esperar que este aumento de eficiência não se verifique, dado que os autarcas que temos podem até ser “espertos” mas raramente são inteligentes e, em geral, o “interior” deixou de ter forças vivas para se conseguir gerir a si mesmo de forma capaz. Ou seja, a centralização de poderes, em nome de um suposto centro mais iluminado do que a periferia, acaba por ser uma profecia auto-realizada, e os tempos em que o interior estava cheio de vida e de homens competentes parece remeter para uma idade de ouro mítica que não mais poderá se realizar no tempo. Claro que o centro parece mais iluminado porque ele mesmo impôs uma aridez à periferia. Mas mal os grilhões sejam removidos, os homens bons voltarão ao interior e este florescerá de novo. Basta andar pelo país para perceber que existe esta apetência, e muitas coisas admiráveis já se fazem fora de Lisboa e Porto, apesar de todas as dificuldades levantadas. Ainda vamos a tempo de inverter a situação porque ainda há muita gente com “saudades da terra” e fartos da neurose da grande cidade. Mas há que varrer centralistas e os pequenos autarcas. 

A importância de renovar o interior não é apenas uma questão de equilibrar o país, é também uma forma de o tornar mais forte face ao exterior. O enfraquecimento dos poderes locais é apenas uma imagem do enfraquecimento dos poderes nacionais face aos poderes internacionais. De certa forma, dar força ao interior é tornar o país ingovernável por um poder central. Trata-se apenas de uma ingovernabilidade do ponto de vista centralista, e não no sentido da própria vivência das pessoas, que até se governam bem melhor assim. Isto também é uma profecia auto-realizada mas no sentido positivo e ainda com respalde no passado histórico. Uma sociedade enfraquecida torna a governação central fácil, dado que não há verdadeiros mecanismos eficientes de oposição. Contudo, isto dá uma falsa sensação de domínio aos poderes centrais, que podem se iludir com ideias de progresso o quanto queiram que inevitavelmente chegará o dia em que os verdadeiros donos do país virão reclamar as suas dívidas. E aí percebe-se que o país centralizado era ingovernável e que o Estado não representa ninguém. 

A governação do Estado é forte não por delinear os ínfimos aspectos da vida dos cidadãos mas conseguir manter uma coerência global, apoiada nuns quantos símbolos e nas forças locais em ebulição, e por conseguir fazer face às ofensivas estrangeiras, sejam elas bélicas ou de carácter cultural. Claro que nem todos os centralistas acreditam que a sua solução seja a melhor para o país, já que eles vêm o progresso numa outra escala. Aí, as regiões têm que ser fracas para as nações se debilitarem e darem, por sua vez, o comando a poderes internacionais e, um dia, mundiais. Todo e qualquer político ou comentarista que não repudie liminarmente a “construção europeia” está comprometido com este esquema. 

As autonomias dos arquipélagos insulares levantem ainda outras questões. É bem sabido que o socialismo falha tanto mais rapidamente quanto maior for a área que tenta abarcar e menores as ajudas que recebe do capitalismo. Madeira e Açores constituem zonas confinadas, de pequena dimensão, que receberam continuamente ajudas avultadas, e por isso a ilusão socialista “soft” durou ali mais tempo. É muito mais fácil contar o número de túneis que Alberto João Jardim fez na Madeira do que tentar imaginar o que podia ter sido feito em alternativa com as verbas despendidas. Acresce ainda outra marca presente em qualquer tipo de socialismo: a inversão moral: apesar do socialismo ser sempre uma forma de impor a servidão, os exploradores sentem-se sempre injustiçados. Se Juntarmos a isto a própria situação de isolamento insular, facilmente se cria o sentimento de diferença específica e a ilusão de independência, que foi explorada de forma explícita na Madeira e de forma mais encoberta nos Açores. Ambos os arquipélagos, mal obtiveram autonomia, criaram os seus próprios hinos, e ao longo dos anos foi-se cimentando uma separação entre continente e ilhas, que não é tanto uma questão de distanciamento geográfico mas sobretudo uma erosão de símbolos nacionais que a república se empenha em não cuidar, sendo este sentir nacional substituído por um “dinheirismo” de parte a parte. 

Não é difícil perceber que a fragmentação de Portugal em duas partes, continente e ilhas, não só deixa estas últimas numa fragilidade enorme – rapidamente, em termos históricos, podem se tornar uma província de qualquer outro Estado com o qual não possuem qualquer afinidade –, ao mesmo tempo que tornaria o resto de Portugal num país ainda mais à mercê dos ditames internacionalistas, que iriam fomentar a vontade de secessão noutras partes do território. Mesmo se defendermos o direito de secessão em países cujo agregado é problemático (Estados Unidos, Alemanha, China, Espanha e assim por diante) qualquer um percebe que a fragmentação da Catalunha ou da Califórnia é descer a um nível “disrupcional” e um mero passo intermédio para a criação de um poder central ainda mais reforçado, dentro da velha máxima do “dividir para reinar”. A unidade de Portugal não é dada pela exiguidade do seu território, que poderia ser contraposta à imensa variedade regional, nem sequer pela unidade linguística ou estabilidade de fronteiras, embora não sejam despiciendos estes elementos. Há um ser-se português largamente incomunicável mas uma das realidades mais fundamentais em cada um de nós, e que a fragmentação de Portugal iria apagar, pelo que não seria algo muito diferente de um genocídio. Aliás, sem entrar em considerações psicológicas ainda, posso desde já adiantar que a mentalidade globalista é genocida por natureza.

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